O professor da USP e editor Plinio Martins Filho, na biblioteca de sua casa - Foto: Marcello Rollemberg

O editor dos 3 mil livros

Em 50 anos de trabalho no mercado editorial, Plinio Martins Filho editou muito e fez do livro tanto um trabalho quanto um prazer

05/02/2021

Por 
Marcello Rollemberg
Arte: Vinicius Vieira

Você sabe onde fica Pium? Muito provavelmente, não. Mas se você gosta de livros, talvez devesse saber. Afinal, esta minúscula cidade no interior do Tocantins, habitada por não mais do que 7 mil almas, é o local de nascimento de um dos mais prestigiados editores brasileiros: Plinio Martins Filho, que em fevereiro completa 50 anos de trabalho no mercado editorial. Sexto filho de uma família simples e quase nada afeita às letras – o pai era vaqueiro e a mãe, costureira -, Plinio nasceu naquela cidadezinha quando ela ainda pertencia ao Estado de Goiás (antes da criação de Tocantins), foi educado em escolas pequenas no interior do cerrado e só aportou em São Paulo e no mundo editorial, com 20 anos, meio que por acaso: um irmão trabalhava na Editora Perspectiva, do professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e crítico de teatro Jacó Guinsburg (1921-2018), e conseguiu uma vaga para ele, no depósito da editora. Mas ficou lá pouco tempo.

“Na hora do almoço, preferia subir ao segundo andar e ver o pessoal da revisão trabalhando. Aquilo era fascinante para mim”, relembra ele, que também é professor da ECA, desde 1987. A fascinação era tão grande que chamou a atenção de Guinsburg, que o levou para a revisão. De lá, acabou indo trabalhar diretamente com o mítico editor – e ficou com ele por 18 anos, só saindo em 1989 para a empreitada de sua vida: trabalhar na Editora da Universidade de São Paulo, a Edusp, ao lado de outro nome que marcou sua trajetória, o professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP João Alexandre Barbosa (1937-2006), que acabara de receber a missão de reestruturar a editora universitária, tornando-a uma editora de fato.

Foi diretor editorial da Edusp e depois, seu presidente, até sair de uma forma um tanto torta e lacônica em 2016 – um telefonema de um assessor da Reitoria e um despacho no Diário Oficial selaram a trajetória de Plinio Martins Filho à frente daquela editora que ele tornou a principal editora universitária do País. Hoje, ele está à frente das publicações da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP e continua com suas aulas no curso de Editoração da ECA. E no currículo, mais de 3 mil livros editados nesse meio século de carreira editorial (entre Perspectiva, Edusp, Com-Arte – a editora laboratório da ECA – e a Ateliê Editorial, que ele criou em 1996 – “um grande prazer”). Oitenta desses livros ganharam o Prêmio Jabuti, o principal do mundo livresco. O editor ainda tem seu próprio Jabuti como autor, ganho em 2017 graças ao livro Manual de editoração e estilo (EdUnicamp). Idealizado como um manual para a Edusp, o livro é originalmente a tese de doutoramento apresentada por Martins Filho na ECA em 2006.

A Livraria João Alexandre Barbosa, da Editora da USP (Edusp), instalada na Cidade Universitária, em São Paulo - Foto: Marcos Santos / USP Imagens

Veja, a seguir, os principais trechos da entrevista que Plinio Martins Filho deu ao Jornal da USP sobre este meio século de trabalho editorial, em sua ampla e arejada biblioteca, erguida no jardim ao lado de sua casa, na região de Cotia, e recheada com cerca de 8 mil livros.

JORNAL DA USP – O senhor começou a trabalhar na Editora Perspectiva em fevereiro de 1971. Como foi essa chegada a São Paulo?

Plinio Martins Filho – Dividi meus estudos entre Ceres, no interior de Goiás, e Brasília, onde minha família tinha ido morar. Em Ceres trabalhei em uma loja que vendia tecidos e chapéus, mas não queria isso. Um de meus irmãos já vivia em São Paulo e escrevi uma carta para ele, perguntando se tinha algum emprego para mim. Ele trabalhava na Perspectiva e conseguiu uma vaga para eu trabalhar no depósito da editora. Tinha que organizar os livros, trabalhar com números. E eu era muito ruim nisso, me atrapalhava e errava demais (risos). E passei a deixar meu horário de almoço de lado para ver como a revisão trabalhava. Aquilo começou a me fascinar, ver os revisores com os livros abertos, cotejando linha por linha, trabalhando com as palavras. Fiquei fascinado. E um dia me perguntaram se eu gostaria de trabalhar na revisão – e eu aceitei  na hora.

JUSP – Era o mundo dos livros que o fascinava ?

Martins Filho – Nem sei se era o livro ou o fato de fazer algo diferente. Nunca tive ambições intelectuais. E tudo para mim, naquela época, era uma questão de sobrevivência. Pobre não tem gosto, tem que saber se haverá comida no dia seguinte. Acho que é o medo que só migrante tem. E eu não tinha a mínima ideia de como seria trabalhar com revisão, eu não tinha formação nenhuma ainda, mas achava fascinante, interessante e via que ali tinha alguma coisa que eu poderia aprender. Então, meu chefe na revisão, Geraldo Gérson, me deu um dicionário e disse: “Te vira. Quem resolve dúvida de revisão é dicionário e regra de gramática. Aprenda”. Nunca me esqueci disso.

JUSP – A partir dali, foram 18 anos na Perspectiva. Como tudo aconteceu, o que representou para o senhor esse período?

Martins Filho – Foi tudo, no começo, de uma forma meio intuitiva. Às vezes, eu levava uma semana para revisar uma página. Mas fui indo, aprendendo, crescendo, de uma maneira empírica. Havia muita troca, muitas ideias compartilhadas. As coisas foram caminhando, até 1973, quando teve a chamada “crise do petróleo”, que também foi a época da primeira grande crise do livro. E as editoras acabaram com a revisão, foi tudo terceirizado. Mas eu fiquei – e a Perspectiva era praticamente só eu e o Jacó.

Jacó Guinsburg, Professor Emérito da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e fundador da Editora Perspectiva – Foto: Divulgação / ECA-USP via YouTube

JUSP – Por que o senhor ficou?

Martins Filho – O Jacó sempre foi muito acolhedor com os migrantes, talvez até por causa da história pessoal dele, já que ele era originalmente da Moldávia. Eu assumi a revisão e passei  a trabalhar diretamente com o Jacó. Ele cobrava, era muito sério, mas descobri que ele, antes de mais nada, era um grande professor. Eu perguntava muitas coisas para ele e, por vezes, passávamos a manhã toda conversando, tirando dúvidas. E ele me ensinando. Eu só ficava ouvindo ele falar e trabalhar. E fui aprendendo. Isso foi muito enriquecedor. Ele era muito exigente, mas reconhecia os esforços de cada um. Com isso, passei a aprender também a produzir livros, todo o processo de composição de um livro, entrelinhamentos, fontes. Aprendi tudo na prática. Como eu não tinha formação acadêmica, intelectual, resolvi aprender a forma de se fazer um livro.

JUSP – E aprendeu tudo ?

Martins Filho – Você descobre que essa é uma coisa que você não para nunca de aprender. Nunca se aprende tudo, sempre tem coisas novas a conhecer, a desenvolver. É um trabalho para a vida inteira. E quando saí da Perspectiva, depois de 18 anos, saí como produtor editorial. E graças ao Jacó, que tinha comigo mais do que uma relação patrão-empregado ou mestre-discípulo. Era uma relação de pai e filho.

O professor João Alexandre Barbosa – Foto: Jornal da USP

JUSP – O senhor saiu da  Perspectiva para desenvolver o trabalho de reestruturação da Edusp, junto com o professor João Alexandre Barbosa. Como foi?

Martins Filho – Eu já conhecia o João Alexandre da Perspectiva. E quando o então reitor José Goldemberg o convidou para reestruturar a Edusp – que existia desde 1962 mas não tinha produção própria, só emprestava o nome para coedições -, ele me chamou para trabalhar com ele. Olha, foi uma das decisões mais inseguras, difíceis, que precisei tomar. Por que isso? Porque eu estava sozinho – meu irmão já tinha voltado para Brasília – e fiquei em dúvida se aceitava ou não. Eu precisava cuidar de mim e estava seguro na Perspectiva. Foi muito difícil, tive até crises de taquicardia. E o Jacó ficou inicialmente chateado com a minha saída, mas depois concordou e apoiou. Durante muitos anos continuei indo na Perspectiva para vê-lo. Mas ao mesmo tempo entendi que aquela seria uma oportunidade única, a oportunidade de transformar completamente a Edusp ao lado de um intelectual como João Alexandre. E fazer livro eu já sabia.

JUSP – Mas mesmo antes de ir para a Edusp o senhor já dava aula na ECA, não é ?

Martins Filho – Sim. E eu já tinha um curso superior, já que me formei em Psicologia em 1980 na Faculdade Paulistana de Ciências e Letras. Mas nunca exerci, e comecei a trocar meus livros de psicologia por livros sobre livros. E acabei indo para a ECA graças à professora Jerusa Pires Ferreira. Ela e Jacó insistiam para eu fazer uma pós-graduação – que eu nem sabia direito o que era -, mas eu era reticente, não pensava em dar aulas. Mas ela insistiu e passou a me convidar para conversar com os alunos do curso de Editoração da ECA. Essas conversas tinham o nome de “Do autor ao leitor”, que é um curso que dou até hoje. Com certeza, aprendi muito mais do que ensinei, já que tive que ler muito para essas conversas e até hoje. Enquanto isso, continuava a insistência para eu prestar concurso para ser professor. Até que, em 1987, fui finalmente convencido, prestei o concurso para professor e fui aprovado. E, ainda antes de entrar na Edusp, acabei também fazendo o mestrado. E meu projeto, que originalmente era sobre a Editora Perspectiva, acabou sendo sobre a Edusp, depois que comecei a trabalhar lá [N.R.: O projeto de mestrado de Plinio Martins Filho deu vida ao livro Edusp – Um Projeto Editorial, escrito em parceria com o autor desta entrevista].

JUSP – O senhor ficou na Edusp de 1989 até 2016, sendo editor-editorial e presidente. Nesse período, o senhor editou mais de 1.600 livros e a editora ganhou mais de 80 prêmios Jabuti. O que ficou desse período tão profícuo?

Martins Filho – O desafio de trabalhar na Edusp era enorme. Mas não podia jogar fora uma oportunidade dessas. E eu, logo, disse ao João Alexandre que precisaria de pelo menos quatro anos para estruturar bem a editora, dar uma identidade editorial a ela. Ele concordou, confiou em mim. E a Edusp se tornou o que é hoje. Passamos a publicar teses de professores da USP que antes não tinham espaço na editora, criamos coleções e, mais importante, passamos a ter uma produção própria que só fez crescer esses anos todos. Além disso, passamos também a trazer os alunos do curso de Editoração para trabalhar conosco. Depois que ele saiu e foi substituído pelo sociólogo Sérgio Miceli, em 1994, continuei meu trabalho, agora mais estruturado depois daqueles anos iniciais. E, com sua saída, fui convidado a assumir a presidência da editora. É um cargo político e eu nunca fui político, minha política é o meu trabalho, é fazer livro. Mas aceitei e fiquei de 1999 até 2016 na presidência da Edusp – eu fui um funcionário que chegou à presidência da editora, e passei por seis reitores. Nesse período todo, tive o privilégio de fazer mais de 1.600 livros e entender ainda mais como as pessoas na universidade enxergam o livro.

JUSP – E como elas enxergam o livro, professor?

Martins Filho – Às vezes com muita impaciência. Algumas não têm mais muita paciência para política a longo prazo, o que é essencial nesse trabalho. E a editora é um serviço importante de extensão da Universidade.

A Festa do Livro da USP, promovida anualmente pela Editora da USP - Foto: Marcos Santos/USP Imagens

JUSP – O que representa sua ida para ser responsável pelo setor de publicações da BBM?

Martins Filho – Eu poderia ter continuado na Edusp depois que deixei de ser seu presidente. Eu era funcionário da editora, poderia ter ficado lá. Mas não quis, achei que não fazia sentido, já que haveria – como houve – uma mudança na política editorial. A ideia era ficar só como professor da ECA, cuidando da Com-Arte. Mas houve alguns entraves e, em meio a isso, surgiu a oportunidade de coordenar as edições da BBM, dar visibilidade a ela, cuidando de projetos como o 3 x 22, sobre 1822, 1922 e 2022. Esse é um outro grande desafio.

JUSP – Nesses 50 anos de trabalho no mercado editorial, o que fica? Que lições o senhor tira?

Martins Filho – Que o livro só se realiza quando chega ao leitor. E há várias formas de isso acontecer, como a Festa do Livro, criada quando estava na Edusp e que já passou de 20 edições. Edições mais baratas, oferta diversificada a preços justos e para um público enorme. É um prazer imenso ver as pessoas consumindo livro, mesmo em época de crise, porque é nesse momento que surgem as boas ideias. E o mercado editorial brasileiro precisa de boas ideias. Mais do que uma questão financeira, precisamos de um projeto cultural de gente que goste do livro. É o que espero. Afinal, o livro me deu tudo. 


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