Ironia, uma chave para ler Fernando Pessoa

em livro LANÇADO PELA EDITORA DA USP, o professor caio gagliardi investiga a presença da ironia na obra do escritor português, destacando seu papel como identidade, gesto e performance

 11/10/2024 - Publicado há 1 mês

Texto: Luiz Prado

Arte: Beatriz Haddad*

“O sorriso de Pessoa é um derivado de sua inteligência, nela fundado e implicado. Mas é também, e complementarmente, resultante da consciência trágica da existência, indulgente consigo e com a vida, gesto que supera a nota meramente cômica justamente por lhe acrescentar, como ocorre especialmente com o humorismo de Pirandello, a largueza da melancolia”, escreve o professor Caio Gagliardi – Imagem: Reprodução/Edusp

Nas páginas do póstumo Livro do Desassossego, Bernardo Soares, um dos heterônimos de Fernando Pessoa (1888-1935) – aqueles autores inventados, alguns com direito até mesmo a biografias –, apresenta uma distinção entre o ser humano e os animais que não se vê frequentemente por aí: “O homem superior difere do homem inferior, e dos animais irmãos deste, pela simples qualidade da ironia. A ironia é o primeiro indício de que a consciência se tornou consciente”.

Colocada na tinta de um autor que “não existe de verdade” (afirmação bastante complexa em se tratando de Pessoa), a definição acima poderia passar batida, ser considerada trivial, mera provocação ou tirada de efeito. Mas ela também poderia ser muito mais. Levada a sério, guardaria a chave da visão de mundo – e de si mesmo – que compõe o próprio Fernando Pessoa e sintetiza boa parte dos procedimentos literários mobilizados pelo autor.

Essa é a investigação e a aposta que animam Fernando Pessoa Ironista, livro do professor Caio Gagliardi, do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Lançado pela Editora da USP (Edusp), o volume reúne ensaios publicados anteriormente em livros e revistas, que ganharam revisões e acréscimos e se entrelaçam no estudo da presença da ironia como aspecto relevante da arte (e da figura) pessoana.

Melhor que “aspecto relevante” seria dizer “termo central”. Gagliardi defende que a ironia representa o combustível do espírito artístico de Pessoa. Foi através dela que o autor enxergou si mesmo e o mundo. A ironia teria sido uma válvula de escape diante da tomada de consciência de que o autoconhecimento não passa de utopia. Frente ao sentido trágico da existência, só restaria a autoironia.

Homem de óculos e com barba.
O professor da USP Caio Gagliardi - Foto: Arquivo pessoal
Capa de livro com o nome do autor, Fernando Pessoa, em letras grandes.
"Livro do Desassossego", obra póstuma de Pessoa - Foto: Pmms2005/Wikimedia Commons - CC BY-SA 4.0

O professor aponta que a ironia surge na obra de Fernando Pessoa como a perspectiva daquele que está apartado do mundo, vivendo uma sensação de não pertencimento, de exílio e de descompasso com a natureza e os outros. Um “desassossego” – para voltar ao título do livro de Bernardo Soares – que teria paralelo com o desconforto romântico e ganha destaque, sobretudo, na experiência dos heterônimos.

Isso porque Alberto Caeiro e Ricardo Reis – duas das principais personalidades literárias criadas por Pessoa – podem ser entendidos como resultado de aspirações de caráter romântico, tentativas irônicas de recuperar um elo rompido com o mundo. No que Gagliardi gosta de chamar “jogo heteronímico”, Álvaro de Campos – o terceiro elemento da trinca mais famosa dos heterônimos – representaria a dramatização dessa fissura. Em todos, a sensação de rompimento com o mundo, sentida e encarada de modos distintos em cada um, é uma chave que mobiliza a criação artística.

Três dimensões do emprego da ironia por Fernando Pessoa ganham destaque no volume. A primeira é sua parte na constituição do sujeito individualista, traço reconhecido e celebrado pelo próprio escritor. Depois, sua utilização como gesto, vista na relação que Pessoa estabeleceu com as publicações nas quais sua obra foi veiculada. E a terceira é seu emprego enquanto performance, como motor para a promoção do próprio autor Fernando Pessoa diante do público.

Escrita e existência são complementares na obra de Pessoa, afirma Gagliardi. É através da escrita que o autor – e também os autores, sem deixar de lado os heterônimos – ganham vida. Por outro lado, a existência – seja dos heterônimos ou do próprio Fernando Pessoa – só se realiza mesmo a partir da produção textual. Em sua obra, a escrita ganha status de elemento natural e indispensável. Fora dela, não há vida.

É com essa concepção em mente que duas imagens recorrentes na produção de Pessoa merecem atenção: a caneta e o espelho. “A escrita leva ao espelhamento, o espelho conduz à escrita”, assinala o professor. A criação literária faz o sujeito voltar-se para si, enquanto o olhar para o eu transborda no ato da escrita. Reunidos, espelho e caneta representam o isolamento e o individualismo que atravessam a obra pessoana.

Um individualismo que se coloca não apenas afastado dos outros, mas acima deles, pontua Gagliardi. É o que Bernardo Soares chama de “aristocracia da individualidade”, “consciência aristocrática” e “aristocracia da alma”, cuja atitude característica é, justamente, a ironia. Nesse ponto, o professor recorre ao pensamento do filósofo francês Georges Palante (1862-1925), que entendia a ironia como uma atitude estética e intelectual e, portanto, aristocrática.

Mas essa ironia aristocrática só é possível em relação. O olhar de cima precisa do objeto que está embaixo. É assim que um dos canais de diálogo para a ironia pessoana aparece na relação que o escritor estabeleceu com as revistas e jornais nos quais parte importante de sua obra foi publicada. Gagliardi mostra como o poeta, em sucessivas ocasiões, planejou a divulgação de seus trabalhos como uma espécie de jogo de xadrez, fazendo de cada publicação uma espécie de lance no tabuleiro.

Ao longo de sua carreira é possível acompanhar uma série de embates e provocações, repletas de irreverência e ironia, entre seus poemas e os veículos em que ganharam o público. Muitas vezes, o escritor desafiou e seguiu mão contrária às linhas editoriais e aos preceitos artísticos de seus diretores. Pessoa iria se voltar para o passado quando a revista bradava pelo novo. Ou exaltar o caráter de artifício e ficção do ato poético quando seus editores ordenavam verdade e sentimento puro.

Homem de bigode com chapéu.
Fernando Pessoa - Foto: Domínio público/Wikimedia Commons

É o que Pessoa faz, por exemplo, quando publica na precursora do Modernismo português A Renascença (1914) Impressões do Crepúsculo, poema a respeito da infância perdida, envolto em nostalgia. Ou então quando apresenta os quatorze sonetos de Passos da Cruz na revista Centauro (1916), trazendo elementos do cristianismo para uma publicação cujo título invoca o fantástico híbrido de homem e cavalo da cultura pagã.

Gagliardi traz ainda mais exemplos. Como o caso dos cinco poemas de Episódio: A Múmia, reunindo decadentismo metafísico e imagens sombrias para circular de maneira deslocada no interior do primeiro número de Portugal Futurista (1917).“O que ele tem a ver com a velocidade, o simultaneísmo e a força – com os automóveis, os aeroplanos e os transatlânticos de Marinetti?”, questiona o professor, referindo-se ao manifesto futurista de Filippo Tommaso Marinetti (1876-1944), também publicado no volume inaugural da revista.

Nesse jogo sofisticado, o “xeque-mate”, para Gagliardi, está no conjunto reunido ao longo dos anos nas páginas da revista Presença (1927-1940). Trata-se da publicação com a qual Pessoa mais vezes colaborou, descontando-se os veículos em que ele mesmo foi diretor. É nela que estão, entre outros, Autopsicografia, assinado pelo próprio Fernando Pessoa, Tabacaria, de Álvaro de Campos, e o oitavo poema do Guardador de Rebanhos, de Alberto Caeiro.

Em prosa ou versos, esses textos marcam tensionamentos com uma série de ideários estéticos de seus editores – como aparece logo de início em Autopsicografia, que afronta as noções de ingenuidade, pureza e sinceridade propagadas por José Régio em Literatura Viva (1927), manifesto que inaugura a revista.

Sem que a apreciação do contexto de publicação represente mudança radical na leitura de sua obra, o que Gagliardi sugere é que novas camadas de sentido aparecem quando se leva em conta o movimento irônico de Pessoa. “De forma mais ou menos decisiva, o que se entrevê em todos esses gestos editoriais é uma sombra tênue, quase invisível, mas que, se repararmos bem, risca por trás de cada composição o sorriso sibilino de seu autor”, escreve o professor.

Sorriso aristocrático, solitário e que olha de cima. O sorriso de um gênio. Cujo destino é ser incompreendido. Mas não um destino que simplesmente se oferece ao poeta, mas que é construído, performado. A ironia não foi mobilizada por Pessoa apenas como gesto, mas também como ferramenta de construção de si próprio perante o público. É o que revelam as análises das intervenções públicas do escritor, materializadas em manifestos e reflexões estéticas.

Boa parte do que Pessoa escreveu nesses textos, indica Gagliardi, pode ser visto como peças autopromocionais, que mobilizaram o embate e a ironia para colocar em evidência o próprio autor e estabelecê-lo como o grande poeta que surgiria em Portugal. Exemplo bem acabado e metalinguístico disso é o ensaio O Provincianismo Português, no qual teoriza sobre a própria ironia.

Para Pessoa, o provinciano é incapaz de ironia. Nas palavras do próprio:

“A ironia é isto. Para a sua realização exige-se um domínio absoluto da expressão, produto de uma cultura intensa; e aquilo a que os ingleses chamam detachment – o poder de afastar-se de si mesmo, de dividir-se em dois, produto daquele ‘desenvolvimento da largueza de consciência’ em que, segundo o historiador alemão Lamprecht, reside a essência da civilização. Para a sua realização exige-se, em outras palavras, o não se ser provinciano.”

Exigências que Pessoa, evidentemente, satisfaz até a última gota. São o domínio da expressão, a ampla cultura, a largueza de consciência e o poder de se afastar de si mesmo, sublinha o professor, que se contrapõem ao provincianismo. E é esse afastamento que se realiza através de sua multiplicação nos heterônimos, a marca definitiva de seu manejo da ironia. “A criação de escritores independentes de si não seria, seguindo essa mesma lógica, uma heteronia, a realização suprema de sua ironia?”, escreve o professor.

Uma performance de si que mobiliza a ironia até mesmo para afirmações ideológicas. Gagliardi não se furta a penetrar um dos textos mais controversos de Pessoa, O Interregno, cujo subtítulo é Defesa e Justificação da Ditadura Militar em Portugal, publicado em 1928. Para grande parte dos leitores e críticos, seria preferível não vê-lo associado ao escritor lisboeta. O professor, contudo, sugere que o manifesto poderia ser lido justamente na chave da ironia, sendo assim colocado de cabeça para baixo.

Se podemos considerar a ironia, comenta Gagliardi, como “dizer uma coisa para dizer o contrário”, Pessoa estaria jogando deliberadamente com a construção de suas posições políticas. Algo comum: Pessoa mais de uma vez contradisse suas convicções. Traço da dimensão irônica do seu caráter individualista. “A formulação ideológica de Pessoa é obra de ficção, não menos elaborada do que os seus poemas”, sintetiza o professor.

“O conjunto desses textos”, escreve Gagliardi, “revela um escritor que muda de opinião e produz contradições com uma liberdade desnorteadora. O que lhe interessa é o jogo das grandes ideias, o raciocínio como finalidade, sem correspondente direto na realidade. Que resultado na vida social poderia ter, por exemplo, a formalização teórica de um Quinto Império?”

A vida social, contudo, jamais contou tanto para Fernando Pessoa quanto as formalizações teóricas. Jogo de grandes ideias, nas quais provavelmente a importância recaia sobretudo na palavra jogo. O sociólogo francês Roger Caillois (1913-1978) elenca como princípios centrais do jogo a competitividade, o simulacro, a sorte e a vertigem. Dependendo do jogo, uma ou outra dessas categorias assumiria a proeminência. Não teria Fernando Pessoa reunido todas elas em seu xadrez literário, fazendo da ironia e da construção de si mesmo o jogo definitivo?

Filho da Dor e da Inteligência

Em entrevista para o Jornal da USP, o professor Caio Gagliardi retomou e aprofundou alguns dos principais pontos desenvolvidos em Fernando Pessoa Ironista. O professor chama atenção, em primeiro lugar, para a necessidade de se entender o tempo cultural e político do escritor quando pensamos a questão do individualismo.

Pessoa é herdeiro estético do simbolismo e do decadentismo e viveu a queda da Monarquia e a implementação da República em Portugal, período de agitação e crise social, no qual um presidente foi assasinado – Sidónio Pais, em 1918 – e um golpe militar foi desferido em 1926. Mas o escritor não presenciou a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a notícia dos campos de extermínio nazistas e tampouco os movimentos de libertação das colônias portuguesas (1961-1974). É esse contexto específico que não pode ser desconsiderado, sublinha Gagliardi, quando se fala de um individualismo pessoano.

“Tendo em mente a quantidade de textos antissalazaristas que Pessoa elaborou a partir de 1933, os quais anunciam uma nova orientação política em sua obra, é legítimo conjecturarmos que, se tivesse sido produzida à luz das transformações que Portugal e o mundo sofreram ao longo dos cinco anos seguintes à morte do escritor, seria ainda mais nítida a relativização de seu individualismo patente”, afirma Caio Gagliardi.

Sem ter vivido para testemunhar todos esses episódios, contudo, temos na obra de pessoa o que Gagliardi define como “um princípio que propõe a abdicação dos valores morais para se traduzir como uma estética individual”.

É dentro desse quadro, explica o professor, que deve-se analisar a tendência ao recolhimento, o retraimento de caráter, a misantropia e o exílio psicológico que compõem o individualismo de Pessoa. Aspecto fundamental, mas pouco comum, segundo Gagliardi, na fortuna crítica a respeito do escritor, possivelmente pela conotação depreciativa que termos como “individualismo” e “individualista” agregam.

Deixando o preconceito de lado para tentar compreender esse individualismo é que Gagliardi procurou aproximar Pessoa de Georges Palante. “As obras desses escritores conversam intimamente ao se afastarem do politicamente correto, das variegadas formas de dogmatismo e moralismo social, e ao manifestarem, com um tom inconfundivelmente melancólico, o individualismo como uma forma de sensibilidade”, conta o professor.

Segundo Palante, é preciso distinguir individualismo – que é um dos traços que se aplicaria a Pessoa – do egoísmo vulgar. Nos egoístas, encontra-se uma sensibilidade grosseira, arrivista e adaptada para atingir seus objetivos. Já a tendência do individualista é dobrar-se sobre si mesmo ao constatar que suas necessidades íntimas são anuladas pela energia coletiva. Se o egoísta é um homem de ação, diz Gagliardi, o individualista é um estático.

“Refugiado, portanto, em seu ceticismo e diletantismo sociais, o individualista cultiva a exceção e se define por oposição à mentalidade corporativa e solidarista, que ele toma por insincera, ou, como dirá Palante, solidarité de façade (solidariedade de fachada)”, explica o professor. “Em contrapartida, a ironia é uma atitude aristocrática, individualista e, decerto, uma forma de escapar às armadilhas do sentimentalismo. O sorriso irônico é a superação do riso como manifestação meramente social. A ironia é filha da dor e da inteligência. O olhar de Pessoa, dirigido do alto sobre todas as coisas, o qual Bernardo Soares designou como ‘aristocracia da individualidade’, é uma atitude essencialmente estética e intelectual”, finaliza Gagliardi.

Fernando Pessoa Ironista, de Caio Gagliardi, Editora da USP (Edusp), 176 páginas, R$ 48,00.

*Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado


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