Marcello Rollemberg
Em tempos sombrios como estes atuais, talvez a melhor solução seja uma boa dose de fantasia. Claro que panelaços, manifestações sociais, resistência ao endurecimento tosco e pesquisa científica são elementos essenciais para enfrentar e confrontar uma realidade pouco agradável a estômagos sensíveis. Mas um bom conto de fadas que mostra o mundo menos duro, subverte a história e funciona como um band-aid na alma, também pode funcionar. E não se trata de escapismo ou alienação – é necessidade, é sobrevivência. E, claro, diversão. Todos esses ingredientes estão em dois filmes ainda em cartaz: Era Uma Vez em… Hollywood, de Quentin Tarantino, e Yesterday, de Danny Boyle.
Os dois filmes chegam credenciados por seus diretores: Tarantino talvez seja o realizador mais cult da atualidade, enquanto Boyle tem no currículo o aplaudido e incômodo Trainspotting e Quem Quer Ser Um milionário, Oscar de melhor filme de 2008. Mas não adianta ter um bom diretor por trás das câmeras se não houver uma boa história a ser contada. E tanto Era Uma Vez… quanto Yesterday são fábulas das mais interessantes, por mais que partam de premissas distintas. E da mesma forma que divertem e até emocionam retorcendo a realidade, criando mundos paralelos, também chegam a fustigar quando fato e fantasia se veem diante do espelho e se reconhecem.
As reviravoltas, as tramas, os personagens (reais ou não) que geram empatia – tudo isso é um prato cheio para spoilers desavisados. Mas, indo contra a máxima de Oscar Wilde que dizia que a melhor forma de se livrar de uma tentação é cair nela, esse texto vai resistir e não vai adiantar o que não pode ser contado. Mas fica o aviso: é fantasia, certo? E no reino dos contos de fadas, tudo é permitido.
Sharon Tate, Rick Dalton e o verão de 69
Aquele verão de 1969 era para ser o verão da paz e do amor. Hippies vagavam pelas ruas das cidades americanas com flores nos cabelos e sonhos em doses industriais, Woodstock estava prestes a acontecer e parecia que a Era de Aquário finalmente tinha chegado. Mas, aí, Charlie Manson e sua “Família” resolveram estragar tudo. Ao invadirem a casa do cineasta Roman Polanski em Los Angeles e massacrarem a atriz Sharon Tate – mulher do diretor polonês, grávida de oito meses – e outros quatro amigos, quatro membros daquela família enlouquecida de ódio e LSD puseram um fim brutal a tudo o que se esperava de bom. Para alguns autores – como a escritora e jornalista americana Joan Didion -, os psicodélicos e livres anos 60 terminaram ali. Antes que John Lennon tivesse sacramentado que “o sonho acabou”, ele terminou, de fato, no dia 9 de agosto de 1969.
Corta.
Isso tudo é fato, é tudo a realidade que qualquer wikipédia despeja diante dos olhos. Esqueça. Estamos falando de fantasia, de Quentin Tarantino e de Rick Dalton, o ator deprimido e lutando para não cair no ostracismo vivido por Leonardo di Caprio em Era Uma Vez… O cenário é a mesma Los Angeles de 1969, Dalton é vizinho do casal Tate-Polanski e Charlie Manson e sua família estão no filme – Manson, em uma aparição-relâmpago porque Tarantino não queria dar destaque àquela figura que tinha parte com o demo. Mas, a partir daí, não é mais história. É cinema.
Ou um conto de fadas à la Tarantino. Não é à toa que o título evoca as histórias infantis – apesar de evocar também um clássico como Era Uma Vez no Oeste. Porque, se Tarantino sempre flerta com a sétima arte em seus trabalhos, fazendo homenagens aqui e ali, neste ele envereda praticamente pela metalinguagem. É cinema falando de cinema.
E é ao falar de cinema que ele cruza os destinos de Dalton, Sharon Tate (vivida por Margot Robbie) e Cliff Booth, o dublê vivido por Brad Pitt que, além de ser amigo do personagem de Di Caprio, ainda vai parar no rancho Spahn, onde viviam as periguetes de Manson. O filme é cheio de referências aos anos 1960, como os westerns-spaghetti, séries de TV e Bruce Lee, que iniciava carreira vivendo o motorista e ajudante Kato do herói televisivo Besouro Verde. Uma das cenas mais histriônicas e hilárias do filme, por sinal, envolve uma improvável luta entre o astro das artes marciais chinês e o personagem de Pitt. A família de Lee não gostou muito.
Mas é Sharon Tate que ganha um tratamento especial. Poucas vezes se viu Quentin Tarantino tratar com tamanha delicadeza e poesia um personagem, real ou não. Sharon é tratada quase como uma princesa – conto de fadas, lembram? –, ingênua, que vive em seu castelo na 10050 Cielo Drive. A cena em que ela vai ao cinema se assistir em um filme recém-lançado é, de novo, metalinguagem. Mas é lírico, por mais Tarantino que seja. Margot Robbie de óculos enormes, botinhas brancas e um sorriso orgulhoso e atônito, com os olhos pregados na tela. E lá, do outro lado, Sharon Tate, a verdadeira, aparece linda em um filme de aventuras do agente secreto Matt Helm.
Este é o melhor filme de Tarantino? Não necessariamente. Pulp Fiction e Bastardos Inglórios ainda ganham, para ficarmos só nesses dois. Mas é, certamente, o mais engraçado e o menos violento de todos. Mesmo a única cena de violência, lá para o final do filme, mais arranca gargalhadas da plateia do que repulsa. Um certo sadismo, talvez. Mas faz sentido e é catártico. Assim como faz sentido o mundo paralelo que Tarantino cria, a subversão histórica e poética que ele desenvolve ao longo da sua trama. Tudo é possível com Tarantino. Ele não trucidou Hitler em um cinema parisiense? Pois é. Lembrem-se: fantasia não tem limites.
Um mundo sem os Beatles?
E se em um universo alternativo os Beatles nunca tivessem existido? Se John, Paul, George e Ringo nunca tivessem criado a maior banda de todos os tempos? Pois é a partir dessa premissa que caminha Yesterday, de Danny Boyle. E enveredamos pela mais pura fantasia, um quase realismo mágico, se quiserem.
A história é um tanto simplista, mas tem sua beleza. Um músico amador, vivido por Himesh Patel, em busca do sucesso (clichê, mas aceitável) e que vive no interior da Inglaterra sofre um acidente quando sua bicicleta é atropelada no exato momento em que o mundo todo sofre um apagão. Explosões solares, explica-se a seguir. Mas isso é o que menos importa. Quando acorda, no hospital, Jack Malik (coincidência ou não, o mesmo sobrenome do Jamal de Quem Quer Ser Um Milionário), está sem dois dentes, com o violão e a bicicleta quebrados e em um mundo muito estranho. Porque ninguém nunca ouviu falar dos Beatles. Só para constar: somem do mapa também a Coca-Cola e o cigarro. Mas isso não faz diferença.
Ele ganha um violão novo da melhor amiga-empresária-eterna apaixonada e resolve inaugurá-lo tocando para os amigos… Yesterday. Uau! Que música linda! É sua? As perguntas não param de cair no seu colo. Ele acha que estão todos brincando, fala dos Beatles – aqui, um trocadilho quase intraduzível, já que um amigo pergunta se ele está falando do carro (o novo Fusca) ou do inseto (beetle, em inglês, é besouro). Nem um, nem outro, óbvio. Mas o Google não ajuda em nada. Nenhuma referência aos rapazes de Liverpool.
Neste momento, Jack tem uma ideia, entre genial e perigosa: começa a apresentar as músicas dos Beatles como se fossem suas – por mais que tenha alguma dificuldade em lembrar as letras por inteiro. Claro, o sucesso é imediato, e chama a atenção de Ed Sheeran – o próprio –, que o convida para abrir seu show em Moscou. Que música Jack escolhe? Back in the U.S.S.R. A plateia vem abaixo, Ed Sheeran fica abismado e a carreira do ex-desdentado Jack Malik vai ribanceira acima.
O filme caminha no diapasão entre o sucesso estrondoso que Jack começa a fazer, a fúria empresarial da indústria fonográfica, a distância da melhor amiga-empresária-eterna apaixonada e o medo de ser desmascarado. E se alguém mais se lembrar dos Beatles? Enquanto essa dúvida existencial-musical não se resolve, passam pelo filme 16 canções dos fab four, entre elas Let it Be, Something (que ele toca em um ukelele, como Paul McCartney faz atualmente em seus shows) e Hey Jude, que Ed Sheeran sugere trocar para Hey Dude (algo como “ei, cara”). Péssima ideia.
Para ter o direito de apresentar as músicas no filme, a produção de Yesterday desembolsou US$ 10 milhões. Até o início de setembro, o filme tinha arrecadado pouco mais de US$ 134 milhões mundo afora. Nada mal para um belo trabalho que dificilmente será um blockbuster.
Entre canções assobiáveis há décadas, desencontros e encontros improváveis mas tocantes – a vontade de dar spoiler aqui se torna quase incontornável –, o filme caminha na forma clássica das comédias românticas, algo que embala, diverte e rende conversas animadas no pós-crédito. Mas fica a pergunta: e se os Beatles nunca tivessem, de fato, existido? A resposta vem de uma frase dita quase no final do filme: “Um mundo sem os Beatles seria um mundo muito pior”. Não precisamos disso.
Marcello Rollemberg é editor de Cultura do Jornal da USP