Blog
O Brasil e a sombra da censura que pairou por quatro anos
Em livro recém-lançado, professores elencam e analisam as tentativas censórias de livros no País entre 2019 e 2022
Fotomontagem com a imagem da embalagem que cobria 14 mil exemplares de livros com temáticas LGBTQIA+ que foram distribuídos pelo youtuber Felipe Neto, na Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro, em 2019, como um protesto contra a tentativa de censura feita pelo então prefeito Marcelo Crivella - Fotomontagem: Jornal da USP - Imagens: Vectonauta/Freepik e Cecília Bastos/USP Imagens
Fotomontagem com a imagem da embalagem que cobria 14 mil exemplares de livros com temáticas LGBTQIA+ que foram distribuídos pelo youtuber Felipe Neto, na Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro, em 2019, como um protesto contra a tentativa de censura feita pelo então prefeito Marcelo Crivella - Fotomontagem: Jornal da USP - Imagens: Vectonauta/Freepik e Cecília Bastos/USP Imagens
De 1º de janeiro de 2019 a 31 de dezembro de 2022, o Brasil viveu envolvido por um hálito acre, como se algum ogro tivesse emergido do lado escuro da força. E não havia enxaguante bucal que arrefecesse os maus augúrios e as incertezas que esta situação acarretava: fake news, negacionismo, olhares saudosos para tempos plúmbeos – com a vontade constante de restaurar uma noite que durou 21 anos, com todas suas mazelas –, ataques às instituições estabelecidas e desprezo pela saúde e pela educação. E censura. Sim. Censura. Por mais que a chamada “Constituição Cidadã” de 1988 tenha extirpado oficialmente esse cancro da vida brasileira, durante os últimos quatro anos houve a vontade insistente – e mesmo a ação – de censurar vozes discordantes em textos e livros que afrontassem uma nunca bem explicada parcela da sociedade identificada como “gente de bem”.
É justamente sobre essa ação censória durante o governo que passou que trata o recém-lançado Resistência – Leitores, autores, livreiros, editores e censura a livros no Brasil de 2019 a 2022 (Edições EACH), da professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP (EACH-USP) Sandra Reimão, e dos professores João Elias Nery (Universidade Paulus de Comunicação – FapCom) e Flamarion Maués (Instituto Federal de São Paulo – IFSP). A publicação está disponível no Portal de livros abertos da USP e pode ser acessada pelo link https://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/book/1122. “As ações de censura que elencamos aqui foram noticiadas por jornais e revistas. Devido à proliferação da ideologia autoritária na sociedade brasileira no período em foco, muitos outros casos devem ter ocorrido e não chegaram a virar notícia ou só tiveram repercussão local”, explicam os autores. O livro enfoca também algumas ações de defesa pública da liberdade, da produção e da circulação de livros que ocorreram no período.
“Entre os anos de 2019 e 2022, mobilizando órgãos de justiça e polícia, o governo federal utilizou princípios caros às ditaduras: censurar, proibir e punir a circulação da cultura que não corresponde aos valores dos governantes”, escrevem os autores. “Esta postura atingiu o campo da política, no qual se disputam valores, e a oposição ditadura/democracia é trazida à tona com relevância, mas atinge também frontalmente o campo da cultura, que se vê em disputa com o Executivo federal, que no período anterior havia incentivado a autonomia e o desenvolvimento de práticas críticas, ampliando a participação da sociedade nos espaços públicos”, afirmam.
É importante ressaltar que a censura estudada e avaliada neste volume acontece no período presidencial que passou, mas não necessariamente é exclusividade do antigo inquilino do Palácio do Planalto e seus áulicos com cargos ministeriais. Também nos âmbitos municipais e estaduais houve manifestações censórias. E mesmo pessoas comuns, sem cargos oficiais, se arvoraram em censores e bradavam a tesoura imaginária – mas ainda assim cortante – da repressão à opinião alheia, aquela que não coadunava com a sua ou a de seus parceiros nos whatsapps da vida.
“A cultura autoritária da vigilância e da perseguição ao diferente verificada nas esferas do poder incentivou um imenso número de ações realizadas por cidadãos comuns, que passaram a achar que poderiam assim agir, pois estariam em consonância com as posturas do governo de extrema direita”, analisam os autores. “São milhares de relatos de perseguições, difamações, ameaças e ofensas por meio de mídias sociais e também presencialmente durante os quatro anos do governo de Jair Bolsonaro.”
Fadas, duendes e “beijaço coletivo” contra a censura
Em exatas cem páginas, Sandra, Nery e Maués elencam e avaliam uma série de ações que visaram censurar ou manietar, de alguma forma, a liberdade de expressão durante os últimos quatro anos. O livro começa com um prenúncio do que viria pela frente, narrando o episódio de tentativa de censura por parte de um colégio particular do Rio de Janeiro do livro Meninos sem Pátria, de Luiz Puntel, integrante da coleção Vagalume, da Editora Ática. O motivo? A publicação estaria tentando “doutrinar” os alunos da sexta série do ensino fundamental (entre 11 e 12 anos) com ideologia comunista. No dia 5 de outubro de 2018 – dois dias antes do primeiro turno das eleições que levariam Bolsonaro e Fernando Haddad ao segundo turno, dali a algumas semanas –, cerca de cinquenta alunos e ex-alunos reuniram-se na calçada em frente ao colégio particular católico Santo Agostinho, no bairro do Leblon, na cidade do Rio de Janeiro, para protestar contra a suspensão da indicação da leitura do livro. E a suspensão foi retirada. Mas o estrago já estava feito.
“Evidentemente, a tentativa de cercear a circulação do livro Meninos sem Pátria deu-se por causa do tema – a recente ditadura militar brasileira. Não podemos esquecer que há na nova extrema direita brasileira um discurso de louvação de ações da repressão e de apoio a torturadores”, analisam Sandra, Nery e Maués, mostrando como a mobilização dos alunos repercutiu e ganhou espaço na mídia. “Tornar pública e noticiar a tentativa de censura foi uma forma de luta contra o atraso e o autoritarismo que este ato representa – e esse recurso teve um grande efeito por tratar-se de um colégio prestigiado em uma grande capital”, afirmam. Mas isto era só o começo – um prenúncio, como foi dito. Ou a ante-sala do arbítrio.
E o braço longo e mal articulado da tentativa de censura não media esforços, não disfarçava ações nem perdia tempo. E também não escolhia “inimigos”: tudo o que não ressoasse “patriótico” – ou coisa que o valha – era colocado contra a parede. E não importava se fossem duendes ou fadas, esses seres tão perigosos quanto inexistentes. “Em fevereiro de 2019, o maior clube de livros infantis do Brasil, com cerca de 170.000 assinantes, o Leiturinha, publicou um edital para autores e assinalava que não aceitava a inscrição de obras com “seres mágicos, como bruxas, fadas e duendes”, contam os autores. “A repercussão negativa nas mídias sociais foi imensa e rapidamente o clube retirou a chamada. Este edital estava ressoando a postura do governo Jair Bolsonaro, empossado no mês anterior. A perseguição aos ‘seres mágicos’ na literatura infantil é um dos temas constantes entre os chamados ‘bolsonaristas’”, explicam eles.
Outros casos são apresentados pelos autores, como a tentativa em 2020 do governo de Rondônia de expurgar das bibliotecas das escolas títulos que apresentassem “conteúdos inadequados às crianças e adolescentes” – “a lista continha títulos clássicos da literatura brasileira e estrangeira. Não havia referência a nenhum parecer técnico para subsidiar esta acusação”, relatam os autores. Entre os livros que seriam expurgados estavam Macunaíma, de Mário de Andrade, e Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. E dois dos casos relatados por Reimão, Nery e Maués tiveram um dose extra de repercussão.
Um, em nível federal, foi a recusa por parte do Ministério das Relações Exteriores de publicar um livro não por causa do seu teor, mas devido a quem iria prefaciá-lo – ”reafirmando como, com grande desfaçatez, o autoritarismo arbitrário age constantemente em diferentes esferas do poder e do espaço público”, afirmam Sandra Reimão, João Elias Nery e Flamarion Maués. Como relembram os autores, em agosto de 2019, a Fundação Alexandre de Gusmão, Funag, vinculada ao Ministério das Relações Exteriores, encomendou ao embaixador Synesio Sampaio Góes Filho uma biografia de seu patrono. O trabalho que recebeu o título Alexandre de Gusmão (1695-1753): O Estadista que Desenhou o Mapa do Brasil foi entregue e aprovado pelo Ministério. Após a aprovação, o autor convidou o embaixador Rubens Ricupero para prefaciar a obra. No entanto, o autor foi informado que a obra só seria publicada pelo Itamaraty se ele retirasse o prefácio – Rubens Ricupero havia manifestado várias opiniões críticas ao então governo Bolsonaro e ao ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo, como lembram bem os autores. O autor Góes Filho considerou essa atitude uma ação de censura e retirou a obra da Funag – e acabou publicando seu livro pela Editora Record.
Essa ação de Crivella, como outras narradas no livro – e algumas mostradas aqui nesse texto – não deu em nada prático além da balbúrdia que causou: a Bienal emitiu nota afirmando que não realizaria o recolhimento de nenhum livro; no dia 6 de setembro, em menos de uma hora, foram vendidos todos os exemplares de todos os estandes da Bienal de Vingadores: a Cruzada das Crianças; fiscais da Secretaria de Ordem Pública do Rio de Janeiro foram enviados à Bienal para recolher a graphic novel e saíram com as vastas mãos abanando; e até a Ordem dos Advogados do Brasil, OAB, entrou na pendenga e garantiu que o prefeito não tinha poder para recolher obras literárias.
Em 2019, fiscais foram até a Bienal do Livro, no Rio de Janeiro, com o objetivo de vistoriar livros que estavam sendo vendidos - Foto: Reprodução/YouTube/Band News
Estes são exemplos de como Resistência – leitores, autores, livreiros, editores e censura a livros no Brasil de 2019 a 2022 acaba se tornando um documento relevante – além de mostrar como a sociedade, de várias formas e por diversos caminhos, enfrentou, confrontou e venceu tentativas de censura, também traz, no final do volume, outros atos de resistência em defesa do livro e da liberdade de expressão. A censura tentou se intrometer nos desvãos do tecido social (com artimanhas políticas) e foi combatida e rechaçada – por mais que em outros casos possa ter tido até uma vitória de Pirro, como aquelas pelas quais se vangloriava Damares Alves, a ex-ministra da Família, que viu Jesus numa goiabeira.
A sociedade brasileira aprendeu – mesmo que por vezes um tanto aos trancos – que a liberdade conquistada, qualquer que seja ela, é inegociável. Pode-se até tentar coibi-la, mas se o estado de alerta das instituições que trabalham em prol do Estado Democrático de Direito e das liberdades inerentes a ele estiver operante, serão tentativas que poderão até fazer muito barulho, mas não passará disso. É como afirmam Sandra, Nery e Maués: “Para que exista em uma sociedade a possibilidade de construção de uma opinião pública esclarecida é necessário que haja debates de ideias”. E não é com censura que se consegue isso.
O livro Resistência: leitores, autores, livreiros, editores e censura a livros no Brasil de 2019 a 2022 está disponível no Portal de Livros Abertos da USP.
*Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.