Guia ajuda jornalistas a preservar a saúde mental diante de eventos extremos

Produzido por grupo de pesquisa da USP em parceria com agência de comunicação, material traz discussão inédita e alerta para os riscos de viver sob estresse

 Publicado: 26/06/2024

Texto: Ricardo Thomé*

Arte: Beatriz Haddad**

Em abril deste ano, o filme Guerra Civil, do diretor britânico Alex Garland, chamou a atenção por retratar o trabalho de fotojornalistas de guerra e o impacto que o convívio intenso com situações extremas como essa pode trazer para a saúde mental dos profissionais de imprensa. Mais ou menos a partir da mesma época, o Estado do Rio Grande do Sul passou a conviver com as maiores enchentes de sua história. Em meio a mais de 2 milhões de pessoas atingidas e a 175 mortes confirmadas até o momento, vários jornalistas foram afetados diretamente pela tragédia ao cobrir os horrores do desastre, com um único fim: o de levar à população a informação a respeito do que estava acontecendo.

Mas como fica a saúde desses profissionais e quem os informa sobre como se preservar diante dessas situações? Foi em busca de responder a essas perguntas que a gaúcha, jornalista e professora da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP Daniela Osvald preparou, por meio do Observatório de Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura (Obcom), grupo de pesquisa da ECA, em parceria com a agência de comunicação Dix Conteúdo e Relacionamento, o Guia Básico para Jornalistas em Cobertura de Eventos Extremos – Preservando a Saúde Física e Mental em Situações de Intenso Estresse, lançado no início deste mês.

O material foi produzido em três semanas a partir dos estudos do grupo de pesquisa, com a participação de psicólogos especializados. Ao todo, são oito páginas, que detalham a emergência de cada vez mais desastres ambientais — devido às mudanças climáticas —, a rotina intensa e cansativa da profissão de jornalista e as possíveis consequências de ignorar o estresse e a relação com o trauma. Além disso, o guia fornece dicas de gerenciamento desses efeitos para repórteres e gestores. A diagramação foi feita por Ellen Peterson, jornalista e proprietária da Dix, enquanto as ilustrações são de Eloenes Silva — ambos gaúchos. A Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas) auxiliou na divulgação.

A curva de estresse

O principal foco do guia está na chamada curva de estresse e na importância de gerenciá-la. Basicamente, o problema não está nem na presença do estresse nem na exposição ao trauma. Na realidade, o corpo humano precisa de estresse em alguma medida e está preparado para lidar com o trauma. É na exposição excessiva a essas situações extremas que está o problema. “Queríamos colocar um radar de atenção para esse jornalista que está desenvolvendo sintomas que ultrapassam o estresse e que vão em direção a um adoecimento”, explica Daniela Osvald.

O guia aponta que, ultrapassado o limite da exaustão da curva de estresse, entra-se em um estado de ansiedade e frustração profundo, no chamado burnout. Daniela afirma que, dentro do processo de dissociação do corpo, uma das reações ao perigo pode ser o engajamento social — visto no resgate a pessoas e animais, por exemplo. “Se você não tem segurança para o engajamento social, vai acionar uma outra resposta social possível: o ‘grito por ajuda’. Se isso não funcionar, você vai para o ‘lutar ou fugir’. A etapa seguinte é o ‘congelamento’. Depois, vem o ‘flag’, ou desfalecimento, que é uma parte intermediária. E se ainda assim não foi possível, o corpo entra em ‘colapso’.” O colapso, segundo a professora, é um mecanismo de proteção do corpo humano, que age em vias a fazer a pessoa perder os sentidos de forma a sofrer menos em situações extremas e traumáticas.

A professora Daniela Osvald - Foto: Reprodução/LinkedIn
A professora Daniela Osvald - Foto: Reprodução/LinkedIn

O estresse é um elemento iminente na atividade humana e jornalística, mas pode ser perigoso quando em excesso. Para isso, gerenciar a curva do estresse (foto) é essencial – Foto: Reprodução/Guia Básico para Jornalistas em Cobertura de Eventos Extremos – Preservando a Saúde Física e Mental em Situações de Intenso Estresse

Há, ainda, outras formas de exposição ao trauma que podem comprometer a saúde mental de jornalistas. Uma delas é o trauma secundário, isto é, a exposição ao trauma alheio. “Pode não estar acontecendo com você, mas está mobilizando seu corpo e seu sistema nervoso. E, se isso ocorre continuamente, pode deixar marcas no seu corpo e na sua psique”, explica Daniela. Caso o profissional já chegue a uma zona de conflito ou de tragédia com um trauma ou desequilíbrio pessoal por trás, também haverá consequências. A professora cita a personagem Lee Smith (Kirsten Dunst), de Guerra Civil, como alguém com um trauma crônico, que não foi tratado. Atual presidente da Comissão de Inclusão e Pertencimento (CIP) da USP, Daniela enfatiza a necessidade de se atentar para os possíveis traumas pessoais e geracionais em se tratando de jovens que adentram a Universidade: “O trauma racial, por exemplo, vem de gerações: a pessoa nasce e já é ensinada a ficar em alerta, o que pode levar à sobrecarga de um corpo hiper-vigilante e estressado”.

Em “Guerra Civil” (2024), é perceptível a diferença entre os novatos e os veteranos da profissão no que diz respeito à forma de lidar com o trauma pessoal e secundário – Foto: Divulgação
No que diz respeito ao trauma, o guia traça uma diferenciação entre “traumatização” e “trauma”. De acordo com o material, o trauma é inerente à cobertura de estresse intenso e o corpo está preparado para lidar com ele. A traumatização, porém, vai além: ocorre quando a reação ao trauma se torna permanente, a ponto de se converter em um padrão de comportamento — o que pode ter, entre outras consequências, o burnout e o trauma psíquico, também conhecido como Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT).

Saúde mental em pendulação

Dentre as motivações para a formulação do guia, Daniela elenca a preocupação com a cobertura das enchentes no Rio Grande do Sul como uma das principais. “Os jornalistas locais são ainda mais impactados, porque a cobertura acaba e eles continuam lá”, diz. Ela também ressalta o fato de que a cobertura feita por jornalistas gaúchos tinha um tom mais “humanizado” em relação às demais. “Os que foram primeiro (gaúchos) não faziam perguntas do tipo ‘como você está se sentindo depois de ter perdido toda a sua casa e está limpando ela, sendo que vai chover de novo e vai perder tudo de novo’. E eu vi isso acontecendo.”

A eventual falta de sensibilidade de jornalistas na cobertura de eventos extremos e na relação com as pessoas nessas situações é fruto, para a autora do guia, da falta de tradição e de material de jornalismo sobre trauma no Brasil. Sem embasamento, o repórter, inexperiente, estaria mais propenso a agir de forma mais equivocada e menos empática. “A profissão do jornalista tende, por si só, a negligenciar a área porque tem o estereótipo de que ‘a adrenalina faz parte’. E, ainda que todos saibam que a cobertura vai ser traumática e desgastante, as pessoas vão ter que lidar com isso, e ter informação ajuda.”

A melhor forma de evitar que o corpo ultrapasse os limites saudáveis de estresse é, portanto, estar atento aos sinais e saber a hora de recuar, num movimento que Daniela chama de “pendulação”. A partir daí, o guia propõe medidas mais específicas para repórteres e gestores, que passam pelo gerenciamento de aspectos como o sono; a alimentação; o exercício físico; as distrações e os pequenos hábitos — no caso dos repórteres —; e do rodízio; da escuta atenta; do incentivo; da solidariedade; da oferta de ajuda psicológica e da oferta de auxílio e de preparo — no caso dos gestores. “A profissão de jornalista sempre foi estressante. Mas o modo de vida moderno é ainda mais estimulante e a tendência é termos cada vez mais pautas sobre o mundo em colapso. Por isso, nosso objetivo é desenvolver uma cultura de autopreservação a médio-longo prazo”, completa.

Referências externas

Daniela explica que uma das ideias por trás da formulação do guia era dar enfoque ao cuidado com a saúde mental do próprio jornalista: “O jornalismo informado sobre trauma no Norte global tem vários guias que ensinam a trazer sensibilidade ao entrevistar pessoas traumatizadas, para evitar retraumatizá-las. Mas pouco se fala no jornalista”. Além disso, ela observa que a maior parte das produções do tema são pouco acessíveis, seja por não terem tradução do inglês, seja por serem muito extensas. “Tem um guia chamado Está Tudo Bem?, que foi patrocinado pela Meta, com participação da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), mas abrange um escopo mais amplo de saúde mental.”

Parte do embasamento adquirido para o guia veio das participações de Daniela no Congresso Anual de Segurança de Jornalistas, na Universidade Metropolitana de Oslo, na Noruega, onde participou de um treinamento-padrão simulando um sequestro coletivo, algo que ela considera importante para jornalistas de guerra. A professora também fez um curso com a psicóloga Ediane Ribeiro chamado Cuidado sobre Trauma. “É uma grande área, que reúne neurociência, psicologia e neurobiologia interpessoal.”

A professora também cita a fotojornalista estadunidense Lynsey Addario como uma de suas referências: “Em seu livro Of Love & War (Editora Penguin Press, 2018), Lynsey faz uma autoanálise de como processa o trauma. Ela foi sequestrada duas vezes e não parou. É importante ter em vista que diferentes organismos se comportam de formas diferentes diante do trauma”. Segundo Daniela, a fotojornalista elogiou o trabalho de Guerra Civil no que diz respeito à realidade dos fotojornalistas de guerra. “A Lynsay vê propósito no trabalho dela, mostrar ao mundo o que está acontecendo. Não é papel dela dar as soluções, mas sim retratar o que está acontecendo.”

Guia Básico para Jornalistas em Cobertura de Eventos Extremos – Preservando a Saúde Física e Mental em Situações de Intenso Estresse está disponível no link abaixo.

Capa do livro Of Love & War, da editora Penguin Press, 2018 — Foto: Divulgação

*Estagiário sob supervisão de Roberto C. G. Castro

**Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado


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