Ilustração feita a partir do livro bíblico "Cântico dos Cânticos" - Foto: Reprodução

O "Cântico dos Cânticos" e as relações humanas são temas de exposições

Mostras ficam em cartaz na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin da USP até 31 de março

 14/02/2023 - Publicado há 1 ano

texto: Rebeca Fonseca

Arte : Simone Gomes

A Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP abriu as portas para as exposições O Cântico dos Cânticos: Exercícios para Apreensão de Um Poema, de Lucila Sartori, e Somos Restos do Que Fomos, de Erika Malzoni. Ambas ficarão abertas para visitação até dia 31 de março. A primeira está localizada na Sala Multiuso e a segunda, na Sala BNDES, no subsolo da livraria.

A exposição de Lucila Sartori é baseada no livro bíblico Cântico dos Cânticos. O texto narra o romance entre um casal. “O Cântico dos Cânticos é um drama sobre o relacionamento de encontros e desencontros de dois amantes. Esse relacionamento é um diálogo, uma conversa amorosa de muita admiração, desejo e anseio”, explica a artista.

Lucila conta que o poema tem grande carga erótica e que, ao longo da história, foram elaboradas interpretações alegóricas do relacionamento do casal para justificar sua inserção nas Escrituras. Rabinos da Antiguidade acreditavam que se tratava do amor entre o povo de Israel e Deus, enquanto místicos cristãos viam no livro a relação da Igreja com Cristo ou da alma humana com Deus. 

A artista estuda o livro há 30 anos e fez suas primeiras obras sobre ele no início da década de 2000. O que agora está exposto na BBM é um recorte desse trabalho. Lucila criou imagens a partir de sua própria interpretação do poema, que ela acredita ser “uma história do amor e sua celebração em todas as dimensões”. Ela denomina as imagens de  “reminiscências” e não dá título às ilustrações.

As primeiras obras que chamam a atenção, porém, não são essas, mas sim as cerâmicas marrons, pretas e brancas dispostas no centro da sala. Elas foram feitas especialmente para a exposição e fazem referência ao mundo pastoril da história romântica. A atmosfera do ambiente com luz baixa contribui para a imersão nesse cenário. Entrar na exposição é como entrar em um dos jardins dos poemas. 

As “reminiscências”, por sua vez, estão dentro de vidros nas paredes. De um lado da sala estão gravuras em metal e, de outro, álbuns com colagens e desenhos feitos a lápis de cor. O percurso sugerido por Lucila é ir das gravuras aos álbuns, seguindo a ordem na qual as obras foram produzidas. Ironicamente, as cerâmicas foram as últimas peças a serem criadas, “como uma meditação silenciosa sobre tudo o que tinha vindo antes”, conta Lucila. 

Cântico dos Cânticos tem um aspecto fugidio, com frases que se cortam abruptamente, e os traços da artista transmitem essa rapidez. Nas imagens, a escrita de trechos do livro se mistura com retratos do homem e da mulher, cenas do casal juntos ou em busca um do outro, paisagens de jardins e desenhos de animais. 

“É pela gravura que eu me expresso bem. Ela é muito sucinta, não tem a sedução da cor, é precisa, seca”, explica a artista sobre a técnica. Além disso, há um diálogo com o conteúdo do livro. Lucila diz que na gravura em metal há a possibilidade de fazer apagamentos e redesenhos, o que forma camadas de visualidade. “Eu acho que tem muito a ver com o poema, porque é uma obra feita por camadas de entendimento que se sobrepõem sem fim, como a gravura, que é um processo de infinitas possibilidades.”

Lucila acredita que no  Cântico dos Cânticos existem questões importantes para a atualidade. Na história, os humanos têm uma relação de respeito e paridade entre si e com a natureza que os circunda. “Nós, contemporâneos, ainda desrespeitamos a natureza, ainda não compreendemos que somos pessoas que merecem a consideração, o respeito e a celebração dos nossos encontros”, lamenta.

Objetos do cotidiano que representam a existência humana

A exposição Somos Restos do Que Fomos, de Erika Malzoni, preenche todos os cantos da sala e algumas obras podem passar despercebidas a um olhar menos atento. A artista cria obras e instalações que representam as relações e a existência humanas utilizando objetos do cotidiano, principalmente redes de diferentes cores e tamanhos. As ideias de envolvimento e conexão são o que resulta da união desses materiais. 

A exposição Somos Restos do Que Fomos, de Erika Malzoni – Foto: Reprodução 

A primeira obra vista quando se entra na exposição é uma moldura que reproduz um quadro de Di Cavalcanti, coberta por uma rede azul, confeccionada pela própria artista. A partir daí, o visitante pode iniciar a visita à exposição por qualquer um dos lados da sala. Erika diz que se esforçou para ocupar o espaço de forma equilibrada, sem hierarquizar ou criar o protagonismo de algum trabalho sobre outro. 

Ao andar pelo local, a sensação é de ser capturado pelas inúmeras tramas, como se o visitante se conectasse com os fios das redes. “Ninguém está aqui sozinho, nós vivemos em rede. Temos a nossa própria rede celular, a rede familiar, rede de amigos, rede social, rede de esgoto”, detalha Erika, justificando o uso do material presente em quase toda a exposição.

Tudo que está exposto converge para temas existencialistas, mas a subjetividade do visitante é essencial para a interpretação da exposição. Uma das obras consiste em alguns carretéis empilhados e suspensos por um fio, sendo que o único que não está vazio e possui linha está deitado no chão. Diante disso, o visitante pode refletir sobre o início ou o fim da vida, dubiedade presente em outros trabalhos da mostra.

Instalações e objetos de somos resto do que fomos - Foto: Reprodução

Instalações e objetos da exposição Somos Restos do Que Fomos – Foto: Reprodução

“O trabalho é um balanço de vida, mas não só da minha. As coisas que estão ali de alguma forma passaram pela minha história, mas dizem respeito a qualquer um.” Assim como saltam da parede e se encostam nela, objetos pendem de grandes redes suspensas de uma ponta a outra da sala. Erika conta que, para criar suas obras, utilizou objetos próprios, mas também pediu materiais para familiares e funcionários do seu ateliê. 

Um cobertor com várias cartelas de remédios bordadas é um dos trabalhos que exemplificam essa proposta de universalidade da exposição. A artista relata que não usa aqueles medicamentos, mas as pessoas que estão no seu meio sim, e ela começou a colecioná-los. 

Trabalho com cartelas de remédio bordadas em cobertor - Foto: Reprodução
Trabalho com cartelas de remédio bordadas em cobertor - Foto: Reprodução

Erika define a exposição como uma experiência mais para ser vivida do que fotografada. “A exposição é uma obra única, composta de vários pedaços que não podem ser fragmentados. É muito mais para ser atravessada e experimentada”, comenta. “Ela tem vazios e sobreposições de camadas. Quando você está ali, olha uma coisa por entre a outra, não sabe onde começa uma e termina outra.”

A exposição O Cântico dos Cânticos: Exercícios para Apreensão de Um Poema, de Lucila Sartori, fica em cartaz até 31 de março, de segunda a sexta, das 10 às 18 horas, e aos sábados, das 9 às 13 horas. Grátis.

A exposição Somos Restos do Que Fomos, de Erika Malzoni, fica aberta também até 31 de março, de segunda a sexta-feira, das 8h30 às 18h30. Grátis.

A Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP fica na Rua da Biblioteca, 21, Cidade Universitária, em São Paulo. 


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