Manifestantes invadem Congresso, STF e Palácio do Planalto, em Brasília, no dia 8 de janeiro - Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Uma marcha da insensatez revisitada

Há um mês, Brasília foi cenário do pior ato antidemocrático do País. “Hordas sem ordem levam à barbárie”, afirma o psicanalista e professor da USP Christian Dunker a respeito do 8 de janeiro

 10/02/2023 - Publicado há 1 ano
Texto: Marcello Rollemberg
Arte: Joyce Tenório

Há exatamente um mês, a nau dos insensatos atracou na Praça dos Três Poderes, em Brasília, e despejou pelas ruas uma massa de gente que, depois de esperar por eternas 72 horas que nunca chegaram, cantar o hino nacional para pneu e aguardar ações de um general improvável, resolveu atacar a democracia por conta própria. Naquele dia 8 de janeiro – como todos infelizmente sabem –, milhares de pessoas em um transe que pode até ser explicado, mas nunca se justificará, abandonaram absurdos acampamentos em frente a quartéis Brasil afora, invadiram o Palácio do Planalto, o Congresso e o STF e destruíram o que viram pela frente. Esfaquearam Di Cavalcanti, destruíram o mobiliário e peças expostas e afanaram uma cópia da Constituição, deixando um prejuízo de milhões de reais e uma nação em estado de choque. Nesse último mês, muito se falou e se analisou sobre os nefastos atentados daquele aziago dia 8. Mas ainda há muito a se falar e a se analisar – e a se entender. Afinal, querendo-se ou não, aquelas ações de início de ano não foram um ponto fora da curva nem as consequências de uma confluência astral perniciosa, um Mercúrio retrógrado, ou o que seja. Não. Aqueles atos antidemocráticos, com viés de golpe – mesmo num domingo de palácios vazios –, são a consequência de um ovo da serpente que há muito chocou. E espalhou seus filhotes alucinados por todo o território nacional.

Aquela marcha da insensatez de janeiro talvez possa ser tomada como o ato mais recente de uma ópera bufa – mas extremamente perigosa – que vem sendo encenada nos últimos anos. Uma peça alimentada por discursos e ações de gente que tinha o poder e uma caneta Bic na mão, mas também de inúmeros atores que, pelos mais variados meios – principalmente as redes sociais, mas não só elas – invadiram corações e mentes de uma parcela da população que, pelos mais variados motivos, achavam que acampar ao relento, clamar, com celular na testa, por ETs salvadores e achar que Lady Gaga era ministra da Corte Internacional de Haia fazia sentido. Tudo, pode-se tentar entender, em busca de uma sensação de pertencimento, de preencher algum “vazio existencial”. 

“Essa ideia de uma marcha insensata combina muito com o que aconteceu no dia 8 de janeiro. A gente não tem ali um abaixo-assinado, um líder disposto a negociar alguma coisa, uma demanda. Ali, cada um fez o que quis, empreendeu a sua própria marcha da insensatez. E a exposição disso, me parece, vai ter um efeito dramaticamente desconstrutivo em relação a esse discurso, porque revela algo sobre a sua substância, sobre sua desorganização”, afirma o psicanalista, escritor e professor do Instituto de Psicologia da USP (IP-USP) Christian Dunker.  “Revela algo também sobre sua vulgaridade, o que para os ideólogos conservadores de classe média é extremamente problemático. Essa parcela da sociedade não quer ser confundida com pessoas enroladas na bandeira nacional, sem articulação discursiva, berrando slogans e destruindo o patrimônio cultural. Isso dá uma forma, uma face a um golpe que tanto se esperou, que tanto habitou a fantasia – e os temores – de muitas pessoas nos últimos anos. A gente consegue perceber agora do que ele é feito: um golpe rodoviário, feito por pessoas comuns, sem grande organização – apesar de estar sendo financiado. Isso é muito perigoso. Hordas sem ordem levam à barbárie”, afirma Dunker, autor de Lacan e a Democracia, no qual analisa a articulação entre psicanálise e política.

O professor Christian Dunker - Foto: Reprodução via Facebook

Realidades paralelas

Mas o que leva essas “hordas sem ordem” a querer assumir um protagonismo tosco e perigoso no cenário democrático brasileiro e participar, in extremis, da tal “Festa de Selma”, codinome que os golpistas deram à invasão da Praça dos Três Poderes? Em reportagem recente sobre o rescaldo do 8 de janeiro, o jornal Valor Econômico mencionou uma situação clínica chamada de folie a deux – uma loucura a dois, mas que pode ser elevada à enésima potência de uma multidão fazendo parte de uma festa estranha com gente esquisita. Devem todos ser tratados como psicóticos? Não necessariamente. Mas haja divã para entender como essa massa de gente acabou por escolher viver naquilo que se tem chamado de “realidade paralela”. 

“A ideia de uma realidade paralela é uma boa expressão porque sugere que em algum momento, mesmo que no infinito, em um ponto indefinido, ela se toca com a outra. Mas é necessário criar paralelas às paralelas. Criar também perpendiculares, transversais. E quando alguém começa a se mudar para uma realidade paralela? Em geral, é porque a realidade original se encontra muito indeterminada, incerta ou pouco relevante, muito monótona e muito tediosa. Incapaz, então, de propor um horizonte de expectativas”, começa a explicar Dunker. “Esses fatores convergiram para uma realidade paralela bastante organizada que exprime movimentos sociais e que vai nos dar trabalho para criar essas tais transversais”, afirma ele, para continuar: “A expressão ‘realidade paralela’ também é conhecida na psicopatologia a partir de algumas versões possíveis. A versão mais grave da realidade paralela é o delírio. Mas antes temos o devaneio, o sistema de ilusão e, num processo inicial, as conjecturas. E a organização do bolsonarismo explora esse conjunto de versões paralelas – são várias, poderíamos dizer –, que são construídas pacientemente ao longo do tempo, principalmente com a chegada da linguagem digital. Qualquer nova forma de linguagem, historicamente – livro, tv, rádio –, sempre, ao longo dos tempos, esteve ligada à produção de realidade paralela”, afirma o psicanalista.

Dentro desse contexto de uma outra realidade, há outros conceitos que também precisam ser vistos com atenção. Afinal, uma pessoa não embarca nessa viagem para um mundo alheio àquele de fato do nada, sem motivação. Como explicou Dunker há pouco, essa motivação pode sair de uma realidade monótona, que não oferece perspectiva. Mas não é só isso. Há aquilo que pode ser chamado de sentimento de “vazio interior” ou “vazio existencial” – que pode levar ao paralelismo do real mas também direciona para a necessidade de pertencimento a um grupo que defende valores semelhantes – a criação de um inimigo e a famosa luta contra o comunismo, por exemplo, ou a defesa de coisas difusas como “um país melhor” – mesmo que para isso se pratique atitudes extremas, em uma espécie de violência preventiva – “se eu não fizer, o outro vai fazer pior”, pode-se pensar. É nesse ponto que se forma o que Christian Dunker chama de “crença delirante artificialmente produzida”. São essas pessoas – milhares, milhões delas, na verdade – que acabam sendo alvo fácil para posts tendenciosos (na maioria das vezes radicais) nas redes sociais e a desinformação via canais extremistas.

“O vazio existencial é uma das versões possíveis para a gente detalhar o que seria essa perda de relação com a comunidade, com as instituições, com o mundo, seja na relação de filiação, seja na relação de pertencimento ou na de reconhecimento. O vazio existencial depende exatamente de que planos de existência estamos falando. De fato, o Brasil passou, antes do bolsonarismo, por um período de grande reformulação social. Muita mobilidade, muito conflito, muitas decepções para determinadas pessoas. Uma forma de pensar o vazio existencial é que ele aparece em relação à nossa insuficiência para enfrentar situações, formas de mundo, que se tornaram exponencialmente complexas”, afirma o professor do Instituto de Psicologia. “Quando eu entendo que o espaço político se tornou tão complicado que eu não consigo mais interpretá-lo, quando vejo que a vida social se transformou de tal forma que tenho que pensar e entender novos códigos – de raça, gênero, credo, de orientação sexual –, isso gera incertezas, insegurança”, explica Dunker.

Janelas danificadas no Palácio do Planalto após atos terroristas no ultimo domingo. Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil

Narrativa messiânica

Para Christian Dunker, a produção artificial de determinada crença delirante – e o “artificial” aí serve para diferenciar da somatória dos transtornos individuais, dos transtornos psíquicos que porventura existam em uma comunidade – pode se basear em posições institucionais comunitárias, de linguagem, de trabalho, de vida. “Potencialmente, qualquer um de nós pode se entregar a uma crença delirante. Mas isso envolve certas condições, como você se ilhar, se distanciar de seus grupos de referência em sua comunidade de base. De fato, o bolsonarismo fez isso: ele dividiu famílias, criou pessoas que entraram em isolamento, ele articulou pessoas que já estavam isoladas”, considera Dunker. “Um outro ponto é produzir uma narrativa messiânica, que não precisa ser uma narrativa transcendente, mas pode ser uma grande cruzada, uma grande aventura em que nós, pessoas comuns, vamos tomar o poder. Essa é uma ideia que, de tempos em tempos, ressurge no mundo. Então, voltando à realidade paralela, podemos entender que ela se mostra capaz de vencer a realidade usual, ordinária. As pessoas entram em um processo em que a vida se intensifica, você tem um propósito, você tem um grupo de referência. Você tem certeza de que vai transformar o mundo. Para aquele que tem pouca autoestima, para quem tem poucas perspectivas, para quem tem o valor da vida rebaixado, entrar em um empreendimento como esse é, de fato, uma alternativa bem atraente.”

Porque, segundo o psicanalista – e isso explica muita coisa –, no momento em que alguém envereda por esse caminho, lutando contra o inimigo imaginário, quase moinhos de vento socialistas e perigosos que só existem no discurso radical, é premiado com um efeito psíquico adicional, um bônus: o empoderamento, a sensação plena de pertencimento. “A pessoa se sente mais corajosa, mais relevante no mundo, ela está atuando mais do que na sua condição anterior. Há um ato performativo que vai se confirmando. No momento em que a gente atua essa crença, ela ganha realidade. E esse é um elemento importante da crença delirante, porque ela sempre se confirma. Não por seu teor de realidade ou irrealidade, nem por seu teor de verdade ou falsidade, mas pelo seu teor de convicção. Ou seja, a certeza no estado psicológico do sujeito de que aquele engajamento se justifica. E essa certeza faz com que a individualidade e a racionalidade sejam substituídas por uma racionalidade maior, por uma racionalidade de grupo. E é aí que ele adquire um sentimento de proteção, de confiança, de coragem para fazer o que faz”, analisa Christian Dunker.

A realidade imita a arte ou vice-versa? Nesse caso de sentimento de proteção, de confiança, de coragem – como o que, de várias maneiras, inspirou as massas extremistas no 8 de janeiro e em outros atos nos últimos anos –, talvez a polaridade pouco importe. Porque ambas chamam por demais a atenção – e ficção e realidade se confundem.  Não à toa pode-se encontrar exemplos nas plataformas de streaming que referendam as ideias e ações discutidas neste texto. Tanto no filme de ficção alemão A Onda, de 2009, como no documentário americano A Terra é Plana (2018), a necessidade de pertencer a um grupo, de ser acolhido, é palpável. E não importa se as ideias que levam a isso sejam as mais estapafúrdias ou perigosas – no filme alemão, a sensação de pertencimento em um grupo de alunos que se deixa seduzir por ideais neonazistas é o rastilho de pólvora. O que começa como um exercício para mostrar os riscos e horrores do extremismo de direita se torna o motor para ações cada vez mais violentas. Mas tudo em nome do grupo.

Já no documentário terra-planistas, o que se vê como pessoas que não encontram seu lugar no mundo sensível, que são praticamente invisíveis em sua vida sem perspectiva e sensaborona, ganham notoriedade e seguidores pelo absurdo de suas teorias – no caso, a defesa inconteste de que a Terra é tão plana quanto uma bolacha de chopp. Nos dois casos, estão aqueles elementos que Christian Dunker apontou: a falta de perspectiva, a baixa autoestima, o descolamento com a realidade. E o levantar de bandeiras que pouco ou nada coadunam com o mundo real. Exemplos não faltam.

Acampamento de manifestantes antidemocráticos em frente ao Palácio Duque de Caxias, sede do Comando Militar do Leste do Exército Brasileiro, no Rio de Janeiro - Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

“A democracia precisa oferecer uma alternativa aos extremistas”

Na entrevista a seguir, Cicero Araujo, professor titular do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH-USP), fala sobre o extremismo de direita no Brasil e as ações que culminaram no 8 de janeiro

Jornal da USP – Muito se tem falado da “realidade paralela” na qual brasileiros e brasileiras se confinaram, chegando a atos extremos. O que leva essas pessoas a isso?

Cicero Araujo – Não sei se a ideia da criação de uma “realidade paralela” seja a melhor maneira de pensar o problema da onda atual de extremismo de direita. É verdade que a invenção das redes eletrônicas, e o fato de uma massa gigantesca de pessoas terem passado a se socializar (e então se politizar) através delas, deu uma nova forma a esse extremismo. Deu nova forma porque as ferramentas da internet possibilitam borrar com mais eficiência a fronteira entre realidade e irrealidade. Mas o extremismo de direita, inclusive com essa base popular que exibe hoje, é tão antigo quanto o próprio advento da sociedade de massas. Em sua famosa análise do totalitarismo, Hannah Arendt faz uma analogia entre os movimentos totalitários e a forma da cebola: a partir de seu caroço interior, cada camada externa da cebola envolve a anterior, numa espécie de labirinto em espiral, de modo que quem está dentro só consegue enxergar as paredes da cebola – isto é, os demais participantes do movimento. Quanto mais “dentro” da cebola, menos você consegue estar em contato com aquilo que ela chama de “mundo” – o espaço, o vão que existe entre as pessoas, que dá a cada um de nós o senso de realidade. 

JUSP – O que esse movimento acarreta?

Cicero Araujo – O que esse movimento envolvente faz é, pouco a pouco, desativar essa capacidade quase instintiva (que aprendemos desde muito cedo) de distinguir sonho e vigília, realidade e ficção. Note que Arendt estava procurando entender o fascismo do pós-guerra, pela direita, assim como o stalinismo, pela esquerda. Mas a questão de fundo, a meu ver, é a mesma: o que aconteceu e voltou a acontecer no mundo – na sociedade daquela época, assim como na sociedade contemporânea –, o que tornou e torna possível esse tipo de conduta, o qual não se restringe a poucas pessoas, mas envolve tanta gente num processo contagiante, a ponto de exercer influência real sobre o rumos dos negócios públicos? Quando digo “influência real” é porque a rigor não se trata de uma realidade paralela. Planos paralelos, por definição, só se encontram no infinito. Não é o caso. Existe um contato efetivo – embora não contínuo, mas intermitente – entre o mundo virtual e o mundo físico. Eles se cruzam, e, de certo modo, ambos são reais – se não fossem, não produziriam o impacto que produzem. O desafio é entender a natureza desse cruzamento e como, sob condições políticas e sociais propícias, acabam impulsionando movimentos de massa e grandes porções do eleitorado ao encontro de um projeto autoritário.

JUSP – O autoritarismo é, necessariamente, o fio condutor ou o fator inspirador de posturas assim? É a necessidade de encontrar um grupo, uma sensação de pertencimento ou vai além disso?

Cicero Araujo –  Essa necessidade temos todos nós e, em princípio, não há nada de errado nela. Todos pertencemos a grupos ou coletividades maiores ou menores, e precisamos delas por razões afetivas ou de interesse objetivo. Sem pertencimento não há como fazer política. O problema é a forma da interação, assim como o conteúdo que a orienta. Poderíamos nos perguntar: em vista das novas formas de interação propiciadas pelas redes eletrônicas, será que “o meio é a mensagem”? Eu acho que um certo manuseio dessas redes tende, sim, a amplificar exponencialmente uma predisposição sectária. Um certo manuseio, porque sabemos que as redes patrocinadas por empresas não funcionam espontaneamente — as interações são induzidas por algoritmos, que identificam padrões de gosto, inclusive preferências políticas, que buscam reiterar os “inputs” iniciais dos participantes. Como o espaço virtual é imenso, você acaba fazendo parte de uma galáxia separada das demais por milhões de bits (embora o participante de outra galáxia possa ser seu vizinho de prédio, no mundo físico). 

JUSP – Mas o sectarismo político não é uma invenção das redes eletrônicas, não é? 

Cicero Araujo – Não. Ele é tão antigo quanto a própria política, e uma trava igualmente ancestral pronta para quebrar a fluência da política democrática. Porém, a tecnologia importa: porque algo que nasce como um fenômeno marginal – e o extremismo político é sempre marginal no começo – pode, agora, tornar-se imensamente relevante, se o ambiente social já estiver previamente envenenado, com muito mais facilidade. É só ver a grande velocidade com que as notícias, verdadeiras ou falsas, se propagam por elas, e o efeito prático quase imediato que produzem. A rigor, “fake news” sempre existiram, mas as redes eletrônicas podem, até com poucos recursos, fabricá-las e multiplicá-las numa escala industrial e gerar consequências com uma rapidez inusitada. E é por isso que elas se tornaram uma questão para a democracia, ao desafiar os modos costumeiros de lidar, por exemplo, com a liberdade de expressão. Quando, por conta dos efeitos nocivos das fake news, as autoridades judiciais se vêem obrigadas a controlar com mais rigor a liberdade de expressão nas redes, você pode até diminuir sua nocividade, mas, ao fim e ao cabo, algo do vigor da própria democracia se perde no meio do caminho. E então ficamos diante de uma espécie de “escolha de Sofia”.

JUSP – As lideranças carismáticas, sejam de esquerda ou de direita, podem induzir, em um momento mais extremo, as pessoas a ações atentatórias à democracia?

Cicero Araujo –  Eu acho que existe aí uma “união da fome com a vontade de comer”. Os líderes são cruciais porque são eles que elaboram (ou reelaboram) o discurso e os símbolos que buscam dar vazão ao sentimento que vem de baixo. E, na medida em que conseguem dar cola a correntes muito díspares entre si, unificando-as num só movimento e lhes dando um destino, essas pessoas lideram efetivamente. Foi isso que Bolsonaro conseguiu fazer, e não foi pouca coisa. Mas acho que o elemento dinâmico desse extremismo de direita continua sendo o lado da demanda, e não da oferta. Existe uma audiência e um eleitorado disponíveis para ouvir e promover lideranças nesse campo. Não por acaso, as lideranças e as correntes de direita moderada foram deslocadas do centro do palco e, por fim, ultrapassadas nos últimos anos. Também não por acaso, políticos que foram eleitos na esteira dessa nova onda, quando tentaram fazer um movimento em direção ao centro, acabaram sobrepujados por ainda mais novos políticos, para repor a fidelidade à causa original. É só ver o que aconteceu nas últimas eleições parlamentares: deputados eleitos em 2018 sob os auspícios da onda que levou Bolsonaro à presidência, e que depois tentaram se tornar mais independentes política e ideologicamente, acabaram defenestrados pelo mesmo eleitorado, que afinal se manteve fiel a Bolsonaro. O que ainda está por ser definido é se, agora afastado do poder, Bolsonaro conseguirá manter o comando de toda essa gente que foi eleita por ele, seja no Congresso, seja nos governos estaduais. Porque boa parte dessa gente será atraída pela força de gravidade do sistema, que não é pequena. 

JUSP – É possivel afirmar que, diante do que foi visto no 8 de janeiro, chegamos a um ponto sem retorno?
Cícero Araújo. Foto: Francisco Emolo/Arquivo Jornal da USP

Cicero Araujo – Creio que isso é válido para os que compõem as partes mais centrais da cebola (para repetir a imagem usada por Hannah Arendt). Esses já se encontram num ponto de não retorno. O destino deles é, ou emplacar o projeto autoritário que promovem, ou retornar “à lata de lixo da história”. Isto é, crescer ou desaparecer. Quanto às camadas mais externas, que compõem a grande maioria do movimento e do eleitorado hoje votando na extrema direita, é claro que podem vir a se arrepender no futuro e retornar ao campo democrático, ainda que mantendo convicções de direita, mas não mais extremistas. Para que isso venha a acontecer, porém, será preciso que a democracia seja capaz de lhes oferecer uma saída, uma alternativa. Numa palavra, será preciso que a democracia funcione melhor do que vinha funcionando, antes da eclosão dessa onda autoritária.


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