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Livros abordam o aprendizado teatral e a mecanização da língua

Obras de professor da USP expõem ideias da diretora Myrian Muniz e discussões sobre a palavra falada

09/12/2020

Luiz Prado

Em uma “dobradinha lítero-teatral”, o professor José Batista Dal Farra Martins, do Departamento de Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, relembra e homenageia uma de suas mestras e joga para discussão a maneira como a palavra falada perambula entre o cotidiano e o palco. É que Zebba Dal Farra, como também é conhecido, acaba de lançar dois livros – O Ser Aprendiz: Um Itinerário com Myrian Muniz e Palavra Muda: Sobre Poéticas para Vozes em Estado de Sítio -, resultados de sua livre-docência realizada na ECA.

O professor Zebba Dal Farra, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP – Foto: Arquivo pessoal

Em O Ser Aprendiz, Dal Farra escrutina 20 anos de aprendizado com Myrian Muniz (1931-2004), atriz, diretora e professora que empilhou na sua biografia atuações no Teatro de Arena e no Teatro Oficina, a direção do show Falso Brilhante, que levou a carreira de Elis Regina para outras viagens, e ainda a criação do Teatro-Escola Macunaíma.

“O poeta e amigo Jorge Marinho definiu assim Myrian Muniz: eu sou aquela que apenas caminha”, comenta Dal Farra. “No meu percurso de aprendiz com a mestra, muitas foram as marcas dos fazeres e saberes desse caminhar, iniciado no outono de 1984. No ano seguinte, ela me convidou para trabalhar a voz, como ela dizia, com um grupo de alunos e alunas que ela mantinha no Espaço Viver, na Rua Bela Cintra. Ciente da minha inexperiência como professor, ela me chamou à sua casa, uma hora antes da aula, me sentou à sua frente, numa distância exata, e disse com sua voz grave e profunda: ‘Olhe para o ser e você vai saber do que ele precisa’. Durante todo o tempo que passei com ela, essa frase pulsou entre nós, sintetizando talvez um ponto essencial de sua concepção teatral: o olhar para o outro e, como corolário, a escuta e a relação. Eis o terreno em que, companheiros de caminho, caminhamos.”

Dois momentos balizam o livro de Dal Farra. No primeiro, batizado Inventário, notas, roteiros, projetos, gravações, esculturas, fotos e outros rastros reconstituem sua convivência com Myrian. A próxima esquina do livro é intitulada Itinerário e entrega ao leitor uma organização do próprio autor sobre a reverberação que o conjunto exposto na primeira parte teve em seu fazer artístico.

“Trata-se de um itinerário, um dos percursos que esse inventário de lembranças propicia, provoca”, explica o autor. “Digo isso porque foram vários estudos e tentativas, de roteiro teatral a artigos, até chegar ao itinerário publicado. Sem propósito rigorosamente cronológico, dividi a relação de aprendiz em quatro atos (e afetos). No primeiro ato, de receptividade plena e entrega incondicional, a voz da mestra dança em torno do medo. Quando uma certa clareza fortalece o enfrentamento do medo, a relação se tensiona pela necessidade de independência, o segundo ato desse itinerário. No terceiro, a separação e os desafios do poder, olhar distante, escuta estranhada. Finalmente, já no início dos anos 2000, o retorno, reencontro, reconhecimento, escuta mútua: velhice. Esses quatro atos buscam girar em torno da mestra, às vezes no detalhe de um riso, às vezes na distância de um grito.”

O livro O Ser Aprendiz – Um Itinerário com Myrian Muniz – Foto: Divulgação

Já o livro Palavra Muda acompanha e aprofunda uma discussão levada aos palcos por Dal Farra através do espetáculo Roda das Vozes em Estado de Sítio (2017), de sua companhia, a Ausgang de Teatro. Na obra, o autor apresenta dois conceitos. Um deles é o de língua-máquina, uma língua mecânica e automática, utilitária e informativa, que surge no cotidiano contemporâneo como um amontoado de palavras saturadas de informação. Uma palavra muda, afinal. O segundo conceito é o polo oposto, a língua-paixão. É o território do canto como ressonância total. Entre os dois, atrizes e atores, cantoras e cantores transitam.

“O dramaturgo franco-suíço Novarina diz assim: acabaremos mudos de tanto comunicar, o fim da história é sem fala”, pontua o autor. Segundo Dal Farra, a saturação da palavra contemporânea e o controle sutil e sedutor que essa situação propicia são o impulso do livro. “Isso afeta todas as pessoas e nos coloca na condição de vozes em estado de sítio. Se as vozes robotizadas que falam conosco pelo telefone são verossímeis, é porque nós já falamos essa língua-máquina em alguma instância. Para confrontar essa despotencialização da voz e da palavra, proponho estudar sua potência, processo que coloca em cena atores e atrizes, rapsodos e rapsodas: o espaço teatral e performativo. Assim, o texto reverbera no campo artístico problemas do mundo contemporâneo.”

O livro Palavra Muda – Sobre Poéticas para Vozes em Estado de Sítio – Foto: Divulgação

Para Dal Farra, os dois polos, língua-máquina e língua-paixão, se complementam e se antagonizam. “No percurso, existem pontos singulares, como o limiar entre o falar, que é cotidiano, e o dizer, que é poético, e a passagem do dizer para o cantar, sendo que o falar continua presente no dizer, e ambos pulsam no cantar. Portanto, Palavra Muda não é um texto apaziguado. Foi concebido e escrito em solo teatral, em que atrizes e atores, rapsodos e rapsodas estão em relação presencial de escuta constante: esse é um caminho que se faz a dois”, finaliza o autor.

O Ser Aprendiz – Um Itinerário com Myrian Muniz e Palavra Muda – Sobre Poéticas para Vozes em Estado de Sítio, de Zebba Dal Farra, Editora Giostri, R$ 67,00 e R$ 69,00.


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