Livro mostra a influência do Brasil nas ciências sociais francesas

Pesquisas feitas no País nos anos 30 estão na base de obras clássicas de intelectuais como Claude Lévi-Strauss e Fernand Braudel, afirma o historiador estadunidense Ian Merkel em Termos de Troca, lançado pela Editora da USP

 29/02/2024 - Publicado há 9 meses     Atualizado: 04/03/2024 às 14:35

Texto: Roberto C. G. Castro
Arte: Carolina Borin*

- Fotomontagem: Jornal da USP - Imagens: TUBS/Wikimedia Commons e Felipe Menegaz/Wikimedia Commons

As ciências sociais francesas – que exerceram forte influência no pensamento social europeu no século 20 – foram profundamente marcadas pelo intercâmbio acadêmico entre pensadores franceses que lecionaram no Brasil nos anos 30 e intelectuais e professores brasileiros das então nascentes universidades do País, principalmente da USP. Além disso, o espaço e o povo brasileiro proporcionaram a base de pesquisas que dariam origem a obras clássicas da antropologia, da sociologia, da história e da geografia.

É o que sustenta o historiador estadunidense Ian Merkel em seu livro Termos de Troca – Intelectuais Brasileiros e as Ciências Sociais Francesas, que acaba de ser publicado pela Editora da USP (Edusp). Segundo Merkel, intelectuais como o antropólogo Claude Lévi-Strauss, o historiador Fernand Braudel, o sociólogo Roger Bastide e o geógrafo Pierre Monbeig – que depois de viver no Brasil se tornaram referências mundiais na sua área de atuação – não só leram a obra de seus colegas brasileiros, mas, ao lado deles, definiram suas disciplinas, conduziram trabalhos de campo, construíram instituições inovadoras e interdisciplinares e ainda desenvolveram suas teorias.

“Todos esses intelectuais se cruzaram na USP, foram profundamente influenciados por sua experiência no Brasil e possuem arquivos que demonstram uma rica correspondência não apenas com os brasileiros, mas também entre si”, escreve Merkel. “A colaboração que ocorreu se prolongaria por toda a carreira desses intelectuais e influenciaria sua compreensão do colonialismo, do sincretismo religioso, da economia global e dos fundamentos das estruturas sociais.”

O historiador estadunidense Ian Merkel - Foto: Reprodução/Academia.edu

Jovens Professores

Braudel, Monbeig e Lévi-Strauss chegaram ao Brasil em fevereiro de 1935, como professores contratados para lecionar na Universidade de São Paulo, fundada no ano anterior, lembra Merkel. Bastide chegou em 1938, substituindo Lévi-Strauss, que deixou o cargo na USP para realizar missões etnológicas. Na época, eles eram jovens professores, que assumiam pela primeira vez uma disciplina universitária.

Braudel lecionou na USP até 1937, quando voltou à França para atuar como professor da École Pratique des Hautes Études, de Paris. No Brasil, ele teve contato com o historiador Caio Prado Jr., que na época se dedicava às pesquisas que dariam origem à sua obra máxima, Formação do Brasil Contemporâneo. Ambos se encontraram com frequência em Paris entre 1937 e 1939, quando discutiram temas como o comércio transatlântico e a relação entre história e geografia. “As trocas do jovem Braudel com Prado e as leituras da obra do brasileiro influenciaram sua concepção do Mediterrâneo de, pelo menos, duas maneiras: elas encorajaram Braudel a considerar o Atlântico como a extensão geográfica do mar Mediterrâneo interior e como o ponto de partida temporal para o declínio secular da região”, analisa Merkel, enfatizando a importância dessa concepção para a criação da obra-prima de Braudel, O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrâneo na Época de Filipe II.

Para Monbeig, o espaço brasileiro e a observação da geografia humana do Brasil foram essenciais, segundo Merkel. Nos 11 anos em que permaneceu no País, entre 1935 e 1946, o geógrafo fez trabalhos de campo em diferentes Estados, como Mato Grosso, Paraná, Santa Catarina e até Ceará. Em São Paulo, dois locais foram particularmente importantes: Barão de Antonina, no sudoeste do Estado, e Marília, no noroeste. “As duas cidades pioneiras exemplificavam os processos de codesenvolvimento urbano-rural em que Monbeig baseou seus modelos para compreender a expansão geográfica e a colonização nos trópicos”, escreve Merkel. “Quando considerados em conjunto com a sua extensa análise bibliográfica e geográfica sobre o tema das cidades, fica evidente que os textos de Monbeig em torno desse primeiro trabalho de campo foram a base para sua tese Pionniers et planteurs e para sua tese secundária, La croissance de la ville de São Paulo.”

Professores franceses e os brasileiros que deram origem à USP em 1934 - Foto: Acervo CAPH / FFLCH

Lévi-Strauss encontrou nos índios brasileiros as condições para a realização da sua obra posterior, embora – como aponta Merkel – eles estejam ausentes de As Estruturas Elementares do Parentesco, livro publicado em 1949, hoje um clássico da antropologia. “Por mais distante que os pensadores brasileiros tenham estado do modelo de ‘estrutura’ de Lévi-Strauss, os indígenas brasileiros entre os quais ele passou algumas temporadas nos anos 1930 foram centrais para sua conceitualização desse termo”, sustenta o historiador estadunidense. “Só quando Lévi-Strauss foi reconhecido como antropólogo especializado em indígenas sul-americanos é que ele pôde sair do particular e retornar para o universal, elaborando formulações mais amplas acerca de temas como parentesco, natureza e cultura, que iam além de seu trabalho de campo específico.”

Já Bastide – que voltou para a França em 1954 porque sua esposa não aguentava mais o calor de São Paulo – “abraçou plenamente o estudo do Brasil ‘afro’”, nas palavras de Merkel. “A questão do sincretismo permaneceria central em sua obra, em especial no ensaio Contribuição ao Estudo do Sincretismo Católico-Fetichista e em sua tese, entre outros”, escreve Merkel, citando que o sociológo se valia do trabalho de autores como Luís da Câmara Cascudo e Gilberto Freyre. “Os ensaios dele estavam apoiados em elementos da vida intelectual brasileira de uma maneira nunca antes tentada por nenhum outro intelectual francês.”

Para Merkel, o intercâmbio com os cientistas sociais brasileiros ajudou Braudel, Monbeig e Bastide a não apenas pensar em seus respectivos projetos, mas também a oferecer alternativas para o que eles viam como uma crise nas ciências sociais. “Diferentes em suas abordagens metodológicas e nas formas pelas quais o Brasil se fez presente em seus escritos (para Braudel o País era uma realidade distante, filtrada pelos livros; para os outros, a presença do País era muito mais direta), todos eles partiram de suas pesquisas iniciais dos anos 1930 para desenvolver suas obras”, explica o historiador, lembrando que, nesse aspecto, Lévi-Strauss se distingue dos três colegas porque o antropólogo se voltou para as ciências sociais norte-americanas. “Nesse momento, eles já não eram mais os acadêmicos jovens e inexperientes da USP que questionavam os fundamentos das ciências sociais, mas estavam de volta ao coração da vida acadêmica francesa, tentando construir juntos novas instituições.”

Merkel conclui, a respeito da influência brasileira sobre os intelectuais franceses: “O pensamento de Monbeig sobre a geografia humana, as reflexões de Bastide sobre a síntese e o sincretismo cultural, os quadros temporais de Braudel, ligados à geografia e ao comércio internacional, e o estruturalismo de Lévi-Strauss contribuíram para renovar as ciências sociais francesas no pós-guerra. Por mais diferentes que seus projetos individuais possam ter sido, suas obras tinham por base suas pesquisas brasilianistas, ajudaram a institucionalizar essa área na vida intelectual parisiense e trouxeram para o primeiro plano questões ligadas à economia mundial, à estrutura social, à raça e à indigeneidade”.

Trocas culturais

A influência brasileira sobre as ciências sociais francesas é consequência de uma intensa troca cultural entre Brasil e França, que começou bem antes da fundação da USP, em 1934. Merkel dedica todo o primeiro capítulo do seu livro para mostrar o cenário cultural em São Paulo nos anos 20, marcado pela cultura francesa. 

Segundo Merkel, o jornalista e intelectual Júlio de Mesquita Filho, dono do jornal O Estado de S. Paulo, e seu grupo – que incluía Armando de Salles Oliveira, cunhado de Mesquita e interventor federal em São Paulo, e o educador Fernando de Azevedo – tinham o plano de fundar uma universidade pelo menos desde 1925. Esse plano foi fortalecido com a derrota paulista na Revolução Constitucionalista de 1932. Vencidos militarmente, os paulistas buscaram influenciar os rumos do País através da educação e da cultura. Para isso, as principais referências eram os sociólogos franceses Émile Durkheim (1858-1917) e Lucien Lévy-Bruhl (1857-1939). “Tanto Azevedo quanto Mesquita haviam estudado na Faculdade de Direito de São Paulo, onde muito provavelmente Durkheim era um dos autores estudados”, escreve Merkel. “Os dois eram anticomunistas e certamente estavam à direita de Durkheim, que era socialista e próximo de Jean Jaurès, mas é possível supor que o que lhes interessava no autor francês era menos suas posições políticas do que seu conhecimento empírico das relações sociais em um mundo cada vez mais industrializado. Em especial, textos iniciais de Durkheim, como De la division du travail social (1893) e L’élite intellectuelle et la démocratie (1904), devem ter sido inestimáveis para Azevedo e Mesquita em suas buscas orientadas para a criação de uma elite cultural.”

Quando a USP foi fundada – lembra Merkel -, não estava totalmente claro quem comporia o corpo docente da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL), o “coração” da nova instituição. Os intelectuais paulistas simpatizavam com os franceses, mas havia outras alternativas, como os italianos, com forte presença demográfica em São Paulo, e os alemães, mais próximos ao governo de Getúlio Vargas. Foi graças aos esforços de Mesquita e do psicólogo francês Georges Dumas que as disciplinas ligadas às ciências humanas foram preenchidas por professores franceses. Dumas até se apressou em ir se encontrar em Roma, na Itália, com o professor Teodoro Ramos – enviado à Europa com a missão de contratar docentes para a USP -, mesmo sabendo que ele tinha Paris como destino. Com isso, ele garantiria a prioridade dos franceses entre os mestres a serem recrutados. 

“O conhecimento de longa data que Dumas tinha das elites brasileiras encorajou-o a ver a década de 1930 como uma abertura para um novo tipo de parceria com a França, na forma de uma universidade paulista que receberia ‘missões francesas’. Seria o ápice de suas duas décadas de trabalho diplomático construindo relações entre a América Latina e as universidades e as grandes écoles francesas”, destaca Merkel.  

Em 1934 e 1935, a rede pessoal e profissional de Dumas foi a fonte principal para o recrutamento de candidatos a professores no Brasil, informa Merkel. “Por causa do relativo desprestígio associado a dar aulas no Brasil, no início Dumas teve dificuldade para recrutar professores para lecionar fora da capital e mantê-los lá. Essas dinâmicas acabaram por abrir o caminho para um grupo de jovens acadêmicos, politicamente à esquerda e menos religiosos que seus antecessores em São Paulo e seus contemporâneos no Rio de Janeiro, que tomariam a dianteira nos anos seguintes.” As contribuições de Dumas à Universidade certamente contribuíram para ele receber, em 1937, o título de Doutor Honoris Causa da USP.

Entre 1934 e 1945, 37 professores franceses ajudaram a criar as primeiras universidades do Brasil. Em menor medida do que na USP, eles foram enviados também para o Rio de Janeiro e para o Rio Grande do Sul. Na USP, os primeiros seis professores chegaram em julho de 1934: Émile Coornaert (História da Civilização), Robert Garric (Literatura Francesa), Pierre Deffontaines (Geografia), Paul Arbousse-Bastide (Sociologia), Étienne Borne (Filosofia e Psicologia) e Michel Berveiller (Literatura Grega e Latina).

O livro de Merkel é uma profunda e detalhada descrição dessa troca cultural entre brasileiros e franceses. Ele mostra, no dizer do historiador, como os intelectuais brasileiros passaram de uma posição de dependência quase exclusiva das ciências sociais europeias para outra, de influência sobre os intelectuais franceses. “Essa presença e influência brasileiras de nenhum modo significa o fim da influência francesa nas ciências sociais no Brasil, que continua a ser importante até os dias atuais. No entanto, as trocas explicitamente multidirecionais no período pós-guerra assinalariam uma nova forma de relação entre os intelectuais dos dois países em questão.”

Capa do livro Termos de Troca: Intelectuais Brasileiros e as Ciências Sociais Francesas, de Ian Merkel, lançado pela Editora da USP - Foto: Divulgação/Edusp

Termos de Troca – Intelectuais Brasileiros e as Ciências Sociais Francesas, de Ian Merkel, tradução de Anouch Kurkdjian, Editora da USP (Edusp), 384 páginas, R$ 98,00

*Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado


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