Peça conta a história de Dona Yayá sob a ótica de Carl Jung

Na obra, a diretora Patrícia Teixeira aborda o tema da loucura através do caso de Sebastiana de Mello Freire, que ficou confinada na própria casa por 41 anos

 09/10/2024 - Publicado há 1 mês     Atualizado: 16/10/2024 às 12:41
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Um homem e uma mulher segurando uma mulher.
Cena da peça Um Tempo Chamado Yayá – Foto: Beto Garavello

Estreia nesta sexta-feira, dia 11, às 20 horas, o espetáculo Um Tempo Chamado Yayá, da Cia. Coexistir de Teatro. A peça, que será apresentada no Centro de Preservação Cultural da USP – Casa de Dona Yayá, na Bela Vista, centro de São Paulo, conta a história de Sebastiana de Mello Freire (1887-1961), a Dona Yayá, uma mulher que, órfã aos 13 anos, acabou por ser confinada dentro da casa de sua família por mais de 40 anos devido a desequilíbrios psiquiátricos. A partir dos estudos do psiquiatra suíço Carl Jung (1875-1961), a diretora da peça e fundadora da Cia. Coexistir de Teatro, Patrícia Teixeira, adota uma abordagem sobre a vida de Dona Yayá que leva em conta a história da loucura e a forma como mulheres eram estigmatizadas diante de quadros psíquicos. Um Tempo Chamado Yayá será apresentada na Casa de Dona Yayá às sextas feiras, entre 11 de outubro e 22 de novembro (exceto no dia 15 de novembro, feriado), sempre às 20 horas. Os ingressos, que são gratuitos, já estão esgotados, mas a peça será apresentada também nos dias 29 e 30 de novembro e 1º de dezembro no Teatro Paulo Eiró (Avenida Adolfo Pinheiro, 765, Santo Amaro, em São Paulo) e no Centro de Atenção Psicossocial de Itapeva, no dia 22 de novembro.

A peça: entre o real e a fantasia

A Casa de Dona Yayá é a residência onde Dona Yayá esteve confinada por 41 anos e onde há, hoje, uma exposição sobre a ex-moradora. Após sua morte, nos anos 1960, a casa passou para propriedade da USP, uma vez que ela não deixou herdeiros. E é com base nesse lugar que Patrícia Teixeira desenvolve a dramaturgia da peça. Ela explica que o espetáculo é dividido em dois planos: o “real” e o “da memória”, ou “plano fantasia”.

Mulher de cabelos morenos longos.
Patrícia Teixeira – Foto: Arquivo pessoal

Enquanto o primeiro segue a perspectiva de narração linear e é contado por Gislaine Mendes, que faz o papel de monitora da exposição — que está presente na narrativa —, o segundo não segue a cronologia, necessariamente, pois esbarra na esquizofrenia, primeiro laudo recebido por Dona Yayá. A partir daí, o plano da memória é contado a partir das memórias da protagonista, que se confundem com as memórias do elenco em relação aos temas da loucura e do confinamento. Isso se torna ainda mais complexo pelo fato de que a trama traz cinco versões de Dona Yayá ao longo do tempo, as quais são interpretadas por cinco atrizes diferentes: a Sebastiana de 13 anos, idade em que fica órfã (interpretada por Gabriela Pietro), a Yayá que chega da Europa aos 27 anos e tem, posteriormente, seu primeiro surto, aos 32 (Alana Carvalho), a Yayá já confinada, aos 34 anos (Gislaine Mendes) e mais duas versões dela ao longo do tempo, também confinada na casa — aos 55 anos (Sandra Crobelatti) e aos 65 (Lia Xavier). O elenco tem, ainda, Janaína dos Reis no papel de Maria, cuidadora, Wash Peinado interpretando o enfermeiro e o professor de Yayá e Silvia Fuller, que faz o papel de uma personagem misteriosa.

Para que esse diálogo entre as diferentes versões de Yayá fosse possível, a diretora revela que foi feito um trabalho de pesquisa profundo, e que trouxe a complexidade de Dona Yayá como uma mulher do final do século 19 e do início do século 20. “Fizemos um trabalho de pesquisa em cima da história da loucura e da desigualdade de gênero e entrevistamos várias pessoas, como Chico Ornellas, que é um jornalista cuja família conheceu Dona Yayá”, diz a diretora. Ela revela, também, que conversou com Marly Rodrigues, historiadora que auxiliou no processo de tombamento da casa, além de Maria del Carmen Ruiz, educadora da casa. Para Patrícia, é importante lembrar que o que aconteceu com Dona Yayá não foi um caso isolado. “Falar da história de Yayá é, também, estar diante de tantas outras Yayás. A memória dela pode se confundir com as nossas memórias depois de tantas moças e mulheres que tiveram os seus sonhos, as suas subjetividades, suas almas e seus corpos confinados e mortos.”

“O manicômio é a forma como o Estado se relacionou com a sociedade” – Patrícia Teixeira, dramaturga e psicoterapeuta junguiana

Além de ter em Yayá a história de várias mulheres, Patrícia tem, na casa, a história da saúde mental e a da reforma da psiquiatria. “Por mais que ela tenha tido a oportunidade de ser cuidada, outras pessoas, que foram para manicômios públicos, não tiveram, e passaram por situações escabrosas e desumanas”, destaca. A diretora, que também tem formação em psicologia analítica e é psicoterapeuta junguiana, revela que Um Tempo Chamado Yayá é finalizada com uma mensagem simbólica: “No fim da peça, fazemos uma homenagem a tantas outras mulheres que ficaram internadas em sanatórios públicos e trazemos, de alguma forma, uma libertação para a Dona Yayá, um olhar singelo, sensível, trazendo essa Yayá para hoje e ressaltando o quanto é importante falar da luta antimanicomial”.

A loucura também tem voz

Para que a abordagem simbólica do espetáculo fosse possível, Patrícia Teixeira se ancorou em vários dos estudos de Carl Jung. Ela explica que, para o psiquiatra suíço, “a perspectiva organicista e racionalista não é o suficiente para a compreensão da alma, uma vez que a psique produz símbolos espontaneamente o tempo todo”. A partir de uma perspectiva teórico-mito-poética, a diretora se vale da forma como a psicologia analítica vê o mundo para analisar a subjetividade dos pacientes psiquiátricos, como Dona Yayá. Assim, ela visa compreender a saúde mental e discutir a subjetividade dentro da saúde mental. “A loucura foi institucionalizada para, na verdade, favorecer a exclusão, a desigualdade social. A loucura nunca teve voz. E ela tem voz, ela tem um porquê, uma lógica. E é muito importante trazermos, através desse espetáculo, a discussão sobre a luta antimanicomial, para que isso não aconteça novamente”, analisa.

Uma mulher gritando numa janela.
“A loucura foi institucionalizada para favorecer a exclusão”, afirma a diretora da peça — Foto: Beto Garavello

“A Dona Yayá foi internada um mês depois de começar a apresentar quadros psiquiátricos, de desequilíbrios emocionais. Quando ela entrou em surto, começou a dizer que queriam matá-la e que estava ouvindo o barulho de correntes. E tudo isso era uma loucura, porque não tinha corrente alguma e, até então, ninguém queria matá-la. Mas se você for pensar simbolicamente, ela foi morta. É uma metáfora. Você ficar dentro de uma casa, trancada em um quarto, por 41 anos, você não está morto? E sobre as correntes, que as pessoas não escutavam: corrente não lembra prisão? Ela não foi presa? Olhar a psique e entender o que se está querendo dizer, o que se está vivendo. Estamos lidando com a subjetividade” – Patrícia Teixeira, dramaturga e psicoterapeuta junguiana

O espetáculo Um Tempo Chamado Yayá, com direção de Patrícia Teixeira, fica em cartaz no Centro de Preservação Cultural da USP – Casa de Dona Yayá, localizado na Rua Major Diogo, 353, Bela Vista, do dia 11 de outubro ao dia 22 de novembro, com apresentações sempre às sextas-feiras, às 20 horas (exceto dia 15 de novembro). Haverá, também, apresentações no Teatro Paulo Eiró, situado na Avenida Adolfo Pinheiro, 765, Santo Amaro, próximo à Estação Adolfo Pinheiro da linha Lilás do metrô, de 29 de novembro a 1º de dezembro. Na sexta e no sábado, às 21h, e no domingo, às 19h. O CAPs (Centro de Atenção Psicossocial) Itapeva terá apresentação única, no dia 22 de novembro, sexta-feira, às 18h, e está localizado na Rua Comenale, 32, Bela Vista. Os ingressos para as sessões na Casa de Dona Yayá, comercializados pela plataforma Sympla, já estão esgotados. Em breve, a organização da peça deve disponibilizar informações sobre as demais apresentações. Entrada gratuita.


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