Nacionalismo e vanguarda dialogam em novo trabalho de Edelton Gloeden

Violonista e professor da USP lança álbum com as obras integrais para violão solo de Camargo Guarnieri, César Guerra-Peixe, Cláudio Santoro, Osvaldo Lacerda e Edino Krieger

 28/03/2024 - Publicado há 4 meses

Texto: Luiz Prado

Arte: Simone Gomes

“Meu intuito foi fazer uma documentação, porque a falta de memória parece muito impregnada em nossa cultura e eu vejo esse repertório jogado para escanteio”, diz Edelton Gloeden a respeito do seu novo álbum, Integrais - Foto: Ricardo Ferreira

Nas mãos de Edelton Gloeden, as seis cordas do violão cantam as veredas que os compositores brasileiros percorreram nos últimos 80 anos. Trajetórias que encontraram o Brasil profundo e abraçaram a experimentação radical, colecionando descobertas, polêmicas e música da mais alta qualidade.

O violonista e professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP acaba de lançar Integrais. Trata-se de um álbum duplo no qual registra as obras completas para violão solo de cinco compositores brasileiros: Camargo Guarnieri (1907-1993), Cláudio Santoro (1919-1989), Osvaldo Lacerda (1927- 2011), Edino Krieger (1928-2022) e César Guerra-Peixe (1914-1993).

Para os quatro primeiros, o trabalho representa uma gravação mundial inédita, reunindo todas as suas composições para o instrumento solo. No caso de César Guerra-Peixe, cuja produção para violão foi mais intensa e por isso mesmo ocupa todo o segundo CD, Gloeden oferece um registro novo de suas obras, incluindo o material que compôs para fins didáticos.

Lançado pelo Selo Sesc, o álbum está disponível em CD e nas plataformas digitais. Acompanha as gravações um livreto bilíngue com textos de Gloeden e de outros pesquisadores, com apontamentos sobre os compositores e suas obras. Documento precioso, que ajuda o ouvinte a passear pelas explorações sonoras das peças.

Estudioso do violão erudito, Gloeden vem se aprofundando ao longo dos anos justamente no repertório da música brasileira. Para além dos compositores de Integrais, dirige também o olhar para as obras de nomes como Francisco Mignone, Gilberto Mendes e Jorge Antunes. Como intérprete, atua como solista, acompanha grupos de câmara e se apresenta com orquestras, transitando entre o Brasil e o exterior. No currículo, traz nos últimos anos os álbuns Puertas (2017), gravado com a soprano Adélia Issa, e 12 Valsas Brasileiras em Forma de Estudos (2018), com obras de Francisco Mignone.

“Meu intuito foi fazer uma documentação, porque a falta de memória parece muito impregnada em nossa cultura e eu vejo esse repertório jogado para escanteio”, conta o professor em entrevista para o Jornal da USP.

“Quis registrar essa produção e chamar atenção para ela, fazer os estudantes explorá-la mais. Esse CD não esgota, ele é o ínicio da exploração desse repertório.”

Ouça no link abaixo o boletim Dica Cultural, da Rádio USP, sobre o lançamento de Integrais, de Edelton Gloeden. A produção e apresentação são da jornalista Heloisa Granito.

Logo da Rádio USP

 

Material que percorre uma linha do tempo iniciada na década de 1940 e vai até o final dos anos 2010. Registra o crescimento do interesse dos compositores de concerto pelo violão, instrumento que até a primeira metade do século 20 merecia atenção quase exclusiva da música popular e dos próprios violonistas.

No período, já se editavam obras para o instrumento, mas o público-alvo eram principalmente os grupos de choro. Garoto (1915-1955) e Dilermando Reis (1916-1977) foram expoentes da tradição dos violonistas-compositores vinculados à música popular, que criariam descendência em nomes como Baden Powell (1937-2000), Paulo Bellinati e Yamandu Costa.

Exceção era Heitor Villa-Lobos (1887-1959), exímio violonista, que escrevia para o instrumento com facilidade e deixou dois ciclos de composição para violão solo – os 12 Estudos e os Cinco Prelúdios – que até hoje são referências no meio. Desde sua edição na década de 1950, esses trabalhos atingiram tamanho prestígio que aventurar-se na composição para o instrumento pós-Villa-Lobos tornou-se uma empreitada perigosa.

Havia alguns fatores que tornavam a caminhada cheia de obstáculos, explica Gloeden. Um deles, o próprio fato de os compositores não tocarem o instrumento, o que se apresentava como uma dificuldade para dialogar no idioma do violão. Outro, a inserção tardia no meio universitário. Foi só depois dos anos 1950 que a produção se disseminou, com o surgimento de violonistas conceituados e interessados em estudos acadêmicos. Como é o caso de Turíbio Santos, responsável por divulgar internacionalmente parte do repertório dos compositores gravados agora por Gloeden e que, nos anos 1980, criaria o curso de Violão da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

 

Edelton Gloeden – Foto: Ricardo Ferreira

Trajeto difícil, mas não impossível, e que tem como ponto de partida o álbum Ponteio (1944), de Camargo Guarnieri, indo até 2019, com A Bela Luna, de Edino Krieger. Nesses 75 anos de música, Gloeden faz as cordas soarem por duas grandes vertentes estéticas, pelas quais os compositores fluíram e se confrontaram.

Uma delas corresponde ao modernismo nacionalista ligado às ideias de Mário de Andrade (1893-1945), expostas sobretudo na obra Ensaio sobre a Música Brasileira, de 1928. Segundo Mário, os compositores deveriam ter compromisso com as raízes da música popular brasileira e aí estaria a matéria-prima de seu trabalho. Sua inspiração deveria vir do folclore, das manifestações populares da cidade e das comunidades campesinas.

Ideias fortes e extremamente influentes. Em certa medida, a estética nacionalista de Mário rondou todos os nomes gravados agora por Gloeden, em maior ou menor grau, em um ou outro momento da vida. Mas Guarnieri, discípulo e amigo de Mário, e seu aluno, Osvaldo Lacerda, foram os líderes desse pensamento em suas respectivas gerações. Guerra-Peixe, graças a suas pesquisas folclóricas e ao contato com a cultura popular do Nordeste, também navegaria muito nesse mar.

Exemplos estão em Ponteio e Valsa-Chôro no(1954), de Guarnieri, com formas e harmonias próximas da música popular. Também em Peixinhos da Guiné (1984), de Guerra-Peixe, versão de uma canção infantil recolhida em Cachoeiro do Itapemirim, no Espírito Santo. E ainda em Violão a Bordo, passagem de Caderno de Mariza (1983), outra composição de Guerra-Peixe, desta vez inspirada por uma canção portuguesa conhecida pelo pai do compositor.

Ligados ao Movimento Música Viva, liderado por Hans-Joachim Koellreutter (1915-2005), estiveram Claudio Santoro, Krieger e, em um primeiro momento, também Guerra-Peixe. Inspirados pelas vanguardas europeias, dedicaram-se aos experimentos com o atonalismo e o dodecafonismo. As próprias lideranças do nacionalismo iriam ter sua cota de influência internacionalista: nas obras da maturidade, Guarnieri flertaria com certos elementos de vanguarda.

As três peças de Santoro para violão solo – Prelúdios (1982), Estudo n3 (1982) e Fantasia Sul América (1983) são representativas do afastamento da estética nacionalista que dominou o instrumento até os anos 1970. Esses novos rumos também podem ser vistos em Passacalha para Fred Schneiter (2002), de Krieger, obra de viés neoclássico, na qual arpejos, progressões escalares, trêmulos, harmônicos e percussões se sucedem em virtuosismo crescente.

Ouça aqui três clássicos do violão do Brasil

No vídeo acima, Gloeden interpreta Prelúdios V. Ponteado Nordestino (1966), de César Guerra-Peixe

Peixinhos da Guiné (1984), de César Guerra-Peixe, na interpretação de Edelton Gloeden

Valsa-Chôro nº 1 (1954), de Mozart Camargo Guarnieri, interpretado por Edelton Gloeden

Escutando hoje o conjunto de gravações, todas essas idas e vindas parecem ter sido tranquilas. Não foi bem assim. Levou algum tempo até que posições mais moderadas pudessem florescer. Afinal, nas disputas culturais da Guerra Fria – uma polarização em que estamos anacronicamente metidos mais uma vez –, assumir partido era coisa séria. E o campo da música não atravessaria o período sem seus terremotos.

Para se ter uma ideia, Guarnieri chamou a polêmica para si com a publicação, em 1950, de sua Carta Aberta aos Músicos e Críticos do Brasil, na qual condenava com ferocidade o dodecafonismo, considerando-o uma degeneração da música. Era um período de tomada de posições, logo após a Segunda Guerra Mundial e o início da tensão entre União Soviética e Estados Unidos.

Dois anos antes, em Praga, o Congresso de Compositores e Críticos Musicais havia proibido a música dodecafônica para compositores do campo progressista. Santoro, que era um dos representantes brasileiros no congresso e experimentava o dodecafonismo, tratou de abandonar por um tempo a vanguarda, avisando seu mestre Koellreutter da decisão por cartas. Guerra-Peixe também optaria pelo nacionalismo das manifestações populares. Apenas Krieger continuaria mais ao lado do professor.

Mas o tempo e a inventividade artística tratou de borrar essas fronteiras, e as peças para violão solo que esses compositores produziram acabaram se tornando testemunhas dessas aventuras estéticas. Manifestações das inquietações, experimentações e reorganização de posturas diante das discussões que enredavam política e arte. Nesse conflito sem sangue, só acabamos ganhando com o saldo, conforme o trabalho de Gloeden comprova.

“Esses compositores não são ortodoxos, eles misturam tudo”, comenta Gloeden, exemplificando o intercâmbio estético nos próprios trabalhos. “Fiz questão de começar o CD com uma obra de Krieger, Romanceiro (1984), que foi trilha sonora para uma peça de teatro baseada no Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles. É uma espécie de canção sertaneja, bem simples, com aquele clima de aridez do nosso sertão. E depois fui para Ritmata (1974), com uma tendência de vanguarda, muito ligada ao neoclassicismo, com percussão, trêmulos e clusters.”

Gloeden fala do repertório com a propriedade de quem o conhece há muitos anos, seja por conta de suas próprias apresentações, seja por usá-lo em suas aulas da USP. Apenas uma música foi novidade para o violonista, A Bela Luna, faixa mais recente de Krieger. Nem mesmo a família do compositor lembrou-se dela quando o violonista fez os primeiros contatos para o projeto. A partitura da obra só chegaria mais tarde.

O professor não chegou a conhecer pessoalmente Krieger, mas se lembra de dois encontros com Santoro – classificados por ele como “fantásticos” –, devidamente registrados no livreto que acompanha Integrais. O primeiro se deu no Festival de Música de Londrina, em 1985, quando Gloeden apresentou Fantasia Sul América, arrancando elogios do compositor. O seguinte aconteceu dois anos depois, por ocasião do Festival de Música de Brasília, em que o violonista realizou a primeira audição da obra para violão de Santoro. Passados alguns dias, em um encontro particular, o compositor tentaria entusiasmado registrar a interpretação de Gloeden em gravação. Ficou mesmo para o CD recém-lançado.

De Guarnieri, as recordações guardam tom de humor. “Sempre tive vontade de estar com ele e tocar, mas suas músicas para violão são complicadas”, rememora o violonista. “Alguns meses antes de sua morte, em 1993, ele esteve no Departamento de Música da ECA e fizemos um recital, quando toquei duas obras para ele. Estava para reatar o contato, porque naquela época já estava conseguindo tocar suas músicas”.

A anedota é exemplar de uma dinâmica que atravessa boa parte do álbum: a dificuldade que compositores não versados no violão trazem para os intérpretes. “Muitas vezes eles escrevem coisas impossíveis de tocar ou que trazem questões de comprometimento sonoro”, revela Gloeden. Não é um problema. Pelo contrário: tais obras obrigam os instrumentistas a sair da zona de conforto. “Eles não abriam mão de sua linguagem e a da sua música, mesmo escrevendo para um instrumento com o qual não tinham afinidade. Essa contribuição é fundamental, pois instiga os violonistas a melhorar suas técnicas e seu conhecimento musical.”

Da lista selecionada pelo professor, Guerra-Peixe era quem mais tinha afinidade com o instrumento, graças ao contato com o violão na juventude e à familiaridade com suas formas de tocar adquirida ao longo de suas pesquisas folclóricas. Um dos motivos que explicam o volume considerável de obras que escreveu para o instrumento, se comparado aos demais. No CD, Gloeden fez questão de registrar inclusive a obra didática do compositor, tendo em vista o uso pelos estudantes.

Iniciado no final de 2018, o projeto de Integrais atravessou as incertezas e os atrasos da pandemia de covid-19. O que deveria estar finalizado em 2021 só começou mesmo em fevereiro de 2022, quando Gloeden já havia tomado a quarta dose da vacina e se sentiu seguro para ir ao estúdio. O resultado, como o professor define, é uma música de alto nível, com complexidades que a tornam difícil de ouvir em alguns momentos, mas que podem ser transpostas com audições em “doses homeopáticas”, como ele mesmo sugere. E sem contra-indicações, pode-se acrescentar.

 

Integrais, de Edelton Gloeden, CD duplo, duração de 2 horas e 34 minutos, R$ 50,00 (versão CD). Disponível nas plataformas de streaming, no Sesc Digital e em CD nas Lojas Sesc.

Capa do álbum duplo "Integrais", de Edelton Gloeden - Foto: Divulgação

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