Legado do compositor e professor santista Gilberto Mendes vive na USP de Ribeirão Preto

Com trajetória marcada pelo experimentalismo e inquietação, músico tem sua obra mantida e celebrada por colegas

 17/01/2025 - Publicado há 2 meses

Texto: Luiz Prado
Arte: Diego Facundini*

Legado do compositor e professor santista Gilberto Mendes vive na USP em Ribeirão Preto

Com trajetória marcada pelo experimentalismo, músico tem sua obra mantida e celebrada por colegas

 17/01/2025 - Publicado há 2 meses

Texto: Luiz Prado
Arte: Diego Facundini*

Fotomontagem Jornal da USP com imagens de: Cecília Bastos/USP Imagens

O santista Gilberto Mendes (1922-2016), compositor e professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, fez música que instigou, incomodou, emocionou e inspirou. Não fosse o apreço pelo mar, as lembranças da juventude e a transformação da baixada santista em matéria-prima artística, o local de nascimento seria detalhe: sua obra é do mundo. Por isso mesmo, apesar de curioso, não espanta que seu legado continue vivo longe da terra natal e do litoral, em Ribeirão Preto. Mais especificamente, entre as salas e corredores do Departamento de Música da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP.

É lá que está sediado atualmente o Festival Música Nova, iniciado por Mendes em 1962, ostentando o título de mais antigo evento de música contemporânea da América Latina. Seu acervo pessoal, com manuscritos, partituras, programas e correspondência também está na cidade, aguardando as pesquisas de jovens estudantes e apreciadores de seu trabalho. E, não menos importante, pelo Departamento de Música da FFCLRP circulam gerações de músicos e acadêmicos tocados profundamente pelas obras, pela personalidade e pela trajetória do compositor.

Isso porque Mendes manteve-se sempre inquieto no que diz respeito a seu próprio processo artístico. Se vanguarda e experimentalismo se tornaram termos indissociáveis de sua pessoa, seria mais correto atribuí-los não apenas a seu período mais celebrado, os anos 1960 e 1970, mas a toda sua carreira, iniciada no final dos anos 1940 e adentrada até a segunda década do século 21.

Três Gilbertos

Quem diz isso é o maestro, compositor, pianista e musicólogo Rubens Russomanno Ricciardi, professor do Departamento de Música da FFCLRP, que foi aluno, colaborador e amigo do compositor. “Gilberto Mendes se reinventava o tempo inteiro. Ele não tinha aquele espírito de ficar apenas repetindo algo”, comenta o professor. “Ele era experimental quando abandonava experimentos antigos e fazia novos.”

O assunto é importante porque o nome de Mendes é incontornável quando se fala das pesquisas envolvendo música conceitual da segunda metade do século 20. Obras como Nascemorre (1963), o Moteto em Ré menor (1967), mais conhecido como Beba Coca-ColaSantos Football Music (1969), Asthmatour (1971) e a Ópera Aberta (1975), fizeram a fama – dentro de certos círculos, obviamente – do compositor como um dos pioneiros da música concreta e da música aleatória. Mas essa é apenas uma das várias fases em que se metamorfoseou.

“Gilberto foi de fato vanguarda nos anos 1950, quando fez música em tom popular. Foi vanguarda também quando entrou na linha de Darmstadt. Mas foi vanguarda quando deixou essa linha e fez a nova consonância”, analisa Rubens Russomanno Ricciardi - Foto: Luiz Prado

O professor identifica três. A primeira situada nos anos 1950, quando uma visão atrelada ao Partido Comunista Brasileiro – influenciada pelo discurso de Andrei Jdanov (1948) na União Soviética, mas já perpassada pelas perspectivas epistemológicas propostas por Mário de Andrade no Ensaio sobre a Música Brasileira (1928), um Jdanov “avant la lettre” – procurou integrar o popular e o folclórico em novas composições. Mendes estava ao lado de César Guerra-Peixe (1914-1993), Claudio Santoro (1919-1989), Eunice Katunda (1915-1990) e outros compositores na busca por uma música de “tom popular”, como o maestro prefere chamar, evitando o rótulo “nacionalista”, que remeteria a uma postura política de direita. Dessa época, destacam-se seus ponteios para orquestra e música de câmara.

Já a segunda fase, por sua vez, a mais famosa, passa pela influência de artistas como Karlheinz Stockhausen (1928-2007), Pierre Boulez (1925-2016), Luigi Nono (1924-1990) e outros que habitaram os cursos de férias dedicados a divulgar a Neue Musik em Darmstadt, na Alemanha. Gilberto esteve por lá pela primeira vez em 1962, mesmo ano em que deu início ao Festival Música Nova, em Santos. Foi um período caracterizado por pesquisas fonéticas e com músicas aleatórias, importante produção coral e o lançamento, em 1963, do Manifesto Música Nova.

Redigido por Rogério Duprat, o manifesto foi assinado também por Júlio Medaglia, Régis Duprat, Willy Correia de Oliveira, Damiano Cozzella, Sandino Hohagen, Alexandre Pascoal e Gilberto Mendes. Publicado na edição de junho da revista Invenção, ponta de lança da poesia concreta, o texto indicava novos voos em relação à música de tom popular, predominante no cenário da época. A aproximação com os concretistas foi intensa e Mendes encontrou em sua poesia as palavras exatas para a música que buscava. Nascemorre surge de um poema de Haroldo de Campos e Beba Coca-Cola, da pena de Décio Pignatari.

Os anos 1980 veriam surgir a terceira fase de sua produção. Deixando a linha de Darmstadt e da Neue Musik, o compositor adota o que chamou de nova consonância. Obras marcadas por recursos minimalistas e uma nova simplicidade, aliados a grande dramaticidade. São dessa época Vila Socó Meu Amor (1984), Saudades do Parque Balneário HotelO Último Tango em Vila Parisi (1987). Produções que salientam o lado politicamente engajado de Mendes: Vila Socó presta homenagem aos 93 mortos da localidade situada em Cubatão; O Último Tango coloca em cena o bairro que ficou conhecido internacionalmente como o mais poluído do mundo.

Novos estilos para orquestras, um novo olhar para suas próprias canções dos anos 1950, a reaproximação com a sonoridade dos bailes da juventude em Santos e as admiradas músicas dos cabarés de Berlim e Viena. “Gilberto tinha um carinho regional, mas era um cosmopolita”, comenta o professor. Ele evita atrelar à música do mestre o título de pós-moderna, evocado por alguns. Prefere dizer que Mendes praticou e compôs “paradoxos modernistas”.

Manifesto Música Nova, publicado em 1963 na revista Invenção

“A modernidade tem essa dialética, tem o movimento de ruptura, é mais ousada e depois reintegra a história, faz uma revisitação da dignidade que havia no passado”, afirma o professor. “Ele é um compositor moderno que reflete os paradoxos modernistas, a dialética entre a inovação e a reintegração histórica.”

Carta do professor da ECA José Eduardo Martins para Gilberto Mendes - Foto: Luiz Prado

De Santos para Ribeirão Preto

Tal análise sobre Gilberto Mendes é embasada por uma relação acadêmica, profissional e pessoal que começou em 1979 e seguiu até a morte do compositor, em 2016. Antes mesmo de ingressar como estudante de graduação na ECA, Rubens Russomanno Ricciardi teve aulas particulares com Mendes, no próprio Departamento de Música da instituição. “Aí se estreitou uma amizade para além do convívio entre professor e aluno, de realizações conjuntas.”

Conforme conta o professor, nos anos 1980 mestre e aprendiz realizaram diversos concertos juntos, recuperando as canções de Mendes das décadas de 1950 e 1960. O compositor, por sua vez, iria articular a bolsa de estudos que levaria o aluno para Berlim Oriental, na República Democrática da Alemanha, para uma permanência que se estenderia de 1987 até 1991.

Nos anos 1990 fariam novas turnês pela Alemanha, Áustria e Bélgica. A proximidade tornaria o jovem músico uma “espécie de assistente” de Mendes, como ele mesmo define, no Festival Música Nova, resultando na fundação do núcleo de Ribeirão Preto do evento, pelo Serviço Social de Comércio (Sesc). No final da década, Mendes passaria totalmente a direção artística do festival para o pupilo.

Com a chegada dos anos 2000, já como professor do Departamento de Música em Ribeirão Preto (na época ainda integrado à ECA), Rubens Russomanno Ricciardi levaria Mendes para apresentações nos palcos da cidade: o Theatro Pedro II e a Sala de Concertos Tulha, esta situada no campus da USP. Em 2012, o Festival Música Nova se mudaria de vez para Ribeirão Preto, tornando-se um evento organizado pela Universidade de São Paulo em parceria com o Sesc. Dois anos depois, em 2014, escreveriam juntos, ao lado do professor Lucas Eduardo da Silva Galon, um novo manifesto para o festival. “Fizemos um manifesto que mostra novos rumos. Um festival aberto, um diálogo entre o antigo e o novo, o clássico e o experimental, o regional e o cosmopolita, como é a cara do século 21”, conta, entusiasmado, o docente.

Segundo o maestro, embora Mendes tenha feito toda sua trajetória como docente no Departamento de Música da ECA em São Paulo, no final da vida sua ligação mais forte foi com Ribeirão Preto. O próprio compositor já deixava isso claro em 2013, quando, em matéria do Jornal da USP por ocasião de seus 90 anos, tornou público o desejo de que seu acervo ficasse no interior paulista:

Sala de Concertos Tulha, do Departamento de Música do campus da USP em Ribeirão Preto, onde está guardado o acervo de Gilberto Mendes - Foto: Luiz Prado

“Outra coisa importante: pretendo doar todas as partituras e documentação das minhas peças e artigos de jornais que escrevi para o Departamento de Música da USP em Ribeirão Preto. Creio que, assim, poderei continuar colaborando com novas pesquisas”, declarou na época Mendes para a jornalista Leila Kiyomura.

Hoje, o Centro de Memória das Artes, localizado em um anexo da Sala de Concertos Tulha, guarda obras impressas, editadas e manuscritos do compositor. Também reúne os programas de várias edições do Festival Música Nova e toda a correspondência passiva de Mendes. Além disso, possui cópias do acervo que o compositor havia doado anteriormente para a biblioteca da ECA. Na visão de Ricciardi, esse conjunto é fundamental para quem deseja estudar a obra de Mendes. O professor espera que, em breve, mestrados e doutorados surjam a partir de pesquisas no acervo. “É um legado da música brasileira bastante importante”, sublinha.

Legado é um termo caro ao maestro. Um dos grandes méritos de Mendes, destaca, foi justamente ter reunido em sua atuação na USP ensino, pesquisa e extensão. O compositor teria se dedicado a uma extensão plena, que envolveu outros professores e estudantes na produção de conhecimento e retorno à sociedade, fazendo valer a missão da USP enquanto universidade pública.

“Do ponto de vista da invenção, Gilberto Mendes foi o maior compositor da USP no século 20”, comenta Rubens Russomanno Ricciardi - Fotos: Luiz Prado

Música para ouvir os clássicos

Admiração e reconhecimento não vêm apenas de Ribeirão Preto e nem de agora. Para o poeta Décio Pignatari (1927-2012), Gilberto Mendes foi “o milagre da música contemporânea brasileira”. Olivier Toni (1926-2017), professor tornado colega de departamento, disse a seu respeito que Mendes foi capaz de unir “de uma forma magistral o vulgar ao erudito tornando os dois reunidos uma forma nova de erudição”. O compositor Rodolfo Coelho de Souza o considera “o grande introdutor do minimalismo no Brasil”.

Apesar dos elogios – que ouviu bastante em vida – Mendes manteve sempre aquele tipo de humildade que apenas engrandece o talento. Registrou na autobiografia Uma odisseia musical, sua tese de doutorado transformada em livro, que fazia música para merecer ouvir os clássicos e ser reconhecido, lá do céu, pelos mestres.

Fez isso através de trabalhos provocativos, questionadores e inovadores. Investigou a teatralidade da performance musical colocando um maestro para cabecear uma bola de futebol e aplicar um cartão vermelho em Santos Football Music e outro para dançar com uma violinista e duelar com um músico em O Último Tango em Vila Parisi. Ousou um solo de arroto em Beba Coca-Cola e estruturou obras aleatórias nas quais os artistas escolhiam os rumos da peça a partir de instruções meticulosas. Com suas referências e citações, aproximou-se da pop art.

Mas também antecipou a bossa nova com seus trabalhos dos anos 1950, iluminados por sua admiração pelo compositor francês Gabriel Fauré (1845-1924). E, nos últimos anos de vida, reafirmou o valor dos clássicos quando assinou, junto de Rubens Russomanno Ricciardi e Lucas Eduardo da Silva Galon, o manifesto do 48º Festival Música Nova, em 2012: “O Festival Música Nova permanece experimental, porque entende que nossos tempos são dos sistemas abertos, bem como dos diálogos entre os sistemas.”

Dos títulos que reuniu, destacam-se o de membro honorário da Academia Brasileira de Música e o de Comendador da Ordem do Mérito Cultural, recebido em 2004.

“Do ponto de vista da invenção, Gilberto Mendes foi o maior compositor da USP no século 20”, pontua Rubens Russomanno Ricciardi.

Ponteio, apresentada pela Orquestra Jovem do Estado (Ojesp)

Moteto em Ré Menor (Beba Coca-Cola), trecho do filme A Odisseia Musical de Gilberto Mendes

Apresentação de Santos Football Music com participação do compositor, trecho do filme A Odisseia Musical de Gilberto Mendes

Apresentação de O meu amigo Koellreutter no Festival Música Nova, com Rubens Russomanno Ricciardi ao piano

Apresentação de O Último Tango em Vila Parisi com Gilberto Mendes, trecho do filme A Odisseia Musical de Gilberto Mendes

*Estagiário sob supervisão de Moisés Dorado


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