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Mário, 130, um olhar generoso para o Brasil
No aniversário de Mário de Andrade, professores avaliam seu legado como fomentador e descobridor da cultura brasileira
Mário de Andrade e escultura da cabeça de Mário de Andrade (feita em bronze), 1938 - Foto: Reprodução/Arquivo IEB/USP/Fundo Mário de Andrade
No dia 9 de outubro Mário de Andrade (1893-1945) teria completado 130 anos. Até hoje, ninguém realmente chegou encarnado até essa soma toda de décadas – dizem que a pessoa mais velha que já existiu foi um mineiro de 127 anos –, mas, no caso de Mário, é muito provável que iremos continuar celebrando seu aniversário século afora. E talvez ainda mais.
Para os estudiosos da cultura brasileira, isso é óbvio e justificado. Mário é considerado um dos intelectuais mais influentes e versáteis que o Brasil já teve, atuante na literatura, na música, na pesquisa e na administração pública, deixando sempre por onde passou um legado de pioneirismo, admiração e trilhas abertas para as novas gerações.
Figura central do movimento modernista brasileiro – uma espécie de abertura de comportas para as artes e a cultura em geral que seriam feitas durante todo o século 20 –, Mário está nos livros didáticos do ensino médio com os poemas de Pauliceia Desvairada (1922) e a prosa dos Contos Novos (1947). Macunaíma (1928), uma das representações mais instigantes do povo brasileiro já impressas, frequenta as listas de leituras obrigatórias de vestibulares espalhados por todo o País. Na capital paulista, uma das melhores bibliotecas do território nacional leva seu nome. Na mesma Pauliceia, a casa onde morou na Barra Funda tornou-se um museu.
Obras Macunaíma, Pauliceia Desvairada e Contos Novos - Imagens: Divulgação/Domínio Público, Divulgação/Casa Mayença e Divulgação/Saraiva
Sua colossal correspondência está abrigada e preservada no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, onde vibra nas mãos de pesquisadores consagrados e novas promessas da academia. No Centro Cultural São Paulo (CCSP), vive o acervo da Missão de Pesquisas Folclóricas, projeto que rasgou o Brasil atrás de manifestações culturais populares e foi idealizado por Mário quando assumiu a direção do então recém-criado Departamento de Cultura e Recreação (DCR) da cidade. É lá também que se encontra a Discoteca Oneyda Alvarenga, outra criação sua, batizada com o nome de sua primeira diretora, a mais brilhante das alunas de Mário.
A equipe da Missão de Pesquisas Folclóricas, organizada por Mário de Andrade: Martin Braunwieser, Luiz Saia, Benedicto Pacheco e Antonio Ladeira. Teatro Santa Izabel, Recife, Pernambuco (março/1938) - Foto: Centro Cultural São Paulo/Acervo de Pesquisas Folclóricas via Reprodução/Itaú Cultural
Para dar conta de tamanha biografia, seria necessário mais espaço do que compete a este texto. Por isso, o que se segue é um recorte, lançando o olhar para uma das facetas de Mário. Talvez pouco lembrada pelo grande público, mas central para dar a dimensão de sua importância para o País. Trata-se de sua atuação como fomentador e descobridor da cultura brasileira, sobretudo como gestor público, durante sua passagem pelo DCR, e pesquisador do folclore e das manifestações regionais brasileiras.
Mário, diretor do Departamento de Cultura e Recreação
Com a criação do Departamento de Cultura e Recreação (DCR) da cidade de São Paulo, em 1935, a revolução modernista da década de 1920 chegava à esfera da administração pública. Um projeto do prefeito Fábio da Silva Prado, que escolheu Mário para seu primeiro diretor, cercado por uma equipe notável de colaboradores que incluía Sérgio Milliet, Oneyda Alvarenga, Paulo Duarte e Luiz Saia.
Esboços do 1º e 2º pavimentos da Casa de Cultura feitos por Mário de Andrade - Imagem: Reprodução/Secretaria Municipal da Cultura em Exposição Mário de Andrade/CCSP
Tratava-se do uso da cultura como arma na batalha pela hegemonia nacional. Derrotado na Revolução Constitucionalista de 1932, o Estado de São Paulo buscava outros meios de retomar a influência no país governado por Getúlio Vargas. É nesse quadro que a institucionalização da cultura, conversa antiga nas rodas modernistas, encontra sua realização e Mário é escolhido como seu estrategista. São Paulo seria uma espécie de balão de ensaio para um projeto que se pretendia nacional e que acabou frustrado pelo golpe do Estado Novo, em 1937.
Essa interrupção dos planos não significa, entretanto, irrelevância. Ao contrário, a passagem de Mário pela pasta é considerada até hoje inovadora e, em muitos aspectos, insuperável, um projeto que nunca mais foi posto em prática dessa maneira. Em sua concepção, a cultura deveria ser indissociável da educação, compondo uma totalidade que precisava chegar a todas as camadas da população. O que incluía os crescentes contingentes proletários de uma cidade em crescimento acelerado, até então deixados de lado pelo poder público.
Projeto da Biblioteca Circulante idealizada pelo Departamento de Cultura e Recreação - Imagem: Reprodução/Secretaria Municipal da Cultura em Exposição Mário de Andrade/CCSP
Nessa perspectiva, de 1935 até 1938 Mário realizou a ampliação dos parques infantis da cidade, oferecendo nesses espaços atividades para o contraturno escolar, voltadas sobretudo paras os filhos das famílias trabalhadoras. Aconteciam nos parques aulas de educação física, oficinas de trabalhos manuais, atendimento médico e serviços dentários. O Coral Paulistano e o Quinteto de Cordas também foram idealizações suas, que procuraram ampliar a oferta cultural para além de espaços tradicionais da elite, como o Theatro Municipal.
Tendo em vista a descentralização dos equipamentos de educação e cultura, Mário também desenhou um modelo de bibliotecas populares, espalhadas pelos bairros da capital. Além de abrigar livros, elas também traziam espaços para palestras e salões de jogos, uma visão na qual lazer e recreação eram entendidos como parte da cultura. Ele ainda criou as bibliotecas circulantes, que percorriam os bairros da cidade levando livros em veículos adaptados. Nessa busca por democratização da cultura e da educação, inaugurou também a Discoteca Pública, dirigida por Oneyda Alvarenga.
Uma série de políticas, em resumo, que seria a solidificação da efervescência modernista da década anterior. O resultado de um intenso debate nos círculos de amizade de Mário sobre a cultura, a educação, a estética e a política de um País que acabava de comemorar 100 anos de sua Independência. Essa é a interpretação de Luiz Roberto Alves, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e autor do livro Administrar Via Cultura: Revolução Educativo-Cultural na Ex-Pauliceia Desvairada (1935-1938), dedicado justamente ao período de Mário no DCR.
Para Alves, as primeiras manifestações modernistas da década de 1920 foram uma espécie de estouro libertador inicial. As pesquisas sobre linguagem, literatura, manifestações estéticas populares e a realidade política e social do Brasil, que se materializaram em livros, revistas e manifestos, foram seguidas de uma espécie de “conversão” – o professor sublinha o aspecto religioso do termo – a uma responsabilidade para com a cidade, o Estado e o País.
Segundo Luiz Roberto Alves, até hoje não tivemos políticas públicas que se igualem à ideia de Mário de Andrade de que "a educação só se integraliza na cultura”.
Passava-se a pensar a organização sistemática de um campo cultural, colocando em evidência a importância das instituições. “Não adiantaria ver a cultura somente ‘estourando’”, afirma Alves. “Para pensar cultura a favor de uma cidade temos que entrar nas instituições, planejá-las e trabalhar dentro delas.” Foi com essa motivação que nasceria o DCR. “Eles foram aprendendo a pensar menos como em 1922 e mais dentro das responsabilidades das instituições da sociedade e da administração pública.”
Foi nesse sentido que Mário iria liderar um grupo interessado em unir educação, arte e cultura em uma linguagem totalizante e sistemática, orientada para a difusão ampla em todas as camadas da população. O que poderia ter ficado apenas como um discurso e um sonho modernista, graças a essa “conversão”, materializou-se em parques infantis, bibliotecas, discoteca e outras iniciativas da gestão andradiana. “Não se tratou apenas de imaginação modernista”, pontua Alves, “mas daquilo que foi realmente feito.”
O que estava em jogo, explica o professor, era a certeza de que a educação e a cultura não poderiam permanecer ligadas ao espontaneísmo, mas deveriam ser institucionalizadas e andar juntas. “Não basta ensinar o analfabeto a ler. É preciso dar-lhe contemporaneamente o elemento que permita exercer essa capacidade nova”, comenta Alves.
Luiz Roberto Alves - Foto: Lattes
Entusiasta da atuação de Mário no DCR, o professor acredita que o País não teve políticas culturais e educativas adequadas após a década de 1930. “Houve uma melhoria após a Constituição de 1988, criaram-se possibilidades e diretrizes mais abertas, mas, mesmo assim, não tivemos a ideia que Mário teve de que a educação só se integraliza na cultura”, analisa.
Mário, descobridor da cultura brasileira
Mas uma personalidade tão inquieta, que se orgulhava de ser “trezentos, trezentos-e-cincoenta”, não se contentaria com os limites do município. Mário também idealizou, durante sua passagem pelo DCR, a missão de pesquisas folclóricas, que deveria percorrer o País registrando febrilmente as manifestações da cultura popular. Ele não estaria mais no departamento quando os pesquisadores começaram a palmilhar o território nacional, tendo deixado a pasta em 1938, em virtude dos desdobramentos do golpe do Estado Novo. Suas digitais, entretanto, são indissociáveis do acervo preservado no CCSP.
Cantos, danças, narrativas e a linguagem do povo estão lá, documentados em fotografias e filmes produzidos pela missão. “Mário queria ver o que estava acontecendo de novo na língua portuguesa do Brasil e, ao mesmo tempo, queria associar essas mudanças às mudanças de um povo que estava tendo mais contatos externos”, conta Alves.
Quem tem uma relação muito íntima com esse acervo é Flávia Toni, professora do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP. Com quase 40 anos de pesquisas com os materiais presentes tanto no CCSP como na Coleção Mário de Andrade que está sob a guarda do IEB, Flávia dedica-se sobretudo à literatura musical do autor. É o Mário de Andrade compositor e musicólogo, autor de uma Introdução à Estética Musical (1995), organizado pela própria Flávia (a ser reeditado em breve), do libreto da ópera Café (que ganhará uma inédita edição completa, também sob supervisão da docente) e da canção caipira Viola Quebrada, para ficar em apenas alguns exemplos de sua versatilidade no campo.
Flávia Toni - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Conforme explica a pesquisadora, os primeiros exames sistemáticos de Mário a respeito da diversidade das manifestações musicais brasileiras já se situam na década de 1920, quando a tecnologia para registro ainda representava obstáculos consideráveis aos trabalhos, com equipamentos pesados e difíceis de manipular por uma única pessoa. Com a institucionalização da missão, acompanhada dos avanços tecnológicos, Mário encontraria o impulso fundamental para o projeto.
Para Flávia Toni, Mário de Andrade foi um intelectual que “percebeu o Brasil em todas as gamas das suas manifestações”.
“Ele idealiza uma pesquisa que fizesse um mapa da música do Brasil, para mostrar como ela se espalhava e era diferente”, comenta Flávia. “Por um lado, pensa em dar andamento à pesquisa que tinha iniciado na década de 1920 e, por outro, fazer uso de uma musicologia moderna, que poderia ser usada de forma comparativa.” O desejo de Mário, conta a professora, era poder comparar versões de músicas registradas ao longo do tempo para poder acompanhar suas transformações. “Era uma pesquisa muito moderna para a época.”
Sob guarda do CCSP, o material recolhido pela missão inclui entre seus itens fotografias, gravações e entrevistas a respeito de danças e cantos de várias partes do País. Trata-se, de acordo com Flávia, de um projeto pioneiro, sendo o primeiro acervo das Américas que foi constituído com essa amplitude, destacando-se por colocar em evidência tanto os fatos musicais quanto seus principais atores. “Já havia muita gente fazendo pesquisa de campo em 1938, mas não com essa magnitude.”
Para a docente, Mário pode ser considerado o pai da moderna musicologia brasileira. Não só no sentido técnico da disciplina, mas por ter sido responsável por estabelecer uma metodologia e instaurar os assuntos que se tornariam objeto de estudo. O que define o samba? O que faz do maxixe o maxixe? Por que a moda é diferente da modinha? Definições que hoje podem soar banais, mas que não eram tão fáceis de se responder no período de Mário, afirma Flávia.
“É ele que vai estudar, pela primeira vez, as origens e as características da música do Brasil, o que a torna única”, salienta a professora. “Mário é de fundamental importância para definir quais são os parâmetros da música feita no País.”
Na verdade, em 2023 a importância de Mário parece fundamental em muitas áreas da cultura brasileira. Para Flávia, falar do modernista é tratar de um intelectual que “percebeu o Brasil em todas as gamas das suas manifestações”. Mário teria sido dono de um olhar muito generoso, que não se voltou exclusivamente para uma única geração, produção artística ou expressão étnica. Antes, seu olhar teria valorizado e buscado conhecer a abrangência das expressões do País. “Que não eram só as expressões do Brasil, mas as expressões dos brasileiros e brasileiras, porque ele valorizava os homens e as mulheres que produziram essa cultura”, aponta Flávia. “Isso foi muito generoso.”
Mário, faminto pelo Brasil
O que se passava com Mário, conforme o próprio escreveu, era uma fome de Brasil. Quem resgata a metáfora é Marcos Antonio de Moraes, também professor do IEB e pesquisador da produção epistolar do modernista. Para Moraes, as cartas de Mário representam muito mais do que simples mostra de afetividade ou de sua vasta rede de contatos. mas se constituem visivelmente como um projeto intelectual. “Essa documentação expressa a angústia de um intelectual devotado a uma ação”, comenta o professor.
O nacionalismo crítico dos anos 20, as conexões com personalidades interessadas em pensar políticas públicas, os bastidores, dificuldades e negociações da passagem pelo DCR, o diálogo com jovens escritores, sua atuação política como intelectual durante a Segunda Guerra Mundial, tudo aparece nas cartas que enviou e recebeu. São documentos que revelam Mário em seu trabalho: uma figura muito inquieta e aderente à realidade da sociedade brasileira, avalia Moraes. “Essa correspondência é um espelho do Brasil, muito mais do que um espelho do Mário”.
Um país que surge no conjunto de sua produção como culturalmente complexo. Para Mário, não interessava projetar ou inventar uma imagem do Brasil. Seu esforço foi justamente revelar o processo histórico em suas condições problemáticas. No lugar de idealizar a cultura, mostrou sua constituição, e em vez de inventar uma história, propôs olhar e enfrentar a história que nos foi legada. A síntese está em Macunaíma e suas múltiplas identidades. De acordo com Moraes, não se trata de um herói sem nenhum caráter, mas de um herói que busca sua definição.
O professor vê a obra de Mário como um questionamento contínuo, incontornavelmente aberta e atravessada por gestos de engajamento. “Apesar de podermos ver Macunaíma em uma dimensão estética, ele é um fundamento político da nossa realidade”, analisa. Trabalho de um intelectual desassossegado, original e inovador, interessado em cinema, música, fotografia, artes visuais, antropologia, folclore. “Por qual assunto ele não se interessou?”, questiona o docente.
E também propositor de uma obra e um pensamento sobre o Brasil, indica Moraes. Um legado que impressiona o professor por sua longevidade e capacidade de continuar gerando interrogações. A chave para Mário seguir tão atual, quase 80 anos depois de sua morte, pode estar nas próprias palavras que o modernista escreveu ao irmão, pouco antes de sua morte, conforme sugere Moraes.
Nesta carta, Mário olha para sua enorme biblioteca, com 17 mil volumes, para sua coleção de artes visuais – com exemplares de Anita Malfatti, Candido Portinari e Tarsila do Amaral – seus documentos e cartas e tece considerações a respeito do futuro do acervo. Vai indicando para onde gostaria que cada conjunto fosse. E diz que não doaria nada por vaidade e nem gostaria de alarde. Doaria apenas porque nunca colecionou para si mesmo, mas imaginando-se simplesmente na salvaguarda de obras que pertenciam ao país. Fazia assim de toda a cultura reunida em vida um bem público.
De fato, sua biblioteca, as obras de arte colecionadas, os documentos, cartas e manuscritos estão hoje no IEB. A instituição ainda não existia quando faleceu em 1945 mas, pode-se dizer que sua vontade foi plenamente realizada. A coleção pertence ao público e está disponível para consulta. É a herança de um projeto estético, intelectual e político que deixou aspectos renovados da cultura e expressou um desejo de democratizá-la, segundo Moraes.
“É o pensamento de alguém devotado a constituir uma experiência coletiva pública”, afirma o professor. “O que esse intelectual deixou para a gente, além da documentação, foram interpretações do Brasil, com vistas a transformá-lo, torná-lo menos injusto e favorecer uma democratização da cultura”. Se ainda não atingimos plenamente todos esses ideais, o legado de Mário continua aí para nos inspirar e mostrar o caminho. Basta consultá-lo. É público.
*Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado
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