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Capa do livro Exu - Um Deus Afro-Atlântico no Brasil e uma cerimônia num terreiro em São Paulo - Fotomontagem feita por Guilherme Castro/Jornal da USP com imagens de Reprodução/livro Exu - Um Deus Afro-Atlântico no Brasil
O gorro de Exu continua a espalhar confusão entre as pessoas
Livro do professor da USP Vagner Gonçalves da Silva aborda as diferentes visões no Brasil sobre a divindade africana
Segundo um antigo mito africano, certa vez Exu quis confundir dois amigos inseparáveis. Usando um gorro com duas cores diferentes – branco de um lado, vermelho de outro –, passou por entre os dois homens, que estavam a lavrar o campo. Um deles parou o trabalho e exclamou: “Que lindo gorro branco”. O outro respondeu: “Não. Era vermelho”. Começou assim uma discussão entre os antes inseparáveis amigos sobre a cor do gorro de Exu, que foi ficando cada vez mais acirrada e acabou com o assassinato de um pelo outro.
Esse mito ilustra as diferentes visões, no Brasil atual, sobre uma das mais reverenciadas divindades africanas, de acordo com o livro Exu – Um Deus Afro-Atlântico no Brasil, do professor Vagner Gonçalves da Silva, do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, que acaba de ser lançado pela Editora da USP (Edusp). Com 672 páginas, o livro é a versão ampliada da tese de livre-docência de Vagner Silva, defendida na FFLCH em 2013.
Na obra, o professor mostra, na primeira parte, as transformações que o culto a Exu sofreu ao entrar em contato com outros sistemas religiosos no Brasil e, na segunda parte, a conflituosa relação das igrejas neopentecostais com a divindade africana, que revela características da sociedade brasileira hoje – entre elas, intolerância religiosa, desqualificação das religiões afro-brasileiras e racismo. Na terceira e última parte do livro, Vagner Silva reproduz 183 mitos sobre Exu, extraídos de compilações publicadas em português, inglês, francês e espanhol desde o final do século 19 (leia o texto abaixo).
O professor Vagner Gonçalves da Silva, autor do livro Exu - Um Deus Afro-Atlântico no Brasil - Foto: FFLCH/USP
Como anexo, Vagner Silva transcreve as letras de 68 canções da música popular brasileira e 49 sambas-enredos de escolas de samba do Rio de Janeiro e de São Paulo que fazem referência a Exu e a seu culto – o que evidencia a presença marcante da divindade na cultura brasileira. Entre essas composições estão Casa de Bamba, de Martinho da Vila (Macumba lá na minha casa/ Tem galinha preta/ Azeite de dendê), Boca de Sapo, de João Bosco (Costurou na boca do sapo/ Um resto de angu/ …Depois deu de rir feito Exu Caveira), e Só Com a Ajuda do Santo, samba-enredo de 2017 da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, do Rio de Janeiro.
Outros anexos do livro trazem ainda a ficha técnica e a sinopse de 25 filmes relacionados a Exu – desde Sai Dessa, Exu, documentário de 1972 dirigido por Roberto Moura, até Exu Rei, de Barbara de Castro dos Santos, de 2017 – e uma iconografia, que inclui uma extensa relação de sites de fotografias, esculturas, livros e catálogos artísticos. “De todos os deuses afro-atlânticos emergidos na confluência das culturas africanas, europeias e americanas, Exu é certamente o mais controverso e o que melhor, talvez, nos ajuda a entender os dilemas, diálogos e conflitos implícitos e explícitos no contato dessas culturas”, escreve Vagner Silva na introdução do livro.
Antagonismos entre magia e racionalidade
Controvérsia foi o que não faltou desde os primeiros contatos entre as sociedades europeias e as práticas religiosas africanas, no século 16. Como explica Vagner Silva no livro, na África ocidental Exu é temido e respeitado como um trickster – um personagem que quebra as regras estabelecidas, tendo como consequência ações boas ou más –, tem fama de mensageiro e representa a comunicação e a fertilidade. Por isso, é cultuado em altares sob a forma de um falo ereto, geralmente instalados nas entradas das casas, nas encruzilhadas e nos espaços de comércio. “A ‘descoberta’ de seu culto na África ocidental pelos europeus e o modo como foi descrito são reveladores da própria ‘encruzilhada’ em que vivia o mundo dos colonizadores nesse período marcado por transformações sociais, econômicas, políticas e morais, as quais preconizavam antagonismos entre o pensamento mágico-religioso e a racionalidade, o comunitarismo e o expansionismo, a tradição e a modernidade, a religião e a ciência”, escreve o professor. “Nesse contexto, Exu foi associado ao imaginário do mal, da desordem, do desejo sexual antissocial e das forças antagônicas à modernidade.”
Essa visão está expressa nos dicionários de iorubá – idioma predominante na África ocidental – publicados nos séculos 19 e 20 e até nas traduções da Bíblia do inglês para o iorubá, em que as palavras Satan (Satanás) e devil (demônio) são traduzidas como Exu, exemplifica Vagner Silva. Já o termo elesù (pessoa que cultua ou foi consagrada a Exu) é vertido como “adorador do demônio” em obras como o Dictionary of the Yorùbá Language. “Nos dicionários contemporâneos de português, o verbete ‘Exu’ define a entidade basicamente como um orixá mensageiro, mas não deixa de registrar o uso popular ou coloquial do termo associado a espírito do mal, demônio ou diabo.”
No Brasil – e nas Américas -, a recepção a Exu não foi diferente. Como Vagner Silva documenta no livro, existem na imprensa escrita brasileira da segunda metade do século 19 várias referências a essa divindade nas notícias de perseguição feitas pela polícia aos frequentadores de templos religiosos afro-brasileiros. Em jornais dos anos 30, frequentadores desses locais são chamados pejorativamente de “fiéis de Exu”.
Apesar desses conflitos, ocorre também um “diálogo” entre as tradições africanas, europeias e americanas, que resulta em modificações na caracterização de Exu nas Américas e no culto à divindade. Como nota Vagner Silva, a presença no catolicismo português e espanhol de agentes mediadores entre homens e Deus, como anjos, santos e mártires, facilitou a compreensão de Exu em seu aspecto de mensageiro. Por isso, quando associada aos santos cristãos, a entidade é exaltada como um mensageiro benfazejo. “Em suma, Exu, quando abre os caminhos dos homens, é associado aos santos católicos e é tido como ‘do bem’. Entretanto, quando fecha os caminhos dos homens, é visto como ‘do mal’ e comparado com as legiões de demônios que impedem o acesso dos homens aos bens do céu”, escreve o professor.
Dada essa relativização, o “grau de demonização” do culto a Exu passou a ser um indício do “grau de pureza” de uma denominação religiosa afro-brasileira. “Quanto mais uma denominação religiosa aproxima Exu do demônio, mais é considerada sincrética, ‘deturpada’ e distante das heranças africanas tidas como ‘puras’ ou ‘legítimas'”, acrescenta Vagner Silva. “Dessa perspectiva, denominações como o candomblé de angola ou de caboclo e a umbanda, por serem consideradas mais suscetíveis à influência do catolicismo e do espiritismo kardecista, podem ter sido grandes responsáveis pela ‘decadência’ de Exu, em contraste com a tradição nagô, em que o aspecto ‘africano’ de Exu pôde ser preservado.”
Disputa pela experiência mística
Nas últimas décadas, as religiões afro-brasileiras se tornaram o principal alvo dos ataques e da intolerância das igrejas neopentecostais, como mostra Vagner Silva no seu livro. Isso pode parecer estranho, uma vez que as denominações de origem africana não reúnem mais do que 2,3% da população, contra 64% de adeptos da Igreja Católica, por exemplo.
Para Vagner Silva, esses ataques podem estar relacionados com a importância da experiência mística no campo religioso do Brasil atualmente. Acontece que os processos de secularização e racionalização afastaram das igrejas católicas e protestantes históricas a possibilidade do transe religioso, que passou a ser explorado pelas denominações neopentecostais. “No neopentecostalismo essa característica se radicaliza em termos de transformar a religião em uma experiência vivida no próprio corpo, característica que tradicionalmente esteve sob a hegemonia das religiões afro-brasileiras e do espiritismo kardecista”, escreve o professor. “Combater essas religiões pode ser, portanto, menos uma estratégia proselitista voltada para retirar fiéis desse segmento, embora tenha esse efeito, e mais uma forma de atrair fiéis ávidos pela experiência de religiões extáticas e com forte apelo mágico, com a vantagem da legitimidade social conquistada pelo campo religioso cristão.”
Nessa disputa por fiéis ansiosos por um contato direto com o sagrado, os rituais das igrejas neopentecostais se aproximam das práticas das religiões de origem africana. “Ainda que consideremos as diferenças entre o transe do Espírito Santo e o das divindades afro-brasileiras, o fato é que essa experiência extática, sobretudo entre as camadas populares, preferenciais na adesão ao pentecostalismo, põe os conteúdos desses sistemas em trânsito permanente, na medida em que abre as portas para um conjunto de ‘experiências místicas’ correlatas à do transe”, continua Vagner Silva. “No neopentecostalismo, como acontece principalmente na Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd), isso é mais evidente em razão do lugar central que o transe das divindades da umbanda (Exu e Pombagiras) assumiu na cosmogonia do culto, inclusive em detrimento do transe do próprio Espírito Santo, já não mais enfatizado como em sua origem.”
Até mesmo a liturgia e o calendário religioso das igrejas neopentecostais possuem inusitada proximidade com o sistema mágico-religioso afro-brasileiro. A meia-noite de sexta-feira para sábado, por exemplo, é o momento em que, na umbanda, os Exus se manifestam e trabalham. É justamente nessa hora que, nas igrejas neopentecostais, são realizadas as cerimônias em que Exu é invocado, para em seguida ser expulso. “Entre o neopentecostalismo e as religiões afro-brasileiras, há, desse modo, muito mais proximidades que distâncias”, conclui Vagner Silva.
Exu – Um Deus Afro-Atlântico no Brasil, de Vagner Gonçalves da Silva, Editora da USP (Edusp), 672 páginas, R$ 146,00.
Livro traz 183 mitos sobre a divindade africana
Em Exu – Um Deus Afro-Atlântico no Brasil, o professor Vagner Gonçalves da Silva transcreve 183 mitos sobre Exu, extraídos de publicações em português, inglês, francês e espanhol datadas do final do século 19 até 2011. Um dos mais antigos mitos registrados pelo professor é o que se refere ao gorro de duas cores de Exu, que causou uma briga fatal entre dois amigos antes inseparáveis. Extraído de uma compilação francesa de 1885, ele é conhecido no Brasil, Nigéria, Benin e Cuba.
Outros mitos publicados no livro são igualmente antigos. Também de 1885, um mito ensina que Exu e os orixás nasceram do incesto de Iemanjá. “Do consórcio de Obatalá, o céu, com Odudua, a terra, nasceram dois filhos, Aganju, a terra firme, e Iemanjá, as águas”, começa o mito. “Desposando o seu irmão Aganju, Iemanjá deu à luz Orungan, o ar, as alturas, o espaço entre a terra e o céu. Orungan concebe incestuoso amor por sua mãe e aproveitando a ausência paterna raptou-a e a violou. Aflita e entregue a violento desespero, Iemanjá desprende-se dos braços do filho, foge alucinada, desprezando as infames propostas da continuação às ocultas daquele amor criminoso. Persegue-a Orungan, mas, prestes a deitar-lhe a mão, cai morta Iemanjá. Desmesuradamente cresce-lhe o corpo e dos seios monstruosos nascem dois rios que adiante se reúnem, constituindo uma lagoa.” Do ventre enorme que se rompe, continua ainda o mito, nascem várias divindades, como Dadá, deusa ou orixá dos vegetais, Xangô, deus do trovão, Ogum, deus do ferro e da guerra, Olokun, deus do mar, Oloxá, deusa dos lagos, Oiá, deus do rio Níger, e Oxum, deusa do rio Oxum.”
Popular na Nigéria, no Benin e no Brasil, um mito conta que Exu ensinou a divinação a Ifá, dando origem ao primeiro babalaô (sacerdote dedicado ao culto a Ifá). “No começo dos tempos, quando havia muito poucos homens no universo, Ifá e os outros deuses não recebiam, como agora, abundantes presentes e ebós (uma comida sagrada). Os deuses eram obrigados a conseguir meios de satisfazer seus desejos”, diz o mito. “Ifá, dentre outros, dedicava-se a pescar. Certo dia, exausto, dirigiu-se a Elegbá (Exu), o mais perspicaz e astucioso, bem como o mais travesso de todos os gênios, os quais, assim, como ele, padeciam de muitas carências ao perambular pelos desertos com os espíritos, seus companheiros. Elegbá, consultado quanto aos meios mais eficazes de melhorar suas mútuas condições, respondeu que, se dispusesse de 16 obis (frutas sagradas) colhidos de dois pés de obi que Olorum Olodumaré (o deus todo-poderoso) havia entregado aos cuidados do homem, poderia ensinar a Ifá a arte de conhecer o futuro e propiciar os deuses, a fim de que pudesse participar dos ebós que lhes eram oferecidos. Antes, porém, de confiar-lhe seu segredo, Elegbá estipulou que a ele caberia a primeira escolha dos ebós destinados aos deuses. Ifá aceitou essas condições e prometeu fazer com que os desejos de Elegbá fossem respeitados. Tal costume ainda é observado.”
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