Heitor Villa-Lobos, um erudito formado nas esquinas cariocas

Livro de professor da USP reconstitui as influências do choro e da música popular na obra do compositor carioca

 30/09/2022 - Publicado há 2 anos
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Livro inclui cartas inéditas do compositor carioca – Fotomontagem com imagens de Freepik e Reprodução/livro A Genialidade de Villa-Lobos

Nas estrofes de Não Sei Dançar, poema que abre Libertinagem, Manuel Bandeira fabula com sua habitual ironia os comentários de um salão de baile. Entre um verso e outro, alguém fofoca que a arrumadeira está dançando com o ex-prefeito. Essa mistura de classes e universos impele então o poeta a exclamar com síntese incrível: “Tão Brasil!”.

Essa é uma interjeição que também poderia se ajustar com fineza a Heitor Villa-Lobos (1887-1959), compositor, maestro, violoncelista, pianista e violonista, indiscutivelmente o maior nome da música erudita brasileira do século 20. Isso porque, ao lado de nomes referenciais da música clássica como Claude Debussy e Igor Stravinsky, Villa-Lobos carregava em sua bagagem – e com peso considerável – anos de formação popular e de prática do violão em serestas e rodas de chorões nas noites cariocas.

A valorização dessa experiência é exatamente o carro-chefe de A Genialidade de Villa-Lobos, e-book de Paulo de Tarso Salles, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, e Loque Arcanjo Júnior, professor da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). Com curadoria de Ana Brites, a biografia surge destinada ao grande público, com linguagem acessível e recursos multimídia através de QR codes que dirigem o leitor para gravações e vídeos do acervo do Museu Villa-Lobos, do Rio de Janeiro.

O professor Paulo de Tarso – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Segundo Salles, a motivação para aceitar a tarefa de escrever o livro foi a possibilidade de mostrar um Villa-Lobos cuja trajetória envolveu o pertencimento a uma classe mais humilde. “Esse é seu diferencial: um compositor que de certa forma viveu entre pessoas do povo”, declara o professor.

De modo geral”, comenta Salles, “nas biografias oficiais sobre Villa-Lobos esse aspecto é mencionado muitas vezes como um dado pitoresco de sua trajetória: um compositor erudito com um interesse um pouco excêntrico na música popular, um interesse meio que para dar cor local à sua obra”.

Para o professor, essa é uma abordagem problemática, porque a vivência de Villa-Lobos com os chorões foi determinante em sua trajetória. “Após a morte do pai, sua família teve uma considerável mudança de status social e Villa-Lobos começou a circular no ambiente dos músicos populares, até mais ou menos os 25 anos de idade. Durante toda sua fase de formação, portanto, conviveu com músicos humildes e pertenceu a uma classe social que costuma estar alheia ao que normalmente se entende como música erudita. Isso foi decisivo para que ele se tornasse um compositor completamente diferente do que havia até então no Brasil.”

Das esquinas cariocas ao Theatro Municipal

Heitor Villa-Lobos nasceu no Rio de Janeiro, em 5 de março de 1887, no seio de uma família de classe média, com sete irmãos e cujo pai, Raul, era bibliotecário na Biblioteca Nacional e autor de livros sobre história e geografia. Com a morte de Raul, em 1899, a situação da família seria alterada sensivelmente. Noêmia, a mãe do jovem Villa-Lobos, passou a trabalhar fora e o garoto, então com 12 anos e livre da vigilância paterna, começou a frequentar as noites cariocas.

Agarrado ao violão, Villa-Lobos tocou com músicos do calibre de Pixinguinha, Donga, Sinhô, Quincas Laranjeira, Sátiro Bilhar e João Pernambuco, além de uma série de nomes destacados do choro, do maxixe e do samba carioca do início do século 20. Eles seriam seus mestres da harmonia e do contraponto. Ao mesmo tempo, nesses anos de formação Villa-Lobos se matricularia no Instituto Nacional de Música, onde teria aulas de harmonia, e também se aprimoraria no piano e nas técnicas de composição erudita graças à sua primeira esposa, a pianista Lucília Guimarães.

“Villa-Lobos foi um compositor agressivamente moderno, que buscava dissonâncias e insistia em ser original” – Foto: Reprodução/livro A Genialidade de Villa-Lobos

Na década de 1910, enquanto se aprofundava nos estudos eruditos, Villa-Lobos esconderia sua formação popular, a fim de ganhar respeito como compositor entre os meios da alta cultura da época. Sinal evidente disso foi o abandono temporário do violão e o investimento no violoncelo, instrumento mais familiar às salas de concerto.

Conforme conta Salles, o nome de Villa-Lobos começou a despertar interesse sobretudo a partir de 1915, quando passou a realizar recitais compostos de obras exclusivamente suas. Em um ambiente musical que tendia ao provincianismo e à polarização entre a alta cultura dos teatros e óperas e a música popular das periferias, a crítica musical conservadora veria inicialmente em Villa-Lobos um incômodo, um compositor agressivamente moderno, que buscava dissonâncias e insistia em ser original.

Mas seria exatamente a inventividade de Villa-Lobos, com composições que já começavam a entrelaçar as propostas das vanguardas europeias aos elementos afro-brasileiros, indígenas e caipiras, que chamaria a atenção de Mário e Oswald de Andrade. Impressionados com o que ouviram em um concerto realizado em 1921, no Rio de Janeiro, a dupla o convidaria para integrar a programação da Semana de Arte Moderna de 1922. A síntese entre música clássica europeia e música popular brasileira, bem ao gosto do que mais tarde seria conhecido como o processo antropofágico, vinha ao encontro dos anseios das elites intelectuais paulistas promotoras da Semana.

De Vargas à bossa nova

Na década de 1930, de volta ao Brasil após um período na França, Villa-Lobos aceitaria o convite do então secretário nacional da Educação, Anísio Teixeira, para assumir a coordenação da Superintendência de Educação Musical e Artística (Sema), que em 1942 seria transformada no Conservatório Nacional de Canto Orfeônico. O Brasil vivia a Era Vargas e, nesse cenário de contradições políticas, no qual artistas e intelectuais como Carlos Drummond de Andrade, Oscar Niemeyer e Cecília Meirelles se viam trabalhando nas iniciativas culturais do governo, o razoavelmente apolítico Villa-Lobos empreendeu um grande projeto de educação musical, ao mesmo tempo em que conseguia estabilidade financeira. Quando volta da França em 1930, Villa-Lobos ainda é um músico que luta para pagar o aluguel. É menos por ideologia do que por necessidade de subsistência que ele aceita esse emprego”, aponta Salles.

Por outro lado, ele tinha vontade de usar isso para algo em que ele acreditava. Em Paris, Villa-Lobos circulava por um ambiente no qual recebia carta branca para fazer o que queria. De volta ao Brasil, ele sabia que a realidade seria outra e, assim, deve ter percebido que o ambiente musical precisava de uma educação musical diferenciada.” Para Salles, um dos legados desse projeto musical foi justamente a formação de um público que permitiu o surgimento da bossa nova, aberto a novas sonoridades e experimentações na música.

Cartas inéditas

O compositor Heitor Villa-Lobos – Foto: Reprodução/livro A Genialidade de Villa-Lobos

Para escrever a obra, Salles e Arcanjo se basearam em estudos biográficos como os livros Heitor Villa-Lobos, de Vasco Mariz, Heitor Villa-Lobos: o Caminho Sinuoso da Predestinação, de Paulo Guérios, e Heitor Villa-Lobos, Vida e Obra (1887-1959), de Eero Tarasti, entre outros. Jornais de época e um conjunto de cartas inéditas, guardadas no Museu Villa-Lobos, também serviram de referência.

Essa correspondência constitui a fonte mais instigante do livro. Na seleção de cartas que aparece no e-book surgem nomes como Mário e Oswald, Graça Aranha, Carlos Drummond de Andrade, o biógrafo Vasco Mariz, Câmara Cascudo e o irmão de Villa-Lobos, Othon. Conforme indica o pesquisador, a seleção de cartas presente no livro serve de complemento e contraponto ao texto principal, aprofundando alguns temas e ilustrando outros, como a relação do compositor com a família.

A carta de Graça Aranha, por exemplo, traz um bilhetinho que marca um encontro no Rio de Janeiro. Será que esse bilhete não estaria marcando a reunião com Mário e Oswald para discutir a Semana de Arte Moderna?”, provoca Salles.

A Genialidade de Villa-Lobos, de Paulo de Tarso Salles e Loque Arcanjo Júnior, Aloha Consultoria & Eventos, 130 páginas. Disponível gratuitamente neste link. 


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