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No Brasil, australiana fala sobre a década traduzindo Grande Sertão: Veredas
Leia a entrevista com Alison Entrekin, tradutora de Guimarães Rosa para o inglês, que fará palestras na USP nas próximas semanas
O evento foi organizado pela Oficina de Leitura Guimarães Rosa IEB-USP – Imagem: Divulgação/IEB-USP
Desde 2014, a tradutora australiana Alison Entrekin trabalha na nova versão em inglês de Grande Sertão: Veredas, livro de Guimarães Rosa. A fim de compartilhar sua experiência com os leitores e pesquisadores brasileiros, Entrekin participa da Travessia Tradutória, evento que o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP) apresenta nas próximas semanas. Os encontros com a tradutora acontecem em três datas: uma palestra presencial no dia 25 de outubro, entre as 14h e 16h, no Auditório 1 do IEB; uma participação na Oficina de Leitura Guimarães Rosa, entre 18h e 20h do dia 30; e uma conferência virtual em 5 de novembro, transmitida das 15h às 17h no canal de YouTube do IEBinário. Não é necessária inscrição.
Batizado de Vastlands: The Crossing, a tradução chega ao mercado em 2026 pela editora norte-americana Simon & Schuster. “Nesse evento no IEB, minha palestra será sobre a tradução de Grande Sertão: Veredas que, claro, é um assunto inesgotável. Eu poderia falar semanas a fio sobre qualquer um dos assuntos dentro da tradução, mas eu escolhi, dessa vez, falar quais foram as técnicas que eu desenvolvi para lidar com os neologismos da obra”, diz Alison Entrekin ao Jornal da USP. Abaixo, confira trechos da entrevista em que a tradutora, que vive no Brasil desde 1998, fala dos 10 anos com este livro.
Jornal da USP: Nonada, palavra inventada que soma “não” e “nada”, é o neologismo que abre o livro Grande Sertão: Veredas. Como solucionou desafios de tradução como esse para o inglês?
Alison Entrekin: O neologismo “nonada” vai ser surpresa, porque eu já mudei algumas vezes, e é possível que eu mude ainda. O Rosa tinha várias maneiras de criar neologismos. Ele criava palavras-valises, quando você junta duas palavras conhecidas e produz uma nova, um filhote que tem feições da mãe e do pai. Você acaba reconhecendo as origens, a árvore genealógica da palavra, ao mesmo tempo que ela acaba tendo feições novas também. Esta é só uma das várias técnicas que ele usou, ele também colocava sufixos em palavras que não levam aqueles sufixos arcaicos, que adorava colocar no fim das palavras. Você entende perfeitamente, mas sente o estranhamento também.
Ele cria neologismo por analogia, então é uma palavra nova, mas ela lembra uma palavra existente e funciona, ela acaba sendo verossímil por causa dessa semelhança com uma palavra existente. Ele criava onomatopeias, ele pegava emprestado palavras de outras línguas e brincava com elas em português… São diversas operações que ele fazia dentro do texto. Quando eu comecei a me deparar com essas coisas, fui experimentando. Foi um laboratório de experiências por muito tempo até chegar em algumas técnicas observando o que ele fez.
Jornal da USP: Qual era o seu processo para lidar com uma palavra-valise?
Alison Entrekin: Sempre o que o tradutor literário tenta é fazer o que o autor fez. Se não conseguir, a gente parte para outros recursos. Observando como ele fazia as palavras-valises, eu pegava a palavra que ele tinha criado e tentava identificar quais eram as palavras que deram vida à essa nova. A partir dessas palavras originais, eu fazia a tradução e pegava sinônimos, cortava pedaços e tentava cruzar e enxertar um pedaço de uma palavra no tronco de outra. Muitas vezes, as coisas não dão certo, mas de repente, se cria uma palavra que parece que existe, que funciona e tem graça.
Muitas vezes, não é possível reconstruir exatamente da mesma maneira que Rosa fez. E aí entra uma questão muito importante nesse tipo de tradução, que é a compensação: você faz em outro trecho da frase o que Rosa fez, mudando um pouco a posição. Se ele quiser uma palavra-valise aqui no começo da frase e eu não conseguir, eu crio outra no final da frase, onde a língua de chegada permite. Foi um trabalho de tentar fazer as coisas nativas na língua inglesa, até que funcionem com a mesma força poética do português.
Jornal da USP: Você já traduziu Perto do Coração Selvagem, Meu Pé de Laranja Lima e Cidade de Deus. A experiência com esses outros grandes livros da língua portuguesa te preparou de alguma forma para traduzir o Guimarães Rosa?
Alison Entrekin: Nada me preparou. Nada prepara ninguém, nunca. Mas com o tempo de mercado, de ter traduzido vários livros difíceis e longos, a gente vai criando técnicas de sobrevivência. É saber que temos que fazer tantas palavras por dia no rascunho e ir avançando aos poucos. Por ser uma coisa que não acaba dentro de alguns meses, que continua ano após ano, pelo menos dá a sensação de que um dia iria acabar, não sei quando, mas que eu estou fazendo progresso. Não só em termos de avançar pelo texto, mas em termos de escolhas estilísticas, descobertas e epifanias.
Jornal da USP: Quais foram as ferramentas que te guiaram na interpretação do texto?
Alison Entrekin: Toda a fortuna crítica. Hoje tem o Léxico do Guimarães Rosa, um trabalho imenso que reúne quase todos os neologismos criados nas obras dele. Tem um outro livro que se chama O universo e vocabulário do Grande Sertão, que saiu em 1970. Tem um outro livro cujo título é Para Ler Grande Sertão: Veredas, que destrincha as frases com aqueles nós. Eu tive tudo isso e mais milhares de outros dicionários, glossários, pesquisas de mestrado e de doutorado sobre diversos assuntos dentro do livro… É inesgotável. Tive ferramentas que me permitiram avançar na tradução, que os tradutores originais de 1963 não tiveram.
Eu fiquei dialogando muito com esses livros, porque às vezes eu não concordava com a explicação dada por eles, mas pelo menos isso era um ponto de partida: para eu não concordar como com alguma coisa, eu tenho que ter uma razão, ver uma coisa diferente. Porque não há nenhuma leitura mais próxima do que uma tradução — a gente fica marinando no texto o tempo todo e, às vezes, percebe coisas que só são possíveis com a mão na massa, não como leitor ou estudioso. Quando você tem que recriar aquilo, você percebe outras técnicas.
Jornal da USP: E como foi encarar os desafios dessa tradução durante a última década?
Alison Entrekin: Aprender como lidar com certas coisas tem o seu tempo. Se eu tivesse pegado todos esses anos em que eu fiquei envolvida com esse projeto e comprimido todo o tempo em que eu efetivamente fiquei fazendo a tradução, que foi uns cinco ou seis anos, mesmo assim é possível que essas soluções não tivessem chegado a tempo. Tiveram coisas que eu só decidi bem no final, depois de 10 anos. O título, por exemplo, que a gente fechou há três semanas. Os direitos do livro já tinham sido vendidos para as editoras no exterior e elas queriam fazer o anúncio, mas a gente não tinha um título. Então começamos um debate que durou quatro meses.
Jornal da USP: Qual foi o processo até o consenso pelo título Vastlands: The Crossing?
Alison Entrekin: Eu tinha sugerido um título que os diretores [da Simon and Schuster] não gostaram. O debate foi riquíssimo mas, como eu tenho essa imersão de 10 anos, tive que esperar um tempo para eles também chegarem no ponto. Foi o tempo de eu explicar tudo que se pode entender desse título, todas as possibilidades de tradução, e de traduzir as cartas que Rosa escreveu para Harriet de Onís, que foi a primeira tradutora para o inglês nos anos 1960. Eles dois tiveram uma discussão do título lá atrás – todas as edições, em todos as línguas, já bateram a cabeça para saber o que vão fazer com esse título.
Essas cartas do Rosa demonstram como ele concebia esse título. Ele deu várias dicas e sugestões em inglês, cada uma diferente da outra, mais casadas com a estrutura propriamente do que com o que cada palavra significa. Discutindo em sessões de Zoom, a gente ficava 10 minutos em silêncio e, de repente, alguém gritava uma palavra e começava a brincar, depois descartava e pensava em outra. No final, tive a ideia de Vastlands, que é um neologismo. Me orgulho muito de ter conseguido manter os dois pontos, porque era a coisa que Rosa mais queria no título dele. Para mim, aqueles dois pontos são pilares, a parte que dá sustentação entre uma parte e outra da gangorra.
Jornal da USP: Apesar de se passar nos rincões do Brasil, há uma certa universalidade nesta obra do Guimarães Rosa. Como você se sente ao expandir o alcance desse livro, desta vez levando para os leitores da língua inglesa?
Alison Entrekin: No sentido de contar uma história que vai muito além do universo somente brasileiro. Ela tem um apelo para qualquer um de qualquer língua ou cultura, se tiver como acessar o livro. É uma história que tem pernas que viajam.
Ao mesmo tempo, ele fez isso com uma matéria 100% brasileira, com a língua falada no interior de Minas Gerais. Ele cria um laboratório de experimentação com a língua e eu queria ser muito fiel a esse espírito. Em qualquer tradução, a gente descarta todas as palavras e escreve todas de novo, e eu queria tomar muito cuidado para não dar um sotaque americano ou australiano para a fala do Riobaldo, queria que ele tivesse uma coisa muito única. Eu estou trabalhando com uma outra matéria: o Rosa trabalhou com uma argila e eu com uma outra, que não se molda de forma exatamente igual, mas eu tenho que tentar chegar perto. Foi um exercício de evitar certas coisas que vão remeter a outros países e outras culturas e, ao mesmo tempo, criar dentro da minha língua uma sugestão de dialeto crível.
*Estagiária sob supervisão de Marcello Rollemberg
**Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado
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