“Mário de Andrade é uma figura única”, diz Calil

Criador do site “Morada do Coração Perdido”, que retrata a vida e a obra do escritor modernista, o professor da USP Carlos Augusto Calil afirma que o autor de “Macunaíma” projetou o Brasil a dimensões universais

 01/08/2016 - Publicado há 9 anos
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Página de abertura do site Morada do Coração Perdido, criado pelo professor Carlos Augusto Calil

Mário de Andrade (1893-1945) foi, ao mesmo tempo, “colecionador de arte, antropólogo, professor de música, crítico de arte, de música, de literatura, poeta, romancista, pensador, uma figura fascinante, uma figura única.” A descrição é do professor Carlos Augusto Calil, docente da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, criador do site Morada do Coração Perdido e curador da exposição permanente de mesmo nome, em cartaz na Oficina Cultural Casa Mário de Andrade, em São Paulo. O site pode ser acessado no endereço http://oficinasculturais.org.br/mariodeandrade.

A exposição, aberta em maio de 2015, é, nas palavras de Calil, uma “reconstituição alusiva” da casa de Mário de Andrade. “A casa dele era praticamente um museu. Na parede havia quadros de Candido Portinari (1903-1962) e Tarsila do Amaral (1886-1973), artistas cujas obras, na época, não tinham grande valor, mas hoje valem uma fortuna e são patrimônio da USP. Por isso não pude trazê-los de volta. Então, através de recursos audiovisuais, muita fotografia, vídeos e sons, eu simbolicamente trouxe Mário de Andrade de volta à sua casa, que estava abandonada”, explica o professor.

Calil afirma que Mário de Andrade foi um requintado colecionador de arte. “Apesar de não ter dinheiro, como tinham alguns de seus contemporâneos no Modernismo, montou uma extraordinária coleção de arte, não apenas erudita, mas popular.” Esse acervo, hoje, pertence ao Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP e é, segundo o professor, “talvez o seu maior patrimônio artístico”.

Além do pioneirismo na valorização de artistas que viriam a se tornar ícones do movimento modernista, Mário de Andrade inovou em outros campos muito variados. “Quando percebeu que sua geração era composta de criadores e não de críticos, ele abandonou sua própria obra como poeta e romancista para militar na crítica artística, de artes plásticas, de música, de tudo que pudesse fazer, e chegou a influenciar até Heitor Villa-Lobos (1887-1959), o maior músico do País”, conta Calil. “Ele praticamente inventou uma crítica na ausência dela, desdobrando-se ele mesmo.”

Secretário de Cultura

Coleção Mário de Andrade - Foto: Cecilia Basto/USP Imagens
Coleção Mário de Andrade, do acervo do IEB – Foto: Cecilia Bastos/USP Imagens

Mário de Andrade também se envolveu na política, ao assumir o Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo. Foi o primeiro secretário municipal de Cultura do Brasil. “Naquela época, ele foi pioneiro também no sentido da democratização da cultura, criando programas de assistência social, levando a cultura além da arte”, diz Calil.

O professor destaca ainda a importância de Mário de Andrade na comunicação e na evolução da língua portuguesa. “Em apenas 51 anos de vida, ele escreveu, diz-se, por volta de 7 mil cartas, criando uma rede de sociabilidade inédita no Brasil, muito antes da existência do Twitter ou de qualquer rede social. Algumas dessas cartas, sobretudo aquelas trocadas entre seus amigos Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, são um monumento literário raro em qualquer língua. Além disso, ele ajudou muito a língua brasileira a deixar todos os ornamentos portugueses de lado, por exemplo na questão dos pronomes, ao usar ‘me preocupa’ e não ‘preocupa-me’, próclises no lugar de ênclises, como fazemos hoje.”

Em seu livro mais conhecido, Macunaíma, classificado por Calil como a obra mais marcante do Modernismo brasileiro, Mário de Andrade imprimiu na ficção seus estudos antropológicos, mostrando sua maneira peculiar e original de pensar o Brasil. Já em seus poemas, segundo o professor, o artista expõe traços de sua personalidade. “Sua lírica é dilacerada, e ele era um homem dilacerado. Tinha problemas de personalidade, era muito feio e muito vaidoso. Tinha problemas com a rejeição à sua própria figura, o que tentava compensar e nem sempre era bem-sucedido. Era mulato, coisa sobre a qual pouco se fala, e, embora viesse de uma família de elite, teve que lidar com as dificuldades do racismo. Tinha tendências sexuais provavelmente não ortodoxas. Provavelmente tinha diversas tendências sexuais, não uma única, e isso nunca pôde ser assumido, o que era muito complicado, porque levava-o a se movimentar afetivamente em direções conflitantes”, relata Calil. “Além disso, ele vivia o dilema brasileiro que perdura até hoje, de um país desencontrado, com um complexo de inferioridade, sobre o qual Mário de Andrade falava antes mesmo de Nelson Rodrigues.”

Coleção Mário de Andrade - Foto: Cecilia Basto/USP Imagens
Estatuetas da cultura popular brasileira, obtidas por Mário em viagens pelo Brasil – Foto: Cecilia Bastos/USP Imagens

Segundo Calil, Mário de Andrade “optou por ser brasileiro”. Diferente do escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986), que sempre pensou a Argentina no mundo, Mário de Andrade pensava o Brasil para o Brasil, para os brasileiros, diz Calil. “Nunca viajou à Europa. Numa época em que todos viajavam duas vezes por ano para lá, decidiu descobrir o Brasil. Viajou pelo Norte e pelo Nordeste, analisando as manifestações folclóricas, valorizando tudo aquilo que era verdadeiramente brasileiro, com um amor enorme por tudo aquilo que é nosso. Não por nacionalismo, mas por autenticidade. Se tivesse nascido na África, optaria por ser africano.”

O professor caracteriza Mário de Andrade como uma figura mundial, “um homem de dimensões planetárias” e que projeta o Brasil a dimensões universais, apesar de nunca ter se preocupado em fazê-lo. “É um homem tão grande que você descobre mais sobre ele a cada dia que passa. Você se debruça sobre um assunto novo e, de repente, percebe que Mário de Andrade já passou por ali.”

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