Monólogo aborda questões atuais através da vida e obra de Leonilson

Artista cearense, que morreu em 1993, vítima de Aids, é retratado em peça no Teatro da USP

 Publicado: 03/07/2024

Texto: Ricardo Thomé*
Arte: Diego Facundini**

Cena da peça em cartaz no Teatro da USP – Foto: Lenise Pinheiro/Infoteatro/Divulgação

Neste fim de semana, o Teatro da USP (Tusp) recebe, na Cidade Universitária, o espetáculo Ser José Leonilson. Estrelada por Laerte Késsimos, a peça, que é um monólogo, conta a história do artista plástico cearense José Leonilson, morto em 1993, aos 36 anos, vítima de Aids, e explora diferentes aspectos relacionados à identidade, à masculinidade em sociedade e à estigmatização de pessoas com HIV. O monólogo estreou em 2019, na sala do Tusp no Centro MariAntonia da USP, e, devido à pandemia, teve três temporadas on-line até retornar ao Itaú Cultural, no ano passado, e reestrear de forma circular em 2024. Ser José Leonilson terá apresentações gratuitas em cinco teatros de regiões diferentes da capital paulista, começando pelo Teatro da USP, ao longo de dois meses.

A peça: uma obsessão que se tornou realidade

O espetáculo se passa em um ateliê de costura e mistura o relato pessoal de Leonilson e de Laerte ao trabalho artístico de ambos por meio das artes visuais, da narração de histórias e do documentário da vida e da obra de Leonilson. A ideia é não só explorar questões pessoais do artista, como também seus trabalhos — pinturas, bordados e audiovisuais. Nesse sentido, o áudio e o vídeo em formato de “confissão”, como define a diretora Aura Cunha — sejam os documentados por Leonilson, sejam os gravados por Késsimos —, passam a ser essenciais para o entendimento de quem ele foi como pessoa e como artista de destaque internacional na sua área.

José Leonilson se mudou ainda cedo para São Paulo, onde explorou diferentes áreas dentro das artes plásticas — Foto: Tusp/Divulgação

Em conversa ao Jornal da USP, Laerte Késsimos, que completa 20 anos de carreira em 2024, afirma que partiu dele o interesse por fazer uma peça em homenagem ao artista plástico cearense. “Era praticamente uma obsessão que eu tinha. O trabalho do Leonilson atrai e revela muito, até em termos de intimidade. As pessoas têm a sensação de que o conhecem de alguma forma, por entenderem as questões pelas quais ele passou. E comigo não foi diferente.”

O ator Laerte Késsimos - Foto: Laerte Késsimos/Youtube/Reprodução

A diretora Aura Cunha - Foto: Arquivo pessoal

A diretora Aura Cunha conta que, quando chamada por Késsimos para dirigir a peça, procurou entender melhor o porquê do interesse e da escolha do ator por Leonilson. “Eu cheguei mais crua, e consegui ver o Laerte olhando para aquele Leonilson e, aos poucos, me aproximar do Laerte real, menos ficcional, que estava por trás. Era quase como uma criança deslumbrada montando um quebra-cabeça do seu super-herói favorito.”

Histórias em paralelo

Um dos pontos de destaque do espetáculo — e que corrobora a visão de Aura — é o fato de Laerte Késsimos e José Leonilson poderem ser confundidos com frequência. Para além da semelhança física, do interesse pelas artes visuais e das dificuldades envolvendo as relações familiares como homossexuais, a diretora observa uma simbiose mais profunda. “É tudo muito misturado. Às vezes me pego pensando: ‘Nossa, de quem é esse texto mesmo? É dos áudios-diários do Leonilson ou dos do Laerte? Ou do Leonardo (Moreira, dramaturgo da peça)? Porque tem muita coisa que é criação direta do dramaturgo, misturando obras dos dois.”

A escolha por esse espelhamento partiu diretamente do ator, ainda no processo de produção. “O Leonilson fez uma obra muito sincera, em que ele se expõe muito e se coloca num lugar de autoficção, então não fazia muito sentido para mim criar um trabalho de ficção muito forte, em que eu fizesse do Leonilson um personagem ou recortasse parte da vida dele para uma peça de biografia. Seria como uma traição”, explica Késsimos. Para ele, o paralelo entre os dois serve, também, para reflexão. “É importante ver como as questões que essa pessoa tinha na sua juventude permearam a minha vida na juventude e hoje ainda permeiam a vida de outros jovens LGBTQIA+. Esses encontros e contrastes dentro das nossas histórias podem ser usados como exemplo de transformação social e política.”

A peça Ser José Leonilson traça um paralelo não só entre José Leonilson e Laerte Késsimos, mas também entre o ontem e o hoje — Foto: @serjoseleonilson/Instagram/Reprodução

Temáticas em debate

Embora o autor defina a vida e a obra de José Leonilson como tema principal da peça, ele aponta a necessidade de se ater às temáticas que permeiam essa vida e essa obra. A aproximação entre ator e artista, por exemplo, pode ser usada, segundo Késsimos, para compreender os diferentes contextos em que cada um está inserido. “Quando vamos falar de HIV hoje em dia, é óbvio que temos uma perspectiva muito diferente da perspectiva que o Leonilson teve na época dele, pois ele foi alguém que morreu no fim da pandemia de Aids e que não sobreviveu até a chegada dos medicamentos mais eficazes. Hoje, uma pessoa que vive com HIV não se sente mais sentenciada à morte”, diz o ator. Aura alerta, porém, que a estigmatização em torno do HIV segue presente: “Ela é cheia de silêncios, de não ditos. Vive escondida na vida de muitas pessoas e famílias. A abertura existe, mas ainda tem uma névoa cinza que paira sobre a sociedade, cheia de preconceitos e temores”.

Sobre os debates em torno da sexualidade, a diretora, que é casada com uma mulher, explica como Ser José Leonilson traz a masculinidade à tona: “Na peça, tem um ator e um dramaturgo, ambos homens, que trouxeram à discussão o contexto da formação da masculinidade, da imposição da ideia do que é ‘ser homem’, de um processo de domesticação e da descoberta da sexualidade em um mundo que promove um pacto silencioso em torno disso”. Ela completa, enfatizando o fato de que, no período em que Leonilson viveu, isso era ainda pior. “Estamos falando de um universo de homossexualidade masculina em um contexto espantoso, solitário e violento. Mesmo o Leonilson fala coisas tenebrosas na peça, mas que para sua época passavam despercebidas, sem nenhum questionamento.”

Dentre as questões ainda atuais, porém, Késsimos cita o reconhecimento dos LGBTQIA+ no contexto familiar como algo muito presente na atualidade. “Muitas vezes essa pessoa não se encontra simplesmente por não se reconhecer como corpo normativo. As questões de gênero, de pertencimento e de racialidade são muito contemporâneas e pouco discutidas e existe um constrangimento ao abordá-las”, afirma. Ele faz um convite à reflexão em torno desses assuntos: “Precisamos falar mais sobre eles, olhar para eles de uma forma diferente, sem preconceitos ou estigmas”.

O espetáculo Ser José Leonilson, com Laerte Késsimos, estará em cartaz na sala do Teatro da USP (Tusp) no Centro Cultural Camargo Guarnieri (Rua do Anfiteatro, 109, Cidade Universitária, em São Paulo),  nos dias 5 e 6 de julho, às 20 horas, e no dia 7 de julho, às 19 horas. Também haverá sessões nos teatros Paulo Eiró (12, 13 e 14 de julho), Alfredo Mesquita (26, 27 e 28 de julho), Arthur Azevedo (2, 3 e 4 de agosto) e Cacilda Becker (de 9 a 25 de agosto, às sextas, sábados e domingos). Entrada grátis, com retirada de ingressos a partir de uma hora antes da sessão. Mais informações estão disponíveis no site do Tusp.

*Estagiário sob supervisão de Roberto C. G. Castro
**Estagiário sob supervisão de Moisés Dorado


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.