“Polarização não é um processo unicamente brasileiro”

Esfera pública está se fragmentando em dois campos opostos em vários países, e um desses campos pode ser o populismo, afirma o novo coordenador da Cátedra Oscar Sala da USP, professor Pablo Ortellado

 11/08/2023 - Publicado há 1 ano     Atualizado: 16/08/2023 às 17:02

Texto: Luiz Prado
Arte: Carolina Borin*

O professor Pablo Ortellado assume o lugar do professor Eugênio Bucci na Cátedra Oscar Sala da USP - Foto: Wikipedia

Pablo Ortellado é o novo coordenador acadêmico da Cátedra Oscar Sala da USP. Filósofo e professor do Curso de Gestão de Políticas Públicas da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, Ortellado assume o lugar deixado por Eugênio Bucci, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP.

Bucci sai da coordenação para tomar assento no Comitê de Governança da cátedra, que é uma parceria entre a USP e o Comitê Gestor da Internet (CGI.br), operacionalizada pelo IEA e o Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br). Criada em 2020, sua atuação foca as tecnologias digitais e o acesso à informação e comunicação.

Ortellado é doutor pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e pós-doutor pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Coordena o Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação (Gpopai) e é colunista do jornal O Globo. Foi o produtor do podcast Guerras Culturais: Uma Batalha pela Alma do Brasil e assinou durante quatro anos coluna no jornal Folha de S. Paulo.

Com ênfase em estudos e análises que envolvem política e mídias digitais, o professor está atualmente à frente de três pesquisas. Uma delas, intitulada Curtidas no Facebook Estão Polarizando a Sociedade?, teve início em 2022 e estuda se as curtidas em publicações da rede social podem impactar na escolha da identidade de seus usuários.

Podcast Guerras Culturais foi produzido pelo professor Pablo Ortellado em 2022 - Reprodução/Spotify

Já a pesquisa A Esfera Pública Digital: Desarranjos e Regulação vem, desde 2021, observando a degradação dos espaços digitais nos quais a sociedade civil realiza seus debates políticos. O trabalho procura dar sequência a estudos do Gpopai, expandindo a área de investigação para a América do Sul.

Ortellado coordena ainda a pesquisa Privacidade e Comunicação para Mobilização, um projeto iniciado em 2017 que busca analisar as interações entre comunicação e mobilização social no Brasil. O estudo relaciona a opinião das pessoas que se mobilizam nas ruas de São Paulo e a interação e consumo de notícias nas mídias sociais brasileiras.

O professor é coautor dos livros Sobrevivendo nas Redes: Guia do Cidadão (2018), Vinte Centavos: a Luta Contra o Aumento (2013) e Estamos Vencendo: Resistência Global no Brasil (2004). É também co-organizador dos livros Movimentos em Marcha: Ativismo, Cultura e Tecnologia (2013) e O Mercado de Livros Técnicos e Científicos no Brasil: Subsídio Público e Acesso ao Conhecimento (2008).

"Embora não saibamos como sair das guerras culturais, sabemos que nos engajar nelas não é uma saída. Elas não terão um vencedor e não vamos resolver os problemas por meio dessas guerras."

Acesso acadêmico às mídias sociais

Mesmo antes de assumir o cargo de coordenador acadêmico, Ortellado já vinha se envolvendo com as atividades da Cátedra Oscar Sala. Ele foi um dos organizadores do evento O Acesso Acadêmico a Dados de Mídias Sociais, que aconteceu em 30 de junho deste ano no Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP e contou com a participação do deputado federal Orlando Silva, relator do Projeto de Lei (PL) 2.630, batizado de Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet.

Como o próprio nome diz, o projeto busca aumentar a transparência e a responsabilidade das plataformas de mídias digitais, como Google, Facebook, Instagram e X (ex-Twitter), no intuito de combater fake news e ameaças à democracia. Com o evento, a intenção de Ortellado foi introduzir nos debates sobre o PL o tema do acesso de pesquisadores acadêmicos aos bancos de dados dessas mídias sociais.

Desde o escândalo do Facebook-Cambridge Analytica – o caso em que a empresa de consultoria britânica teria comprado acesso a informações pessoais de milhões de usuários daquela rede social, divulgado em 2018 -, as plataformas de mídias sociais passaram a restringir o acesso de pesquisadores aos seus bancos de dados. Com isso, trabalhos no mundo todo, como os realizados pelo Gpopai, se viram ameaçados com o bloqueio às fontes de pesquisa. A União Europeia (UE) aprovou em 2022 a Lei de Serviços Digitais, uma legislação que busca garantir a transparência e responsabilização das mídias sociais e também prevê o acesso a dados de interesse público das mídias sociais para a comunidade científica. Os Estados Unidos também têm uma lei similar em curso, com a mesma abrangência da regulamentação europeia e apontamentos para o uso de dados pela comunidade científica.

O presidente da Câmara, Arthur Lira, decidiu em maio de 2023 retirar de pauta a votação do Projeto de Lei (PL) 2.630, conhecido como PL das Fake News - Foto: Lula Marques/Agência Brasil

É justamente a proposição europeia que serviu de inspiração para as propostas feitas por Ortellado e outros especialistas de incrementar a redação do PL 2.630, buscando garantir o acesso democrático dos pesquisadores às informações. “A redação anterior do PL era muito sumária sobre esse acesso aos dados. Nossa preocupação era que, na ausência de um mecanismo bem definido e estabelecido, os pesquisadores da UE teriam acesso aos dados do Google, Facebook, Instagram e X e nós no Brasil não teríamos, porque não estaria previsto em lei.”

De acordo com o professor, o deputado federal já devolveu ao grupo uma nova versão do projeto de lei, com um novo capítulo abordando a garantia de acesso aos dados. A expectativa é que o PL seja aprovado ainda em 2023. “A partir do ano que vem os pesquisadores da Europa já poderão pedir acesso aos dados e nossa ideia é que não fiquemos defasados em relação aos colegas da UE.”

Polarização política

Ao lado das reflexões sobre os impactos sociais da inteligência artificial, tema relacionado aos trabalhos do próprio titular da Cátedra Oscar Sala, o professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Virgílio Almeida, Ortellado adianta que terão ainda protagonismo em sua coordenação assuntos que já vêm mobilizando suas pesquisas. É o caso das próprias mídias sociais, com ênfase no entendimento do fenômeno da polarização política. “Precisamos acompanhar as mídias sociais desde a regulação, seu impacto na polarização da sociedade e na saúde mental, principalmente dos adolescentes”, conta o professor.

De acordo com Ortellado, a hipótese hoje dominante nos estudos sobre a internet tende a associar a polarização política à ideia de bolhas. Nessa perspectiva, os algoritmos estariam nos empurrando para relações com pessoas muito parecidas com nós mesmos, o que explicaria o aumento da polarização. Mas Ortellado aponta que as pesquisas empíricas vêm revelando a insuficiência desses estudos para explicar o fenômeno.

Nesse sentido, revela o professor, o trabalho com as curtidas no Facebook procura reorientar as análises a partir de uma abordagem diferente. A busca é por entender como o uso do Facebook e outras mídias sociais está hiperpolitizando as pessoas, a partir do que Ortellado denomina colapso de contexto.

Virgílio Almeida - Foto: Leonor Calasans/IEA-USP

O professor Virgílio Almeida, titular da Cátedra Oscar Sala - Foto: Leonor Calasans/IEA-USP

Em nossas vidas, conta o docente, temos diferentes dimensões e para cada uma delas adotamos uma postura diferente, uma persona. Não nos comportamos da mesma maneira no trabalho, com a família e com os amigos. Nas mídias sociais, entretanto, essas diferentes maneiras como nos relacionamos entram em colapso, porque não conseguimos separar os contextos. Ao fazer uma postagem, esta chega tanto para a família quanto para os amigos e os colegas de trabalho. Assim, o contexto é perdido porque não é possível controlar a audiência nas redes e direcionar a mensagem para determinados públicos.

“Quando há o colapso do contexto, uma dimensão da vida se sobressai, porque há um grupo de militantes que, ao dar like, reforça essa dimensão sobre as outras”, explica Ortellado. Assuntos e abordagens com muitas curtidas estimulariam os usuários a continuar publicando sobre esses temas. Nesse cenário, as mensagens políticas seriam aquelas que mais ganhariam audiência, graças a grupos organizados que sentem a obrigação política de reforçar essas mensagens. Isso faria, consequentemente, que a dimensão política ganhasse destaque sobre as outras, contribuindo para a polarização.

Mas existem outras instâncias que alimentam o fenômeno e também estão sendo analisadas pelo professor. Uma delas corresponde a uma dinâmica que Ortellado considera muito particular dos grupos de direita no Brasil: os cursos on-line de formação política.

Enquanto em países como os Estados Unidos são relevantes o recrutamento e a formação de quadros da direita em espaços universitários e think tanks, no Brasil o destaque é para cursos pagos, inspirados muitas vezes nas experiências do guru Olavo de Carvalho, morto em 2022. São formações muito diversas, relata o professor, que passam por conteúdos de política geral, coaching financeiro, filosofia, oratória, guerras culturais, disputas em temas como aborto, união homoafetiva e descriminalização das drogas. “Estamos tentando medir a abrangência e a diversidade desses cursos, fazendo um trabalho etnográfico de mapeamento.”

O embaixador Sérgio Amaral fala em jantar com Jair Bolsonaro e outras autoridades em Washington, D.C., nos Estados Unidos, em 2019. Bolsonaro sentou ao lado de Olavo de Carvalho - Foto: Reprodução/Alan Santos via Wikimedia Commons

Como mostra uma simples visita aos portais de notícia, mídias sociais e jornais impressos, essa polarização não é um processo unicamente brasileiro. E Ortellado chama a atenção para essa espécie de “movimento histórico” que se desenvolve globalmente. “Está acontecendo na Argentina, na Colômbia, nos Estados Unidos, na França, na Inglaterra, e é realmente muito parecido. Vemos a esfera pública se fragmentando em dois campos e o aumento da polarização. E um desses polos tende a ser o populismo, às vezes levado até a extrema direita.”

Por isso, o docente salienta que é preciso “desnacionalizar” as explicações sobre o crescimento da polarização. No caso brasileiro, Ortellado sustenta que não é possível atribuir somente às manifestações populares de junho de 2013, por exemplo, o surgimento do fenômeno. “Existem várias linhas de explicação e estamos nos esforçando para não nacionalizar o entendimento da polarização política brasileira”, afirma. “Há gente olhando para a crise econômica de 2008, para o papel das mídias sociais, para as guerras culturais”, destaca.

Coautor de um livro (Vinte Centavos: a Luta Contra o Aumento) sobre o movimento surgido para barrar o aumento da passagem de ônibus que se transformou em marco do ressurgimento da mobilização política no País, o professor reconhece vínculos entre junho de 2013 e a ascensão do populismo no Brasil, mas frisa que não é possível traçar uma linha direta de causa e efeito. “Junho de 2013 despertou uma indignação que muitos anos depois Bolsonaro soube captar, mas de maneira indireta.”

Essa busca por explicações globais poderá ser acompanhada pelo público entre 30 de agosto e 1o de setembro no seminário internacional Direita Radical em Debate, evento organizado pelo Monitor do Debate Político no Meio Digital, projeto que integra o Gpopai, grupo coordenado por Ortellado, em parceria com o Centro Maria Antonia da USP. Além de pesquisadores da USP e de outras instituições brasileiras, o seminário terá a participação do cientista político holandês Cas Muddle, considerado um dos maiores especialistas em extremismo político e populismo nos Estados Unidos e na Europa (mais informações sobre o evento estão disponíveis aqui).

O seminário Direita Radical em Debate será realizado nos dias 30 e 31 de agosto e 1º de setembro no Centro Maria Antonia da USP - Imagem: PRCEU/Divulgação

Guerras culturais

Parte central desse processo de polarização estudado por Ortellado, as chamadas guerras culturais foram o tema do podcast Guerras Culturais: Uma Batalha pela Alma do Brasil, produzido pelo professor em 2022. O termo, surgido nos Estados Unidos, serve para descrever a entrada em cena de mobilizações da direita em torno de temas morais, religiosos e de costumes como aborto, legalização das drogas, armas e casamentos homoafetivos. Iniciadas no final dos anos 1980, envolvem o conflito entre duas visões morais: um conservadorismo orientado pela ideia de transcendência e autoridade divina e uma ideia laica, baseada na visão de progresso racional.

Foi essa guerra cultural que tomou o Brasil na última década, tendo proporcionado episódios como a mentira do “kit gay”, a censura da exposição Queermuseu e a censura à peça teatral O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu. “Menino veste azul e menino veste rosa”, a declaração da então ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos Damares Alves, e sua cruzada para impedir o aborto legal de uma criança de 10 anos vítima de estupro, foram outros capítulos bem conhecidos dessas batalhas.

O espetáculo teatral O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu - Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC

Sobre o tema, Ortellado diz que o podcast não pretendeu apontar uma saída, mas representou um esforço de entender o que está acontecendo e apresentar a análise para um público amplo. Menos a resposta para a pergunta de 1 milhão de dólares e mais um convite. “Embora não saibamos como sair das guerras culturais, sabemos que nos engajar nelas não é uma saída. Elas não terão um vencedor e não vamos resolver os problemas por meio dessas guerras. A saída passa por uma solução política que desintensifique esse conflito”, conclui o professor.

*Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado


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