A cidade mineira de Cordisburgo conta a história da infância do escritor João Guimarães Rosa, o Joãozito – Foto: Atílio Avancini

Quando o mais erudito e popular escritor brasileiro é o menino Joãozito

Livro de Camila Rodrigues revela o sertão de Guimarães Rosa entre as cores da imaginação de crianças

 21/02/2022 - Publicado há 2 anos     Atualizado: 22/02/2022 as 18:51

Por Leila Kiyomura

Arte: Simone Gomes

Quando o leitor olhar a capa do livro da historiadora Camila Rodrigues, Escrevendo a Lápis de Cor: Infância e História na Escritura de Guimarães Rosa, logo vai perceber que a sua leitura reserva um encanto. Uma estrela, um infinito, uma menina de braços abertos, bem do jeito que as crianças pintam, se equilibrando num lápis de cor. Essa imagem, criada por Márcio Reiff, tem como referência os desenhos das capas dos cadernos de Rosa que a autora pesquisou.

Curioso também é o som e o ritmo das palavras rosianas. Um acalanto, como a própria autora define, que leva à descoberta do infinito mágico de um outro sertão. “Rosa é, para mim, o maior escritor brasileiro do século 20, o mais poético, o mais erudito e ao mesmo tempo o mais popular. Naquela literatura cheia de oralidade, repleta de memórias das narrativas multicoloridas que os mais velhos contavam na sua infância, agora somos nós, leitores, que iremos escutar, e ouvir o João. Vamos nos formando como leitores/ouvintes de Rosa”, comenta Camila. “Ele é um autor que solicita que não apenas se leia, mas que se decodifique as palavras. Exige que o receptor participe da obra o tempo todo, que o ouça, que performe com ele, que brinque de montar palavras e narrativas. Isso as crianças logo percebem como é para fazer.”

Escrevendo a Lápis de Cor, lançado pela Desconcertos Editora, é resultado do doutorado de Camila Rodrigues em História na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, sob orientação do professor Elias Thomé Saliba. A pesquisa traz uma abordagem inusitada, aliando história e literatura. “Partindo do universo das crianças na obra de Guimarães Rosa, a autora parece muito segura dos caminhos que abre na direção de uma autêntica história cultural da infância”, argumenta o professor Saliba no prefácio do livro. 

A pesquisadora Camila Rodrigues – Foto: Arquivo pessoal

“Sondando uma documentação minuciosa, composta por correspondência de cartões-postais, as três séries dos 30 cadernos manuscritos de Guimarães Rosa, escritos dispersos em periódicos, desenhos ou sugestões de imagens e capas feitas pelo próprio escritor e inúmeras outras fontes – além, é claro de amealhar toda a portentosa crítica de Rosa – quase que poderíamos dizer, com Willy Bolle, que Camila Rodrigues chegou bem perto de penetrar na ‘câmera íntima’ de criação do escritor”, acrescenta Saliba.

“Em todos os momentos, sem exceção, destaco que o interesse de Rosa era o de brincar com a linguagem, esse era seu maior prazer. Sempre.

A Capela São José, em Cordisburgo (MG), é patrimônio da cidade – Foto: Atílio Avancini

Para tratar a infância na literatura de João Guimarães Rosa, a autora dividiu o livro em cinco capítulos, que fluem em 312 páginas. O primeiro, História, Ficção e Literatura Através da Escritura de Guimarães Rosa, traz um breve panorama das relações entre história e literatura, desde a Antiguidade até as novas configurações na modernidade. O segundo, A Infância e as Linguagens Infantis no Mundo de Guimarães Rosa, traz a relação de Rosa com os universos infantis, destacando o seu tio Vicente Guimarães, também escritor, mas especializado em livros para crianças, que viveu a infância ao lado de Rosa. No terceiro, Os Cadernos e a Escritura Caleidoscópica de Rosa, está a pesquisa sensível dos 30 cadernos manuscritos do autor, os seus cadernos de anedotas que integram o acervo do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP e os cadernos de anotações que estão no Arquivo da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro. No quarto capítulo, As Quatro Meninas das Estórias, há a produção literária, através da  caracterização literária de crianças do sexo feminino. E no quinto capítulo, Os Periódicos e a Escritura Rosiana: Laboratório e Recepção, a autora mostra a repercussão que receberam os dois livros publicados na década de 1960: Primeiras Histórias, em 1962, e Tutameia (Terceiras Histórias), em 1967.

O escritor mineiro Guimarães Rosa – Foto: IEB/USP

A paulistana Camila Rodrigues foi buscar em suas pesquisas as diversas faces de Guimarães, decodificando o som, o sentido e a imensidão de cada frase. “A produção literária de Rosa é marcada pela busca de uma melhor compreensão da experiência cultural popular, que em sua obra é usada para dar forma a seus escritos”, explica. “As palavras escritas são coisas para se ver e ouvir, sendo que os textos rosianos possuem múltiplas e simultâneas características destacadas: as visuais e especialmente as sonoras, que resgatam a experiência vocal e as recheiam de magia, tornando-se, assim, verdadeiras palavras mágicas.”

Camila observa que essas  palavras-mágicas de Rosa, mesmo  escritas, só adquirem sentido se observados seus aspectos de enunciação, como o ritmo, resgatando o que nela ainda resta da linguagem do corpo ou a voz. “É algo bastante semelhante ao observado na comunicação de crianças que começam sua aventura pelo verbal. Por isso é tão importante a frase que transcrevi no segundo andar da exposição permanente do Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, em 10 de outubro de 2010, e usei muito no texto do livro: ‘Vários processos de formação dos neologismos de Guimarães Rosa são encontrados na fala de crianças que estão aprendendo o português como língua materna’”. Camila destaca: “Como disse Todorov, a criança pronuncia as palavras como se formulasse uma encantação mágica. Se chama a mãe, o pai, a pessoa aparece. Quando ela pede comida, a mesma coisa. É essa magia que Rosa desejava ativar nas palavras que escreveu. Em geral o seu  método, ele mesmo explicou em entrevista a Güinter Lorenz, era fazer as palavras voltarem a ser como eram quando nasceram, antes de se tornarem chavão ou clichê”.

Um dos vários cadernos de anotações de Joào Guimarães Rosa – Foto: Cecília Bastos/ USP Imagens
Fotos do acervo de João Guimarães Rosa, no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP – Foto: Cecília Bastos/USP Imagem
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A historiadora conta que, para entrar nesse mundo encantado de relação infantil com a linguagem, quando escrevia, Rosa brincava de ser um menino. “Ele montava todo um cenário infantil, com seus lápis de cor e cadernos de brochura, onde brincava com as palavras, tudo isso na intenção de tentar despertar novamente a criatividade infantil.”

“Rosa foi um menino calmo e míope que, depois que aprendeu a ler, com sete anos incompletos, era difícil tirá-lo da frente dos livros, e atraí-lo para reinações, a menos que essas proporcionassem algumas guloseimas.”

A historiadora destaca as memórias de Vicente Guimarães, escritor e tio de João Guimarães Rosa. Mas não um tio clássico, era apenas dois anos mais velho que o sobrinho. Ele relata: “Cordisburgo, em nosso tempo, foi o burgo onde nascemos e vivemos a primeira infância”. Sobre o sobrinho, observa: “Rosa foi um menino calmo e míope que depois que aprendeu a ler, com sete anos incompletos, era difícil tirá-lo da frente dos livros, e atraí-lo para reinações, a menos que essas proporcionassem algumas guloseimas.”

O professor Elias Thomé Saliba, leitor dedicado à obra de Guimarães, conta que foi prazeroso orientar a pesquisa de Camila Rodrigues. “Especialmente porque se tratava de recortar o tema das personagens meninas a partir do ângulo de uma história cultural da infância. Um campo no qual o humor exerce um papel fundamental: como experimentam ver o mundo pela primeira vez, sobretudo antes do letramento, as crianças dinamizam e renovam os códigos humorísticos de uma determinada cultura. Como ainda elas não ingressaram na tortuosa linguagem dos adultos, cheia de tropos, desvios, ironias, metáforas, metonímias etc., elas experimentam a defasagem entre os nomes e as coisas de forma direta. Dessa incongruência nasce o humor, que, nesse aspecto, é o retorno ao jogo das palavras em sua pureza.”

Para o professor, a pesquisa de Camila Rodrigues traz uma nova face da imaginação de Rosa: “Apesar de a fortuna crítica do escritor ser incomensurável, acredito que o livro ilumina uma parte importante do universo de criação de Guimarães Rosa, que une, de um lado, o processo de estranhamento inerente à aquisição da linguagem e, de outro, a infância, com o seu olhar único de ver tudo como se fosse a primeira vez, nomear pela força da espontaneidade e, no limite, até mesmo desenferrujar a linguagem pública”.

Para a autora, o livro apresenta aos leitores um artista. “Divertido, poético, engraçado, um adulto que se permitia ser menino, na vida, quando escrevia, quando brincava com as netas. Em todos os momentos, sem exceção, destaco que seu interesse era o de brincar com a linguagem, esse era seu maior prazer. Sempre.”

A capa do livro de Camila Rodrigues, com arte de Márcio Reiff – Reprodução

Escrevendo a Lápis de Cor: Infância e História na Escritura de Guimarães Rosa, de Camila Rodrigues, Desconcertos Editora, 312 páginas, R$ 55,00


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