Reflexões sobre este breve 2021

Para uns, janeiro é a continuação de um ano ruim. Para outros, chance de um recomeço, de uma renovação, de esperança com vacina. Vale pensar um pouco a respeito

Fotomontagem de Jornal da USP sobre fotos de Pixabay, Wikimedia Commons e The White House via Wikimedia Commons/Domínio público

29/01/2021
Por Marcello Rollemberg

Oficialmente, o ano gregoriano de 2021 começou no dia 1º de janeiro, uma sexta-feira, se juntando tardiamente ao ano 5781 do calendário judaico e ao islâmico 1443. Além de fazer companhia provisória ao ano lunar chinês de 4717, já que em 12 de fevereiro os orientais comemorarão o novo ano, aquele que tem como símbolo regente o Boi – mas sem ilações ou ironias exageradas com o líder do gado, por favor.

Mas quando o primeiro mês do novo ano está entrando para a história e a folhinha já vai sendo virada, talvez reste uma pergunta: o que é 2021? Começou mesmo ou, como cismam alguns – em um misto de pilhéria cronológica e pavor justificado -, estamos vivendo um revival de 2020, o improvável mês 13 daquele ano que parece insistir em não acabar, inaugurando, na verdade, uma segunda temporada que ninguém quer assistir ou vivenciar?

Porque o novo ano começou como terminou o velho: regido pela égide da tríade “máscara-álcool em gel-distanciamento social”. E tem que ser assim mesmo, tem que continuar assim até que o coronavírus seja apenas – e tão somente – um verbete de enciclopédia ou do Wikipédia. Mas esse bicho traiçoeiro e mutante continua entre nós. O mundo vai fechar o mês de janeiro com mais de 100 milhões de infectados e cerca de 2,2 milhões de pessoas mortas. No Brasil, são mais de 9 milhões de doentes e cerca de 200 mil mortes – e o contador continua a girar, com a média móvel de casos em alturas cada vez mais indesejáveis. E ainda há quem negue os fatos.

O álcool em gel, aliado na luta contra a covid-19 / Foto: 123RF

Leio em um livro do autor argentino, radicado na Espanha, Andrés Neuman: “A obsessão por potes de álcool em gel e por máscaras só vem aumentando. Ninguém sai à rua, se é que sai, sem alguma dessas coisas ou com todas. (…) Os recintos fechados argentinos se enchem de gente, de dois tipos: cada vez que um mascarado cruza com alguém sem máscara, se olham com desconfiança. Se estudam. Se julgam. Avaliam seus estados. Aquele com máscara pensa: ‘Não vais me contagiar, seu infectado’. Já o sem máscara pensa diferente: ‘Isso não vai te servir de nada, alarmista’. Cada um, a seu modo, inocula ao próximo o vírus mais comum e perigoso: o da natureza humana”. Ele está falando da covid-19? Não. O texto é de 2009, em meio ao surto global da gripe H1N1, que matou oficialmente quase 20 mil pessoas. A história se repete como farsa ou tragédia?

Mas há boas notícias em meio à pandemia neste janeiro. Porque há vacina. Para todo mundo? Infelizmente, não. Mas há vacina. No Brasil há vacina, mesmo com todas as pusilânimes rusgas políticas que embotam e obstaculizam aquilo que é mais importante: salvar a população. 

Foto: Gov. Estado de SP / Fotos Públicas

Há vacina. A de Oxford com a Fiocruz. A Coronavac, parceria entre a China e o Instituto Butantan. E a possibilidade (ainda remota) de chegar a russa Sputnik V. Há vacina, afinal. Para todo mundo? Infelizmente, também não – longe disso. Mas são cerca de 1,5 milhão de brasileiros vacinados, pouco mais de 0,7 % da população. Quase nada. Mas um começo.

E negando a teoria negacionista e reptiliana, não, ninguém virou jacaré.

O Brasil é um país curioso, com tudo virando discussão acalorada, muitas vezes sem embasamento. Mas discute-se. Já discutimos futebol, mas isso foi em outros tempos. Mais recentemente, recitávamos os nomes dos ministros do STF como quem escala o time do coração. Hoje, acompanhamos a disputa por qual é a vacina mais eficaz, com gente em crise aguda de miopia social desconfiando até da tal vacina russa por ela trazer em seu nome um fragmento do nome do líder russo, Putin. Livre pensar é só pensar, já disse Millôr Fernandes. Mas tudo tem limites.

Mas temos vacina, e isso é o que realmente importa. E temos um nome: Mônica Calazans, a primeira brasileira a ser vacinada em território nacional, no dia 17 de janeiro. No brasão da Universidade de São Paulo está o dístico: scientia vinces. “Vencerás pela ciência”. Sim, a ciência vencerá. “Apesar de”, como já escreveu Clarice Lispector. 

Enfermeira Mônica Calazans recebe a primeira dose da vacina contra o Covid-19 - Foto: Govesp

Porque haja ciência necessária quando as pessoas morrem sem oxigênio em hospitais de Manaus e no interior do Amazonas. Afogados no seco. O ministro da Saúde foi despachado para a capital amazonense sem passagem de volta, até resolver o problema. Porque, no caso dele e do governo, a questão vai além da ciência. É competência que se diz? Janeiro está sufocante para os manauaras.

UBS Morro da Liberdade recebe doações do Fundo Manaus Solidária - Fotos Valdo Leão / Semcom

Quosque tandem abutere, Catilina, patientia nostra?, bradava Cícero do alto da tribuna do senado romano – e com a paciência no limite – contra os impropérios e conspirações urdidas por Lúcio Sérgio Catilina. Tudo é uma questão de nomes…

Mas tudo também é história – e como escrevemos essa história, que elementos usaremos para contá-la. O poeta chileno Pablo Neruda ensinou: “Escrever é fácil. Você começa com uma letra maiúscula e termina com um ponto final. No meio você coloca as ideias”.  Mas o quanto temos de ideias para preencher esta nova história de 2021?

Talvez Joe Biden, que assumiu a Casa Branca em 20 de janeiro, seja uma boa ideia. Pelo menos já começou a desfazer a história torta que Donald Trump tentou escrever durante quatro anos. Os Estados Unidos voltaram ao Acordo de Paris e Biden vai derrubar o muro absurdo que seu antecessor começou a construir na fronteira com o México. Sem toques de trombetas, mas com uma caneta na mão.

Amanda Gorman - Foto: Shawn Miller via Wikimedia Commons/Domínio público

Outra boa ideia, ainda ligada à posse de Biden. Esta com nome e sobrenome: Amanda Gorman, a poeta afro-americana de 22 anos que homenageou o presidente recém-empossado. Linda e mignon, ela falou em seu poema The hill we climb (“A colina que subimos”) sobre o resgate do poder das palavras. E palavras são ideias – e não ideologia.

A democracia pode se atrasar periodicamente, mas nunca será derrotada para sempre. Nesta verdade, nesta fé em que confiamos, temos os olhos postos no futuro. A história está de olho em nós. Esta é a era da justa redenção”, disse Amanda. 

Mas a democracia americana – paradigma para o mundo, como se diz – esteve ameaçada, quando insanos extremistas (desculpe a hipérbole ou redundância) tomaram de assalto o Capitólio, a sede política dos Estados Unidos. Era 6 de janeiro e cinco pessoas morreram. Em 11 de setembro de 2001, o voo 93 da United Airlines partiu do aeroporto de Newark, em Nova Jersey, com destino a São Francisco. Foi desviado de sua trajetória por terroristas da Al-Qaeda e acabou caindo na Pensilvânia. Fala-se que os terroristas queriam levá-lo para Washington e jogá-lo contra o Capitólio, como já tinha acontecido com o World Trade Center e o Pentágono. Os americanos temiam o ataque estrangeiro pelo ar. Veio por terra, com americanos brandindo bandeiras e de armas na mão.

“Às vezes quero crer mas não consigo
É tudo uma total insensatez.
Aí pergunto a Deus, escute amigo,
Se foi para desfazer, por que é que fez?”,

cantaram Vinícius de Moraes e Toquinho em Cotidiano Número 2.

Porque, muitas vezes, é necessário desfazer o feito, corrigir e seguir por caminhos melhores. Ou, como disse o escritor americano Alvin Toffler, estudioso da revolução digital e dos impactos da tecnologia na sociedade: “O analfabeto do século 21 não será aquele que não consegue ler e escrever, mas aquele que não consegue aprender, desaprender e reaprender”. Isso vale para a tecnologia mas, principalmente, para a vida.

Para citar Clarice de novo:

"Enquanto eu tiver perguntas e não houver respostas, continuarei a escrever"

E continuamos precisando de respostas. Respostas para a pandemia, respostas para a sociedade, respostas para um janeiro que, por vezes, pareceu reprise de um filme ruim.

Talvez uma resposta possa estar nos versos iniciais do genial poema Tabacaria, de Fernando Pessoa:

“Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo".

Pois somos, todos nós, criados daquele material com o qual os sonhos são feitos. Então, não custa sonhar. E tornar o que se sonha realidade, por mais que pareça (e seja) um clichê. Porque janeiro já foi, mas ainda há outros 11 meses pela frente. São 334 dias, 8.016 horas. Ainda dá tempo.


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