Para lembrar os 50 anos do assassinato
de Vladimir Herzog

Associação Brasileira de Imprensa institui 2025 como o "Ano Vladimir Herzog", a fim de preservar a memória do jornalista e professor da USP morto pela ditadura militar e fortalecer a luta por verdade, justiça e reparação

 07/02/2025 - Publicado há 4 semanas

Texto: Luiz Prado

Arte: Beatriz Haddad*

Quando uma instituição, um movimento da sociedade civil ou um governo decide batizar um ano com o nome de uma pessoa, muitas podem ser as razões. No caso do jornalista Vladimir Herzog (1937-1975), a palavra-chave é memória. Escolher 2025 como o “Ano Vladimir Herzog” significa não esquecer o que aconteceu em 25 de outubro de 1975, quase 50 anos atrás.

Naquela data, militares torturaram até a morte o jornalista nos porões da ditadura militar então em vigor no Brasil. E depois se esforçaram para espalhar a falsa versão de um suicídio, com direito a montagem da cena do crime para registro fotográfico e depoimentos mentirosos de médicos legistas. Um ancestral do método das fake news. Não é pura coincidência.

Instituir 2025 como o “Ano Vladimir Herzog” foi a maneira que a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) encontrou para alertar a respeito dos caminhos perigosos desenhados pelo ódio político, a arrogância da força e o estelionato de corações e mentes. E também mostrar que, apesar das emboscadas e bloqueios do percurso, vale a pena defender a verdade, a justiça e a reparação.

Além de manter durante todo o ano um banner no site da ABI e uma faixa na entrada da sede da entidade, no Rio de Janeiro, a iniciativa prevê também a publicação de uma série de matérias sobre Herzog. Há planos ainda para a realização de um ato em outubro, mês do assassinato do jornalista.

“A ABI, historicamente, sempre se destacou por lutar em defesa da democracia, da liberdade de imprensa e pelos direitos humanos”, comenta Moacyr de Oliveira Filho, conhecido como Moa, diretor de jornalismo da entidade. Assim como Herzog, Moa esteve preso e foi torturado nas dependências do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) do 2o Exército de São Paulo.

Moa conta que a ABI entrou em contato com o Instituto Vladimir Herzog e recebeu total apoio para a iniciativa, além dos parabéns de Ivo Herzog, filho do jornalista e presidente do conselho da entidade. Ivo elogiou a ABI por ter sido a primeira instituição a se manifestar a respeito dos 50 anos do assassinato do pai.

“Há muitos anos lutamos para a recuperação da memória política do Brasil em relação à ditadura”, conta Moa, que colaborou com os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (CNV), ativa entre novembro de 2011 e dezembro de 2014. “A CNV fez uma série de recomendações e praticamente nenhuma saiu do papel. Agora, com o sucesso do filme Ainda Estou Aqui, essa luta por direito, memória e justiça está ganhando força.”

Uma das frentes dessa batalha trata justamente da transformação em memorial da antiga sede do DOI-Codi, localizada no bairro do Paraíso, em São Paulo, lembra Moa. Tombado em 2014 pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat) do Estado e reconhecido em 2024 como Ponto de Memória pelo Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), o edifício será tema de um workshop que acontece no dia 15 de fevereiro, no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo.

Há muitos anos lutamos para a recuperação da memória política do Brasil em relação à ditadura"

Não se trata de uma ação pontual, afirma Moa. Graças à repercussão do filme protagonizado por Fernanda Torres, vem crescendo o movimento pelo tombamento do prédio que abrigou o DOI onde Rubens Paiva foi torturado e assassinado, no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro. E em Petrópolis, também no Estado do Rio, o centro clandestino de repressão conhecido como Casa da Morte já passou pelo processo de desapropriação que irá transformá-lo em memorial.

“É um movimento que precisa se intensificar para que esses espaços sejam transformados em centros de memória e as novas gerações saibam o que aconteceu”, afirma Moa.

Da Iugoslávia para a USP

Vlado Herzog (o nome Vladimir seria adotado no Brasil) nasceu em Osijek, na antiga Iugoslávia, hoje Croácia, em 27 de junho de 1937. Em 1941, sua família seguiu para a Itália, fugindo da invasão das tropas da Alemanha nazista. Após temporadas em três cidades diferentes, os Herzog chegaram ao campo de refugiados de Bari e, em 1946, finalmente viajaram para o Brasil, desembarcando no porto do Rio de Janeiro em dezembro.

Documento antigo e amarelado.
Certidão de nascimento de Herzog, onde consta seu nome como Vlado. O jornalista o mudaria para Vladimir no Brasil - Foto: Reprodução/Acervo Vladimir Herzog
Cinco adultos e uma criança na frente de uma ponte.
Vlado (criança) com a família em Fonzaso, na Itália - Foto: Reprodução/Acervo Vladimir Herzog

Com a família instalada em São Paulo, Vlado cursou Filosofia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP. O ingresso no jornalismo aconteceu em 1959, como repórter do jornal O Estado de S. Paulo. Lá cobriu a inauguração de Brasília, acompanhou a campanha eleitoral e a posse de Jânio Quadros, registrou a passagem do intelectual francês Jean-Paul Sartre pelo Brasil e viajou para a Argentina incumbido da cobertura do Festival Internacional de Cinema de Mar del Plata.

Naturalizado brasileiro em 1961, Vlado se aprofundaria no jornalismo cultural e na crítica cinematográfica, desenvolvendo uma afinidade com a sétima arte que incluiria seu envolvimento com a Cinemateca Brasileira e se prolongaria por toda a vida. Ele foi o diretor e um dos roteiristas do documentário Marimbás (1963), sobre homens que vivem das sobras de peixes dos pescadores da praia de Copacabana, no Rio. Também atuaria como chefe de produção de Subterrâneos do Futebol (1965), de Maurice Capovilla, e integraria a equipe responsável pelo som direto de Viramundo (1965), de Geraldo Sarno.

Documento com foto de um homem.
Carteira de identificação de Vlado Herzog como “noticiarista do jornal O Estado de S. Paulo” - Foto: Reprodução/Acervo Vladimir Herzog

Como jornalista, Vlado passou pela TV Excelsior, onde foi assistente de produção do Show de Notícias, e pela Rádio BBC, emprego que o levaria a viver em Londres entre 1965 e 1968. De volta ao Brasil, trabalhou como produtor de TV na agência de publicidade J. Walter Thompson e atuou em seguida na TV Universitária da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). A partir de 1970, tornou-se redator e depois editor de Cultura da revista Visão e ocupou funções também no jornal Opinião.

Assista no link abaixo ao documentário curta-metragem Marimbás, de 1963, dirigido por Vladimir Herzog

Entre setembro de 1971 e março de 1972, Vlado deu aulas no curso de Jornalismo da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), em São Paulo, a convite do jornalista Perseu Abramo. Em outubro de 1975, assumiu a direção de jornalismo da TV Cultura. Na mesma época, trabalhava na pesquisa para o roteiro de um filme sobre Antônio Conselheiro e integrava o quadro de professores na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP.

A passagem de Herzog pela ECA foi curta e, pela vontade de algumas pessoas, teria caído no esquecimento. Vlado tornou-se professor voluntário do Departamento de Jornalismo e Editoração (CJE) da escola em agosto de 1975. Chegava escalado para ministrar a disciplina de Jornalismo Televisionado, voltada aos estudantes do sétimo semestre do curso.

Seu ingresso no CJE aconteceu em um contexto de esvaziamento do corpo docente em virtude das perseguições ideológicas da ditadura militar. Na primeira metade dos anos 1970, havia acontecido a prisão do professor Jair Borin e a descontratação dos professores José Marques de Melo, Thomaz Jorge Farkas e José Freitas Nobre. Em 1975, Sinval Medina seria reprovado em sua qualificação de mestrado por uma banca considerada arbitrária, o que o obrigaria a deixar suas atribuições como professor no departamento. Os professores Walter Sampaio, então chefe do CJE, Paulo Roberto Leandro e Cremilda Medina, em solidariedade, pediram demissão.

Vlado chegava assim a um departamento mutilado pelo regime, que temia e buscava controlar a atuação jornalística. Deu aulas apenas para a turma que ingressou em 1972, e somente até outubro. Não houve tempo para ser formalmente contratado.

Tortura, morte e memória

No dia 24 de outubro de 1975, Vlado foi procurado pelos militares na sede da TV Cultura. Suspeitavam de conexões do jornalista com o Partido Comunista Brasileiro (PCB). No dia seguinte, compareceu para depoimento no DOI-Codi do 2o Exército, em São Paulo, no bairro do Paraíso. Não voltaria de lá.

Em 25 de outubro, após sessões de tortura, Herzog foi assassinado. Tinha 38 anos. Os militares tentaram forjar uma versão de suicídio, com uma foto do jornalista enforcado com uma tira de pano amarrada nas grades de uma janela, joelhos quase no chão, e um pedaço de papel ao lado que “revelava” as relações com o PCB. Mas era evidente a real causa da morte.

Em reportagem para a Revista Adusp – publicada pela Associação dos Docentes da USP (Adusp) -, em outubro de 2012, a jornalista Beatriz Vicentini, caloura do curso de Jornalismo da ECA naquele ano de 1975, escreveu sobre o impacto da notícia da morte de Vlado entre os estudantes do CJE:

“Aquela segunda-feira, 27 de outubro de 1975, em que se soube, na USP, da morte de Herzog, permanece em minha memória: sinto ainda o frio da sarjeta, onde muitos permanecemos sentados durante parte da manhã, na ECA, olhando no vazio, sem entender, querendo saber mais do que havia acontecido. Informações desencontradas, a contradição entre as conversas quase sussurradas e as tentativas de se promover assembleias, ficaram. A sensação de medo, de insegurança, comentários que se multiplicavam em voz baixa.”

Na missa de sétimo dia pela morte de Herzog, em 31 de outubro de 1975, cerca de 8 mil pessoas tomaram a Catedral da Sé, em São Paulo, e os arredores, em um ato ecumênico que reuniu Dom Paulo Evaristo Arns, o rabino Henry Sobel e o pastor presbiteriano Jaime Nelson Wright. O jornalista Luiz Roberto Serrano, coordenador editorial do Jornal da USP, estave presente na homenagem e se recorda dos agentes do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) nas laterais da catedral, fotografando do alto das janelas dos edifícios a saída do público. “A missa foi frequentada em peso pelos jornalistas de todas as redações”, comenta.

A professora Alice Mitika Koshiyama, integrante do corpo docente do CJE durante a breve passagem de Herzog pela Universidade, registrou que, após o assassinato, houve uma tentativa institucional de ocultar a presença de Vlado na ECA. No artigo A Prática Política Para Ser Jornalista ECA-USP 1975-1976 – que apareceu em 2008 na Revista PJ:BR, uma publicação acadêmica da ECA -, Alice descreve esse processo:

“Se alguém fosse consultar o Relatório Anual de Atividades do Departamento de Jornalismo e Editoração do ano de 1975, enviado às instâncias superiores da Universidade, e tivesse acompanhado o cotidiano das aulas de jornalismo, notaria uma ausência no texto: o nome de Vladimir Herzog não figurava na lista de professores que atuaram naquele ano letivo”, escreve Alice.

Segunda via da certidão de óbito de Herzog, emitida em 2009. Nela, a causa de morte ainda aparece como “asfixia mecânica por enforcamento” – Foto: Reprodução/Acervo Vladimir Herzog

Certidão de óbito de Herzog retificada, emitida em 7 de junho de 2013. Como causa da morte consta “lesões e maus tratos” e como local da morte, as dependências do DOI-Codi do 2o Exército – Foto: Reprodução/Acervo Vladimir Herzog

A professora continua: “Herzog lecionou Telejornalismo juntamente com a professora Gisela Ortriwano, no segundo semestre do ano, até a semana em que morreu nas dependências do DOI-Codi de São Paulo. Colocamos o nome de Vladimir Herzog no rascunho do Relatório de Atividades de 1975, mas o nome dele foi suprimido do texto ‘oficial’ por ordem da chefe, profa. dra. Helda Bullotta Barracco, que arbitrariamente se recusou a ouvir quaisquer protestos, alegando ordens superiores. Herzog aguardava a publicação do seu contrato de trabalho no Diário Oficial, mas trabalhou de fato, como alguns outros docentes em situação funcional idêntica”.

Rodolfo Carlos Martino, professor, jornalista e um dos estudantes que tiveram aulas com Vlado, recorda o convívio com o docente. A declaração de Martino foi registrada pela jornalista Leila Kiyomura em matéria publicada no Jornal da USP em agosto de 2019:

Herzog, o nosso professor de Telejornalismo, editor responsável pelo Jornal da Cultura, que ia ao ar tarde da noite. Mesmo assim, chegava cedo na USP para as primeiras aulas da manhã. Exigia o mesmo comprometimento por parte dos alunos”, lembra Martino. “Recordo o dia em que nos pautou para um trabalho no fim de semana. Um grupo de alunos ameaçou reclamar. Herzog não deixou por menos. Avisou: ‘Quem quiser ser jornalista tem de encarar os desafios que a profissão nos impõe. Se não for assim, é melhor procurar outra coisa para fazer na vida’.”

Verdade e justiça

Em 1976, após o assassinato de Vlado, sua esposa Clarice Herzog passou a lutar pelo direito à verdade e à justiça, apresentando uma ação declaratória contra a União. Em 1978, a Justiça brasileira concedeu sentença favorável à viúva, condenando a União pela prisão, tortura e morte do jornalista. Levaria mais de 20 anos depois do crime para a família receber indenização pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, em 1997.

Uma mulher escrevendo e sendo observado por um homem.
Casamento de Herzog e Clarice, em 15 de fevereiro de 1964 - Foto: Reprodução/Acervo Vladimir Herzog

Somente em 2013, entretanto, aconteceria a retificação do atestado de óbito de Vlado, no qual, em vez de “asfixia mecânica por enforcamento”, passaria a constar como causa da morte “lesões e maus tratos”. No ano seguinte, a Comissão Nacional da Verdade reconheceria o Estado Brasileiro como responsável por sua morte. Quatro anos depois, em 2018, seria a vez da Corte Interamericana de Direitos Humanos considerar o Estado Brasileiro culpado por falta de investigação, julgamento e punição de seus torturadores e assassinos.

Agora, em 2025, no 31 de janeiro, após 50 anos, a Justiça Federal concedeu pensão para Clarice Herzog, que está com 83 anos e é diagnosticada com doença de Alzheimer. A reparação econômica mensal e vitalícia, no valor de R$ 34.577,89, corresponde ao cargo de diretor de Jornalismo que Vlado ocupava na TV Cultura quando foi assassinado.

*Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado