“Nós somos leitoras.
Nós reagimos às obras de outras mulheres.
Nós rasgamos as obras delas para enxergar por dentro”Chris em Eu Amo Chris – Uma Pequena Coleção de Fracassos
Em 1997, o livro Eu Amo Dick, da escritora Chris Kraus, causou polêmica nos Estados Unidos. À época, a novela autobiográfica foi mal recebida pelo público, em especial pela exposição audaciosa dos desejos extraconjugais da autora. “Alguns escritores não são contemporâneos do seu tempo. Às vezes eles falam coisas que o seu tempo ainda não consegue processar”, afirma a professora Verônica Veloso, que leciona Artes Cênicas na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, sobre a obra. Sob direção de Veloso, a peça-manifesto Eu Amo Chris – Uma Pequena Coleção de Fracassos – apresentada pelo Coletivo Teatro Dodecafônico no Teatro da USP (Tusp) até 27 de outubro – responde ao livro a partir de uma nova perspectiva, redirecionando o amor de Dick a Chris.
No original, a autora mescla realidade e ficção para relatar a obsessão que desenvolveu, em conjunto com o marido, pelo crítico Dick Hebdige. Sem prezar pela privacidade dos personagens reais, ela conquistou fãs e detratores pela exposição honesta. Para Veloso, o texto de Kraus foi anacrônico neste sentido: “Naquele momento, a discussão sobre feminismo estava aquém da que a gente tem hoje”.
Quase 30 anos após o lançamento do livro, o Coletivo Teatro Dodecafônico acreditou ser hora de repensar o livro em um novo contexto, em que, apesar das transformações sociais, a obra continua relevante devido à permanência da misoginia. “A gente não tenta fazer uma adaptação desse romance para o teatro. O que a gente faz é estudar o livro, não só na sua dimensão narrativa, mas na sua dimensão estrutural”, explica Veloso, em entrevista ao Jornal da USP. “Ele é tomado como um dispositivo do qual a gente extrai alguns procedimentos de criação e tenta retomar esses procedimentos em relação às nossas próprias histórias.”
A ideia de reinterpretar a obra nos palcos surgiu das vivências machistas de cada uma das atrizes envolvidas no projeto, diferente da adaptação televisiva Todos Amam Dick, de 2016, que tenta ser uma adaptação do romance. Apesar de ter conquistado sucesso em meio à crítica especializada, a série – estrelada por Kathryn Hahn e Kevin Bacon – teve dificuldade de se conectar com o público. “Acho que o seriado também é uma reação, uma recriação, uma resposta ao livro”, afirma Veloso, ressalvando que, na sua opinião, a adaptação não faz jus ao original. Após uma única temporada, a produção da Amazon foi cancelada, mais uma vez reforçando a controvérsia do livro, sempre atual.
Na peça, Chris é interpretada por cinco atrizes, que mostram uma protagonista plural e caleidoscópica. Em meio a vídeos projetados e caminhadas pelo espaço cênico, elementos visuais e performáticos se complementam com as histórias pessoais das artistas com homens misóginos, seja no ambiente doméstico, profissional ou pessoal. A dramaturgia, assinada por Carla Kinzo, inclui um percurso dos espectadores por fora do teatro, em uma experiência surpresa para a qual é necessário levar o celular carregado e fones de ouvido. “A experiência do audiotour é um cinema para os ouvidos”, adianta Veloso.
Assista no link abaixo a um dos vídeos exibidos na peça Eu Amo Chris – Uma Pequena Coleção de Fracassos.
Após uma temporada no Sesc Pompeia, em São Paulo, e três semanas no Tusp, Veloso pode afirmar que “a peça mobiliza as pessoas porque não é uma historinha sendo contada, mas uma sequência de situações e de contextualizações que apresentam os fracassos não só de uma mulher específica, mas de um conjunto de mulheres – uma crise refratária de toda uma geração que está fracassando”. Essa geração, acrescenta a professora, mesmo crescendo após o advento do feminismo, ainda não se viu livre das amarras patriarcais.
“Isso é uma coisa que a gente aprende lendo o livro: quando se nasce mulher, fracassar é uma condição. A régua para todas as discussões sobre gênero, quando se trata da mulher, é muito mais alta: para você ser uma boa mãe, você tem que ser perfeita, para você ser uma boa profissional, tem que ser incrível, para você ser uma boa amante, tem que ser uma super amante”, afirma. Por outro lado, “para ser um bom pai, o homem tem que simplesmente não desaparecer. Para ele ser um bom profissional, tem simplesmente que cumprir um ou dois requisitos. A gente começou a perceber que é mais fácil ser homem”.
A diretora relembra o começo do processo da peça-manifesto, ainda durante a pandemia: “Nosso primeiro movimento foi escrever cartas aos Dicks e transformá-los em todos os caras que nos oprimem no patriarcado. A gente fez um processo de escrita de cartas para os Dicks de cada uma. Não só os Dicks amorosos, mas os Dicks parceiros de trabalho, irmãos, pais, amigos, Dicks em geral”. Com a peça, o Coletivo Teatro Dodecafônico estabelece um diálogo de referências que enriquece o sentido original do texto, que se concretiza na troca de título Eu amo Dick para Eu amo Chris. “Uma das atrizes quis fazer esse movimento de escrever uma carta para Chris e ela trouxe como referência Bell Hooks (escritora e ativista estadunidense) ao dizer que o amor não é um sentimento, mas uma ação, como o ato de escrever para Chris, de fazer essa mudança de endereçamento.”
A peça Eu Amo Chris – Uma Pequena Coleção de Fracassos está em cartaz até 27 de outubro, de quinta a sábado, às 21 horas, e aos domingos, às 19 horas, no Teatro da USP (Tusp), localizado no Centro MariAntonia da USP (Rua Maria Antônia, 294, Vila Buarque, em São Paulo, próximo às estações Santa Cecília e Higienópolis-Mackenzie do metrô). Entrada grátis. Os ingressos devem ser retirados no local com uma hora de antecedência. Mais informações estão disponíveis no site do Tusp.
*Estagiária sob supervisão de Roberto C. G. Castro