Livro retrata o teatro universitário “anticapitalista” dos anos 1960

Em plena ditadura militar, grupo formado por estudantes da USP montou peças de Brecht e promoveu atividades culturais e formativas

 19/12/2024 - Publicado há 3 meses
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Capa de livro com figura abstrata.
Arte sobre capa do livro Teatro Anticapitalista – O Caso Tusp (1966-1969) – Capa: Divulgação Sérgio de Carvalho

Uma história quase secreta do teatro brasileiro. Em 1966, um grupo de estudantes vindos principalmente da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL), da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) e da Faculdade de Medicina (FM), todas da USP, resolveu apostar no teatro amador como ferramenta de transformação social. Um teatro político e anticapitalista, para fazer frente a uma sociedade desigual e autoritária, confiada a militares golpistas. Esses estudantes organizaram congressos e cursos de formação, editaram revistas, publicaram manifestos e levaram aos palcos duas montagens de Bertolt Brecht. Chamaram-se Teatro dos Universitários de São Paulo (Tusp) e viveram essa aventura até 1969. Os políticos José Dirceu e Aloysio Nunes, os críticos literários Walnice Nogueira Galvão e Roberto Schwarz e o artista plástico Claudio Tozzi foram alguns dos que se envolveram na empreitada.

Essa história curta, mas vibrante, é analisada no livro Teatro Anticapitalista – O Caso Tusp (1966-1969), escrito pelo professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e diretor da Companhia do Latão Sérgio de Carvalho e por Maria Lívia Nobre Goes, doutoranda da ECA. De imediato, um aviso: nenhuma relação há, além do nome, entre esse Tusp e o Teatro da USP (Tusp), criado em 1974 e vinculado à Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária da USP. Advertência dos próprios autores, logo na abertura do volume.

Isso é importante porque Sérgio de Carvalho e Maria Lívia estão falando de um grupo que, mesmo tendo surgido no espaço da Universidade e se valido muitas vezes das conexões fornecidas por esse ambiente, foi pautado pela construção de outros vínculos para além das cristalizações institucionais. “Antes de tudo, o Tusp existiu como um processo de aprendizagem de arte revolucionária, radicalmente independente, como crítica a uma cultura autocentrada”, escrevem os autores. “Sua beleza vem de uma disposição à metamorfose combativa, da rejeição às reproduções confortáveis, da alegria da prática, do esforço pelas equiparações possíveis, para que as diferenças sejam vivas.”

O teatro veio como consequência de vontade política, pesquisa e reflexão. Os estudantes que se organizaram em 1966 – contando com integrantes de outros cursos da USP e também de outras universidades da cidade – pretenderam primeiro fundar um centro cultural e um grupo de estudos. Foi nessa toada que realizaram suas ações iniciais, uma delas o Congresso Nacional do Teatro Universitário, ocorrido no Grêmio da Faculdade de Medicina da USP. Os professores Antonio Candido, Décio de Almeida Prado e Anatol Rosenfeld estiveram lá, coordenando os trabalhos das mesas como convidados do evento.

Homem com um leve sorriso.
Sérgio de Carvalho – Foto: Instagram/Ed. Hedra

Depois do congresso, vieram os cursos introdutórios de história do espetáculo, da civilização da imagem no século 20 e do teatro épico. No ano seguinte, 1967, um ciclo de conferências sobre teatro de vanguarda. De acordo com Carvalho e Maria Lívia, tratava-se de fazer do estudo preâmbulo da ação artística. “Mobilizados por essas experiências, do congresso e dos primeiros cursos, o Tusp organizou grupos de discussões sobre um repertório possível”, escrevem. “Era a sua versão de um Escritório de Dramaturgistas, de um Coletivo Dramatúrgico que tinha por missão escolher e traduzir as peças a serem encenadas.”

Seguiram-se leituras cênicas e cursos práticos de dramaturgia, com aulas ministradas por Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri. Sem restringir a atuação, os estudantes organizaram exibições de filmes, trazendo os realizadores para os debates. Foi em um desses eventos que aconteceu a pré-estreia em São Paulo de Terra em Transe, de Glauber Rocha. E ainda produziram um show que contou com nomes como Chico Buarque, Geraldo Vandré, Sérgio Ricardo, Gilberto Gil, Nana Caymmi, Marília Medalha, Toquinho e Renato Teixeira. Sem esquecer da revista aParte, com críticas cinematográficas e teatrais, ensaios visuais, traduções de roteiros, textos teóricos e entrevistas.

Tanto fôlego corresponde, para os autores do livro, à proposta de um método de trabalho que procurou unir uma arte inconformista e não mercantil a uma política anticapitalista. O resultado dessa experiência seria um modelo útil até hoje para o teatro politizado nacional. “O que chamamos hoje de teatro político tornou-se algo mais do que a utilização de temas sociais, como as greves, nas peças, ou do que a procura de uma forma artística contrária ao individualismo do drama burguês”, escrevem Carvalho e Maria Lívia. “Uma cena política, no entendimento da vanguarda pós-naturalista”, continuam os autores, “é aquela movida pelo movimento social, um teatro cuja função social não deveria ser, em primeiro lugar, a estética. Seu valor se mede por sua capacidade didática, por sua força de conscientização, de mobilização, pela utilidade como forma de politização”.

Mulher com cabelos compridos e brincos grandes.
Maria Lívia Nobre Goes – Foto: Instagram/Ed. Hedra

Com essas bases, não é de espantar que as duas peças encenadas pelo grupo tenham sido de Brecht: A Exceção e a Regra, ainda em 1966, dirigida pelo ator Paulo José, e Os Fuzis de Dona Tereza Carrar, em 1968, dirigida pelo cenógrafo Flávio Império. Materializavam a busca por aproximação com o teatro popular, influenciados pelas experiências do Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE) e tendo com o antimodelo o Teatro da Pontifícia Universidade Católica (Tuca), de qualidade reconhecida, mas considerado idealista.

Os estudantes queriam como método a pesquisa e como resultado a partilha do conhecimento proporcionado pela Universidade. O caminho era o teatro épico, popular e aberto à cena documental. Tentavam, assim, alternativas à crise vivida pelo teatro político brasileiro nos anos de repressão da ditadura militar. Conexões entre produções artísticas e movimentos populares cortadas, era preciso encontrar novos meios de fazer luta com a arte.

Por isso A Exceção e a Regra foi levada, conforme aponta o livro, para o Sindicato dos Gráficos, o Sindicato dos Bancários e o Sindicato dos Trabalhadores de Cimento Portland. “Reconstituir a encenação desse espetáculo que se destinava a uma primeira pedagogia – dos artistas universitários e de seu público – é uma tarefa difícil”, escrevem Carvalho e Maria Lívia. “O que sabemos é que o projeto se sustentou como esforço de oposição a uma cena universitária que consideravam alienada do ponto de vista produtivo e pelo interesse em promover parcerias com entidades representativas de trabalhadores, num momento em que elas estavam enfraquecidas pela perseguição do regime.”

A experiência seguinte, Os Fuzis de Dona Tereza Carrar, teve mais fôlego e foi a grande realização cênica do Tusp. Com estreia em 3 de maio de 1968, no Teatro Ruth Escobar, em São Paulo, teve apresentações ainda no Teatro Maria Della Costa, no Tuca e no Teatro Oficina. Foi levado também para Santo André, Santos, Curitiba e Rio de Janeiro, culminando com o convite para o Festival Mundial de Teatro Universitário de Nancy, na França, em 1969.

Capa de livro com figura abstrata.
Capa: Divulgação Sérgio de Carvalho

Os Fuzis foi um espetáculo com uma atenção sincera e comovida à tragédia de existir e mudar as coisas no Brasil”, escrevem os autores. “Ao encarar essa dimensão, o Tusp recusou o ‘canto’ e o ‘escândalo’. Seu caminho próprio foi o da mobilização.”

Uma trajetória que poderia ter ido além, não fosse a mão por trás daquela caneta que, decretando o Ato Institucional Número 5 (AI-5), tornaria parte desse grupo perseguida, presa, exilada ou clandestina. Quase 60 anos depois, Teatro Anticapitalista – O Caso Tusp (1966-1969) revisita esse momento, não com saudosismo, mas com função política diante de um admirável mundo novo que se parece, de maneira assombrosa, com aquele velho mundo dos idos de 1960. Um livro anticapitalista, esse de Sérgio Carvalho e Maria Lívia.

Teatro Anticapitalista – O Caso Tusp (1966-1969), de Sérgio de Carvalho e Maria Lívia Nobre Goes, Editora Hedra, 212 páginas.


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