O Brasil e a sombra da censura que pairou por quatro anos

Em livro recém-lançado, professores elencam e analisam as tentativas censórias de livros no País entre 2019 e 2022

 24/11/2023 - Publicado há 12 meses     Atualizado: 29/11/2023 às 13:21

Texto: Marcello Rollemberg
Arte: Carolina Borin*

Fotomontagem com a imagem da embalagem que cobria 14 mil exemplares de livros com temáticas LGBTQIA+ que foram distribuídos pelo youtuber Felipe Neto, na Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro, em 2019, como um protesto contra a tentativa de censura feita pelo então prefeito Marcelo Crivella - Fotomontagem: Jornal da USP - Imagens: Vectonauta/Freepik e Cecília Bastos/USP Imagens

Fotomontagem com a imagem da embalagem que cobria 14 mil exemplares de livros com temáticas LGBTQIA+ que foram distribuídos pelo youtuber Felipe Neto, na Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro, em 2019, como um protesto contra a tentativa de censura feita pelo então prefeito Marcelo Crivella - Fotomontagem: Jornal da USP - Imagens: Vectonauta/Freepik e Cecília Bastos/USP Imagens

De 1º de janeiro de 2019 a 31 de dezembro de 2022, o Brasil viveu envolvido por um hálito acre, como se algum ogro tivesse emergido do lado escuro da força. E não havia enxaguante bucal que arrefecesse os maus augúrios e as incertezas que esta situação acarretava: fake news, negacionismo, olhares saudosos para tempos plúmbeos – com a vontade constante de restaurar uma noite que durou 21 anos, com todas suas mazelas –, ataques às instituições estabelecidas e desprezo pela saúde e pela educação. E censura. Sim. Censura. Por mais que a chamada “Constituição Cidadã” de 1988 tenha extirpado oficialmente esse cancro da vida brasileira, durante os últimos quatro anos houve a vontade insistente – e mesmo a ação – de censurar vozes discordantes em textos e livros que afrontassem uma nunca bem explicada parcela da sociedade identificada como “gente de bem”.

É justamente sobre essa ação censória durante o governo que passou que trata o recém-lançado Resistência – Leitores, autores, livreiros, editores e censura a livros no Brasil de 2019 a 2022 (Edições EACH), da professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP (EACH-USP) Sandra Reimão, e dos professores João Elias Nery (Universidade Paulus de Comunicação – FapCom) e Flamarion Maués (Instituto Federal de São Paulo – IFSP). A publicação está disponível no Portal de livros abertos da USP e pode ser acessada pelo link  https://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/book/1122. “As ações de censura que elencamos aqui foram noticiadas por jornais e revistas. Devido à proliferação da ideologia autoritária na sociedade brasileira no período em foco, muitos outros casos devem ter ocorrido e não chegaram a virar notícia ou só tiveram repercussão local”, explicam os autores. O livro enfoca também algumas ações de defesa pública da liberdade, da produção e da circulação de livros que ocorreram no período.

“Entre os anos de 2019 e 2022, mobilizando órgãos de justiça e polícia, o governo federal utilizou princípios caros às ditaduras: censurar, proibir e punir a circulação da cultura que não corresponde aos valores dos governantes”, escrevem os autores. “Esta postura atingiu o campo da política, no qual se disputam valores, e a oposição ditadura/democracia é trazida à tona com relevância, mas atinge também frontalmente o campo da cultura, que se vê em disputa com o Executivo federal, que no período anterior havia incentivado a autonomia e o desenvolvimento de práticas críticas, ampliando a participação da sociedade nos espaços públicos”, afirmam.

Capa do livro "Resistência – leitores, autores, livreiros, editores e censura a livros no Brasil de 2019 a 2022" - Imagem: Reprodução/Portal de Livros Abertos USP

É importante ressaltar que a censura estudada e avaliada neste volume acontece no período presidencial que passou, mas não necessariamente é exclusividade do antigo inquilino do Palácio do Planalto e seus áulicos com cargos ministeriais. Também nos âmbitos municipais e estaduais houve manifestações censórias. E mesmo pessoas comuns, sem cargos oficiais, se arvoraram em censores e bradavam a tesoura imaginária – mas ainda assim cortante – da repressão à opinião alheia, aquela que não coadunava com a sua ou a de seus parceiros nos whatsapps da vida.

“A cultura autoritária da vigilância e da perseguição ao diferente verificada nas esferas do poder incentivou um imenso número de ações realizadas por cidadãos comuns, que passaram a achar que poderiam assim agir, pois estariam em consonância com as posturas do governo de extrema direita”, analisam os autores. “São milhares de relatos de perseguições, difamações, ameaças e ofensas por meio de mídias sociais e também presencialmente durante os quatro anos do governo de Jair Bolsonaro.” 

Fadas, duendes e “beijaço coletivo” contra a censura

Em exatas cem páginas, Sandra, Nery e Maués elencam e avaliam uma série de ações que visaram censurar ou manietar, de alguma forma, a liberdade de expressão durante os últimos quatro anos. O livro começa com um prenúncio do que viria pela frente, narrando o episódio de tentativa de censura por parte de um colégio particular do Rio de Janeiro do livro Meninos sem Pátria, de Luiz Puntel, integrante da coleção Vagalume, da Editora Ática. O motivo? A publicação estaria tentando “doutrinar” os alunos da sexta série do ensino fundamental (entre 11 e 12 anos) com ideologia comunista. No dia 5 de outubro de 2018 – dois dias antes do primeiro turno das eleições que levariam Bolsonaro e Fernando Haddad ao segundo turno, dali a algumas semanas –, cerca de cinquenta alunos e ex-alunos reuniram-se na calçada em frente ao colégio particular católico Santo Agostinho, no bairro do Leblon, na cidade do Rio de Janeiro, para protestar contra a suspensão da indicação da leitura do livro. E a suspensão foi retirada. Mas o estrago já estava feito.

Sandra Reimão - Foto: Reprodução/YouTube/Fernanda P.

“Evidentemente, a tentativa de cercear a circulação do livro Meninos sem Pátria deu-se por causa do tema – a recente ditadura militar brasileira. Não podemos esquecer que há na nova extrema direita brasileira um discurso de louvação de ações da repressão e de apoio a torturadores”, analisam Sandra, Nery e Maués, mostrando como a mobilização dos alunos repercutiu e ganhou espaço na mídia. “Tornar pública e noticiar a tentativa de censura foi uma forma de luta contra o atraso e o autoritarismo que este ato representa – e esse recurso teve um grande efeito por tratar-se de um colégio prestigiado em uma grande capital”, afirmam. Mas isto era só o começo – um prenúncio, como foi dito. Ou a ante-sala do arbítrio.

E o braço longo e mal articulado da tentativa de censura não media esforços, não disfarçava ações nem perdia tempo. E também não escolhia “inimigos”: tudo o que não ressoasse “patriótico” – ou coisa que o valha – era colocado contra a parede. E não importava se fossem duendes ou fadas, esses seres tão perigosos quanto inexistentes. “Em fevereiro de 2019, o maior clube de livros infantis do Brasil, com cerca de 170.000 assinantes, o Leiturinha, publicou um edital para autores e assinalava que não aceitava a inscrição de obras com “seres mágicos, como bruxas, fadas e duendes”, contam os autores. “A repercussão negativa nas mídias sociais foi imensa e rapidamente o clube retirou a chamada. Este edital estava ressoando a postura do governo Jair Bolsonaro, empossado no mês anterior. A perseguição aos ‘seres mágicos’ na literatura infantil é um dos temas constantes entre os chamados ‘bolsonaristas’”, explicam eles.

Flamarion Maués - Foto: Lattes

Outros casos são apresentados pelos autores, como a tentativa em 2020 do governo de Rondônia de expurgar das bibliotecas das escolas títulos que apresentassem “conteúdos inadequados às crianças e adolescentes” – “a lista continha títulos clássicos da literatura brasileira e estrangeira. Não havia referência a nenhum parecer técnico para subsidiar esta acusação”, relatam os autores. Entre os livros que seriam expurgados estavam Macunaíma, de Mário de Andrade, e Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. E dois dos casos relatados por Reimão, Nery e Maués tiveram um dose extra de repercussão.

Um, em nível federal, foi a recusa por parte do Ministério das Relações Exteriores de publicar um livro não por causa do seu teor, mas devido a quem iria prefaciá-lo – ”reafirmando como, com grande desfaçatez, o autoritarismo arbitrário age constantemente em diferentes esferas do poder e do espaço público”, afirmam Sandra Reimão, João Elias Nery e Flamarion Maués. Como relembram os autores, em agosto de 2019, a Fundação Alexandre de Gusmão, Funag, vinculada ao Ministério das Relações Exteriores, encomendou ao embaixador Synesio Sampaio Góes Filho uma biografia de seu patrono. O trabalho que recebeu o título Alexandre de Gusmão (1695-1753): O Estadista que Desenhou o Mapa do Brasil foi entregue e aprovado pelo Ministério. Após a aprovação, o autor convidou o embaixador Rubens Ricupero para prefaciar a obra. No entanto, o autor foi informado que a obra só seria publicada pelo Itamaraty se ele retirasse o prefácio – Rubens Ricupero havia manifestado várias opiniões críticas ao então governo Bolsonaro e ao ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo, como lembram bem os autores. O autor Góes Filho considerou essa atitude uma ação de censura e retirou a obra da Funag – e acabou publicando seu livro pela Editora Record.

Em outro caso, esse com ainda mais alarde, a quase vítima de censura foi uma graphic novel – esses livros com design caprichado de quadrinhos bem elaborados que um dia, décadas atrás, foram chamados de gibis e hoje são editados como livros. Durante a Bienal do Livro do Rio de Janeiro de 2019, em 5 de setembro, o então prefeito Marcelo Crivella postou um vídeo no Twitter informando que havia determinado aos organizadores da Bienal o recolhimento dos exemplares do livro Vingadores: a Cruzada das Crianças, de autoria de Allan Heinberg e Jim Cheung, publicado pela Marvel, por conter “conteúdo sexual para menores”. “Na realidade, o que havia, por parte do prefeito do Rio de Janeiro, era uma perseguição homofóbica, pois há um beijo entre dois personagens masculinos em uma página interna do livro”, afirmam Sandra, Nery e Maués. “Convém ressaltar que o livro estava embalado por capas plásticas, como prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente. Note-se que não há nenhuma imagem erótica ou sexual na capa do livro”, ressaltam eles.

João Elias Nery - Foto: Lattes

Essa ação de Crivella, como outras narradas no livro – e algumas mostradas aqui nesse texto – não deu em nada prático além da balbúrdia que causou: a Bienal emitiu nota afirmando que não realizaria o recolhimento de nenhum livro; no dia 6 de setembro, em menos de uma hora, foram vendidos todos os exemplares de todos os estandes da Bienal de Vingadores: a Cruzada das Crianças; fiscais da Secretaria de Ordem Pública do Rio de Janeiro foram enviados à Bienal para recolher a graphic novel e saíram com as vastas mãos abanando; e até a Ordem dos Advogados do Brasil, OAB, entrou na pendenga e garantiu que o prefeito não tinha poder para recolher obras literárias.

Em 2019, fiscais foram até a Bienal do Livro, no Rio de Janeiro, com o objetivo de vistoriar livros que estavam sendo vendidos - Foto: Reprodução/YouTube/Band News

Para arrematar, o grand finale contra a censura e contra o autoritarismo que estavam dando os ares na zona oeste do Rio de Janeiro: no dia 7 de setembro, às 19 horas, no Riocentro, local onde ocorria a Bienal Internacional do Livro, várias bandeiras com cores do arco-íris foram estendidas e o público realizou um grande beijo simultâneo com dizeres: “Fora Crivella” e “não vai ter censura”.

Estes são exemplos de como Resistência – leitores, autores, livreiros, editores e censura a livros no Brasil de 2019 a 2022 acaba se tornando um documento relevante – além de mostrar como a sociedade, de várias formas e por diversos caminhos, enfrentou, confrontou e venceu tentativas de censura, também traz, no final do volume, outros atos de resistência em defesa do livro e da liberdade de expressão. A censura tentou se intrometer nos desvãos do tecido social (com artimanhas políticas) e foi combatida e rechaçada – por mais que em outros casos possa ter tido até uma vitória de Pirro, como aquelas pelas quais se vangloriava Damares Alves, a ex-ministra da Família, que viu Jesus numa goiabeira. 

A sociedade brasileira aprendeu – mesmo que por vezes um tanto aos trancos – que a liberdade conquistada, qualquer que seja ela, é inegociável. Pode-se até tentar coibi-la, mas se o estado de alerta das instituições que trabalham em prol do Estado Democrático de Direito e das liberdades inerentes a ele estiver operante, serão tentativas que poderão até fazer muito barulho, mas não passará disso. É como afirmam Sandra, Nery e Maués: “Para que exista em uma sociedade a possibilidade de construção de uma opinião pública esclarecida é necessário que haja debates de ideias”. E não é com censura que se consegue isso.

O livro Resistência: leitores, autores, livreiros, editores e censura a livros no Brasil de 2019 a 2022 está disponível no Portal de Livros Abertos da USP.

*Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado


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