Revista Estudos Avançados mostra os desafios da cidade de São Paulo às vésperas da eleição municipal

Publicação do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP traz também dossiê sobre inteligência artificial e seus impactos na sociedade

 22/08/2024 - Publicado há 4 meses     Atualizado: 30/08/2024 às 14:30

Texto: Ricardo Thomé*

Arte: Beatriz Haddad**

“O principal desafio à governança desta cidade reside justamente em promover desenvolvimento sustentável com equidade e justiça social.” É assim que o Editorial da edição número 111 da revista Estudos Avançados, que acaba de ser lançada, define o atual panorama da cidade de São Paulo em ano de eleições municipais. Publicada pelo Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, a revista aborda esse tema no dossiê Eleições Municipais em São Paulo: Problemas e Desafios, que traz 15 artigos de diferentes autores. A mesma edição inclui ainda o dossiê Inteligência Artificial: Democracia e Impactos Sociais, com cinco artigos sobre essa nova tecnologia e seus efeitos na sociedade. A revista está disponível gratuitamente na plataforma Scielo.

No dossiê sobre as eleições em São Paulo, Estudos Avançados destaca questões diretamente relacionadas à realidade paulistana, como o gerenciamento de recursos da cidade no contexto do neoliberalismo, o envelhecimento da população, a mobilidade urbana, a desigualdade social e a necessidade de um desenvolvimento sustentável.

No artigo São Paulo metrópole: sustentabilidade com redução das desigualdades, um processo unitário, assinado por Claudio Dedecca e Cassiao Trovão – por exemplo -, os autores mostram que as duas ideias citadas no título não são conflitantes, mas complementares.  “Não se alcançará a sustentabilidade sem redução das desigualdades socioeconômicas”, escrevem. “Ambas são faces de um único processo socioeconômico que deverá ser conduzido pela sociedade contemporânea, caso ela se convença de que não vale a pena correr o risco de viver uma crise climática radical em poucas décadas.” Nesse contexto, os autores estabelecem três desafios principais: a complexidade da mudança para um sistema sustentável (que exige muito mais recursos do que no passado), a necessidade de novas políticas públicas sociais e de infraestrutura para maior integração e articulação social a longo prazo e o atraso das políticas públicas vigentes, que apontam muitos problemas e poucas soluções.

A origem das desigualdades na cidade é abordada no artigo Desafios da gestão municipal para redução das desigualdades na cidade de São Paulo, de Jorge Abrahão e Igor Pantoja. Segundo eles, a herança histórica no que diz respeito às desigualdades está vinculada, por exemplo, à industrialização incompleta, à manutenção de uma estrutura agrária concentrada e com pouco espaço para a agricultura familiar e a um desenvolvimento regional desigual. A participação popular e o olhar regionalizado seriam, na visão dos autores, um componente importante para a melhor destinação dos recursos pela prefeitura.

Reduzir a desigualdade na área da saúde é outra tarefa dos próximos administradores da cidade, como aponta o artigo  Desafios na gestão municipal do Sistema Único de Saúde no município de São Paulo, escrito por Aylene Bousquat e outros autores. Destacando que, “para assumir o papel de grande metrópole brasileira, São Paulo baseou-se em um modelo de desenvolvimento pautado pela intensificação e manutenção dos processos sociais de exclusão”, os autores advertem que “a implementação de políticas de saúde que assumam como objetivo a consecução dos princípios de solidariedade do Sistema Único de Saúde (SUS) é uma tarefa gigantesca, com desafios renovados a cada dia”. De acordo com o artigo, “o padrão de desigualdade social é marcante na cidade e se espelha, no caso da saúde, tanto no modo em que seus habitantes acessam os serviços de saúde bem como nos padrões de mortalidade, como ficou claro na pandemia de covid-19, quando se observou um gradiente positivo de mortalidade afetando as populações negras e/ou com piores indicadores sociais”.

 

"Não se alcançará a sustentabilidade sem redução das desigualdades socioeconômicas. Ambas são faces de um único processo socioeconômico que deverá ser conduzido pela sociedade contemporânea, caso ela se convença de que não vale a pena correr o risco de viver uma crise climática radical em poucas décadas."

Foto de fundo: Thomas Hobbs/Flickr

No artigo Urbanismo corporativo/urbanismo cooperativo: uma gestão responsável em São Paulo é possível?, escrito por Nadia Somekh, Bruna Fregonezi e Guilherme Del’Arco, a solução proposta para combater o que se chama de “urbanismo corporativo” é, justamente, o “urbanismo cooperativo”, que atuaria em conjunto com a sociedade civil e nas esferas do Poder Executivo e do Poder Legislativo para mitigar a vulnerabilidade social e dar maior atenção a áreas que, de fato, demandam recursos e atenção — tem-se como exemplo os CEUs (Centros Educacionais Unificados), presentes em diferentes comunidades da capital paulista e o pioneirismo do município em ações populares, como a tarifa zero nos transportes públicos. 

Ainda no que diz respeito à verticalização, O adensamento populacional é necessário, mas verticalização precisa ter limites e respeitar a memória e o ambiente de São Paulo, de Nabil Bonduki, reconhece que o adensamento populacional existe e continuará existindo, mas aponta que, diante disso, deve haver reserva para a habitação social e o foco em promovê-lo em áreas bem servidas de infraestrutura e próximas aos empregos e às oportunidades de trabalho, por meio do ajuste da regulação complementar e com respeito ao patrimônio cultural, ambiental e urbano.

Ainda sobre a ocupação dos espaços públicos, o Vale do Anhangabaú, no centro, é destaque do artigo Percepção crítica sobre a desestatização do Vale do Anhangabaú a partir de 2021, de André Sauaia e Anália Amorim. Palco de grandes manifestações culturais e políticas ao longo da história, o local é definido como um microcosmo da cidade de São Paulo por condensar, em si, vários dos elementos que a cidade contém — bem como São Paulo é colocada, em outros artigos, como microcosmo social, político e econômico do Brasil republicano. Recentemente, o Vale do Anhangabaú passou por um processo de desestatização, o que é visto negativamente pelo artigo, devido à inerente inserção de grades com restrição de acesso a um lugar que os autores definem como “espaço público por vocação”. A proposta deles é que, antes de se fazer um processo de desestatização como esse, se invista na qualidade da gestão pública para que, após análise a médio prazo, façam-se as desestatizações, com cuidado na elaboração e na fiscalização de seus contratos.

“Projetos de desestatização de espaços públicos com tamanha dimensão coletiva, como o Anhangabaú, que não cumpram diretrizes estabelecidas, podem estar contribuindo para uma sociedade sem acesso ao direito à cidade e coibida de vivenciar sua história”

Show de Criolo e Emicida na comemoração do aniversário da cidade de São Paulo no Vale do Anhangabaú – Foto: overmundo (CC BY-SA)/via Wikimedia Commons

A questão da privatização de serviços públicos também é abordada na nova edição de Estudos Avançados. Os artigos Desafios da Educação de Jovens e Adultos no contexto do envelhecimento da população paulistana, de Marcelo Dante Pereira e Maria Clara Di Pierro, e A financeirização da velhice e a convergência entre Estado e mercado, de Guita Grin Debert e Jorge Félix, discutem a participação cada vez menor do Estado em um cenário no qual mais da metade da população envelheceu endividada e muitos deles ainda seguem endividados, recorrendo, por vezes, a mecanismos como o cheque especial, os empréstimos pessoais e os créditos consignados, sem que o Estado aja, de alguma forma, como fiador. Os planos de saúde são um custo, como aponta o artigo de Guita Debert e Jorge Félix: “O freio à financeirização da velhice na área da saúde se faz urgente diante da incapacidade financeira de uma parcela em crescimento da população brasileira para honrar essa dívida, mesmo a classe média”.

Com cada vez mais idosos e uma transição demográfica em estágio avançado, a educação dessa população também se faz presente como desafio, uma vez que o modelo de EJA (Educação de Jovens e Adultos) adotado por São Paulo é baseado em uma experiência da França dos anos 1970, não levando em conta fatores como a alta taxa de analfabetismo, a baixa escolarização e a baixa permanência da população idosa brasileira na educação, seja porque o método não se aplica à sua realidade, seja porque está desatualizado. No seu artigo, Marcelo Pereira e Di Pierro sugerem que a acessibilidade (quanto a transportes, horários e aulas), a adaptação às tecnologias e metodologias de ensino e a superação do etarismo sejam medidas aplicadas nesse tema, e que seja dada maior atenção ao EJA nas políticas de educação básica.

Entre os outros artigos publicados no dossiê sobre eleições em São Paulo estão Governança do orçamento de São Paulo revisitada pós 2014  Da escassez à sobra de recursos; Polarização, desigualdade e pobreza: dilemas e desafios do mercado de trabalho na cidade de São Paulo; e Medo, violência e política na cidade de São Paulo: a quem cabe decifrar a Esfinge da Segurança Pública?.

Inteligência artificial: como fazer da ferramenta um meio seguro de promoção da democracia

O dossiê Inteligência Artificial: Democracia e Impactos Sociais, também publicado na nova edição da revista Estudos Avançados, tem como foco a mitigação de riscos envolvendo essa tecnologia em franca ascensão, visando entendê-la da forma mais útil possível para sua aplicação na gestão urbana. O primeiro artigo, Tomada de decisão nas organizações: o que muda com a Inteligência Artificial?, de Abraham Sin Oih Yu e outros autores, discute a interação entre a IA e o ser humano nas decisões e seu impacto sobre o mercado de trabalho. Ainda que, no momento, o uso da IA nas empresas esteja mais ligado à automação de tarefas já existentes — e não à criação de novas —, esse processo, que deve demorar a se consolidar, trará, segundo o artigo, impactos sociais complexos, heterogêneos geograficamente e por profissão. Se por um lado os maiores investimentos na IA começaram por uma maior facilidade de acesso à tecnologia, aliada às necessidades de negócio e a impactos da pandemia de covid-19, por outro lado a gestão do capital humano, os recursos tecnológicos, o acesso a dados digitalizados e o entendimento das implicações competitivas ainda são desafios para as organizações que a adotam.

A aplicação da IA nas empresas está 70% vinculada ao ramo de operações, o que corrobora com a tese do artigo. Na saúde, por exemplo, a utilização ainda é baixa e, geralmente, para apoiar a decisão dos médicos. Nesse sentido, o artigo é enfático ao afirmar que o foco deve estar numa perspectiva que vai além da tecnologia, atendo-se aos “casos de uso” da gestão organizacional:

“Os resultados [das pesquisas] permitem uma nova perspectiva sobre a penetração da IA em locais de trabalho e, consequentemente, o grau de substituição de tomadores de decisão humanos, novas possíveis configurações e papéis entre ambos, complementaridades ante diferentes desafios de decisões organizacionais, ou mesmo novas formas de se organizar e decidir”

A seguir, o artigo Estatísticas públicas, Big Data e Inteligência Artificial: o caso da Plataforma Global da ONU, de Oscar Arruda d’Alva e Edemilson Paraná, discorre sobre a importância dos INEs (Institutos Nacionais de Estatística) para gerir aspectos demográficos, econômicos, sociais, ambientais e políticos desde que foram implementados, no século passado. Diante da ascensão do neoliberalismo em meados dos anos 1980, porém, a financeirização da economia, a desregulamentação e o livre mercado trouxeram, para os autores, uma maior quantificação do mundo, em que o mercado é quem comanda as relações. Diante dessa constatação, o desenvolvimento cada vez maior de tecnologias de Inteligência Artificial pelas Big Techs e demais empresas privadas pode levar a um “poder assimétrico de grandes corporações privadas sobre as bases materiais e cognitivas das IAs, mais do que técnicas”. A partir daí, o receio dos autores se dá no quanto esse monopólio privado da tecnologia pode levar à influência exacerbada das pessoas, sem que haja, por ora, regulamentação, proteção de dados e padrões de qualidade estabelecidos sobre o tema.

Uma mão sobre um aparelho eletrônico

Inteligência artificial – Foto: Imagem de vecstock no FreepikVecstock/Freepik

Foto de fundo: Freepik

O dilema referente à maior ou menor intervenção do Estado no desenvolvimento e nos usos das IAs é o foco de Inteligência Artificial explicável para atenuar a falta de transparência e a legitimidade na moderação da Internet, artigo assinado por Thomaz Palmeira Ferraz e outros autores. Para eles, as redes sociais, antes moderadas por seres humanos, chegaram a um estágio no qual a presença da tecnologia na função se faz necessária. Não há, porém, limites éticos e jurídicos previamente definidos a respeito — os autores veem a legitimidade, a transparência, o controle e a capacidade de execução como requisitos essenciais. Uma vez que o Estado não pode fazer o trabalho sozinho, a ideia está no desenvolvimento de um padrão de moderação que explique as decisões das IAs — a fim de evitar, por exemplo, a influência de padrões preconceituosos de análise, já que a tecnologia é programada por seres humanos — e no desenvolvimento de IAs “auditoras”, que atuem em paralelo na análise das atitudes das demais.

Democracia aumentada: Inteligência Artificial como ferramenta de combate à desinformação, artigo de Alexandre Alcoforado e outros autores, traz o debate dos riscos do uso da IA para o campo da informação e da política. Segundo o texto, ainda que a atuação política no exercício do cargo não tenha, por si, sofrido grandes alterações, a relação do público com os temas políticos por meio das redes sociais sofreu transformações profundas. Os espaços de informação e de discussão e exposição de opiniões se tornaram praticamente ilimitados, o que é democrático, mas também abre espaço para a disseminação de desinformação, por exemplo. O artigo fala, então, em uma junção entre desafio e oportunidade: “Combater a disseminação de desinformação; e utilizar esse novo meio como um serviço à democracia para aproximar a política dos cidadãos e promover o debate sobre as principais questões e importantes decisões”. Para os autores, isso se torna ainda mais difícil com o advento do ChatGPT, lançado pela OpenAI em 2022: “Além de potencializar o alcance de notícias falsas, a tecnologia agora é capaz de criar conteúdo”. Em um contexto no qual as informações estatais são de difícil compreensão para grande parte da população e no qual o Big Data se consolida com maior volume, variedade e velocidade, a proposta é que as agências estatais desenvolvam uma tecnologia que processe os dados produzidos no corpo legislativo, extraindo o conhecimento político por trás e resumindo, de forma explicada, aquilo que importa, para cidadãos e organizações, de forma menos ruidosa do que se faz hoje. Assim, seria utilizado o potencial da IA de aprendizagem e processamento para, a longo prazo, desenvolver a confiança da população na democracia, que tem perdido a credibilidade.

Revista Estudos Avançados, número 111, publicação do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, 432 páginas. A revista está disponível gratuitamente na plataforma Scielo (acesse aqui).

Mais informações podem ser obtidas no IEA pelos telefones 3091-1675 e 3091-1676.

*Estagiário sob supervisão de Roberto C. G. Castro

**Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado


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