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Exposição reflete sobre o 8 de janeiro por trás das câmeras de vigilância
Em cartaz no Arquivo Histórico Municipal, Arquivo e Memória do 8 de Janeiro propõe ter a documentação social como meio de pensar narrativas históricas

Neste mês de janeiro, completaram-se dois anos de um dos eventos mais marcantes — e obscuros — dos quase quarenta anos desde a redemocratização no Brasil: os ataques golpistas aos edifícios-sede dos Três Poderes, em Brasília, no domingo, 8 de janeiro de 2023, protagonizados, em sua maioria, por apoiadores do ex-presidente da República, Jair Bolsonaro (PL). Cerca de três meses após os atos, o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República liberou, sob determinação do Supremo Tribunal Federal (STF), as imagens das câmeras de vigilância que flagraram as invasões e o vandalismo.
E foi a partir desses vídeos que um grupo de doutorandas e pós-doutorandas da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e de Design (FAU) e do Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP, coordenado por Giselle Beiguelman, artista e professora da FAU, aprofundou um projeto já existente — o Projeto Temático Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo): Acervos Digitais e Pesquisa — e formulou a exposição Arquivo e Memória do 8 de Janeiro de 2023, em cartaz no Arquivo Histórico Municipal (AHM) de São Paulo desde o fim de novembro. A princípio, a mostra fica em exibição até dia 28 de janeiro — ao Jornal da USP, Giselle Beiguelman revelou que esse tempo pode ser estendido, pelo menos, até 31 de março. A entrada é gratuita.
A exposição: o dia que não é apenas um dia
Arquivo e Memória do 8 de Janeiro de 2023 é dividida em quatro seções: Interfaces do 8 de Janeiro, Estado de Exceção, Estéticas de Vigilância e Rastros da Destruição. Na primeira parte, o visitante tem acesso a alguns dos momentos que foram flagrados pelas câmeras de vigilância do Palácio do Planalto há dois anos. Giselle conta que, após a cessão das imagens pelo GSI, os integrantes do projeto Acervos Digitais e Pesquisa se utilizaram de mecanismos de inteligência artificial para filtrar as imagens e subdividi-las, de forma que quem acessar o link possa assistir ao momento que quiser durante as 24 horas daquele dia sob a perspectiva de 33 câmeras diferentes — o que totaliza cerca de 500 horas de vídeo. “A princípio, acreditávamos que tínhamos em torno de 800 horas para analisar, mas são 500. Algumas câmeras saíram do ar porque foram atacadas pelos golpistas, enquanto outras não estavam ligadas e foram colocadas em operação conforme a invasão avançava”, explica a professora da FAU, que também é colunista da Rádio USP.
A plataforma, que contou com a programação de Thiago Hersan, bolsista do projeto temático, permite que a navegação pelas câmeras seja feita não só pelo horário, como também pelos espaços e pelos objetos. É possível, assim, entender como foi a dinâmica de ocupação do prédio e analisar a depredação do patrimônio público com foco, por exemplo, em todas as vezes em que extintores de incêndio são filmados.


Ao todo, a pesquisa do Projeto Temático Fapesp Acervos Digitais e Pesquisa analisou 500 horas de filmagens, distribuídas entre 33 câmeras diferentes. Alguns dos registros estão na exposição — Foto: Marcos Santos/USP Imagens
Em Estados de Exceção, a exposição busca explicar como o conceito de Estado de exceção, atribuído ao filósofo italiano Giorgio Agamben, poderia ser aplicado ao Brasil naquele 8 de janeiro, ao se definir os atos democráticos como “apropriação destrutiva do patrimônio coletivo pelos golpistas”. A partir dessa ideia, o visitante se depara com um mapa dos arredores dos prédios invadidos, o qual é ilustrado com imagens das câmeras de segurança, a fim de compreender como se deu essa apropriação e de levantar uma discussão sobre o direito à memória e o direito ao espaço público.

No centro da sala 25, pequeno espaço onde está abrigada a mostra no Arquivo Histórico Municipal, está Estéticas de Vigilância. Essa seção se pauta em um dos objetivos iniciais do projeto temático, que se refere à noção de documentação social, como indica o texto no painel: “Ao examinar essas imagens, somos convidados a refletir sobre como registros, inicialmente destinados ao esquecimento ou à ocultação, podem se tornar documentos, sugerindo novas narrativas sobre arquitetura, arte e poder”. A coordenadora realça o fato de que toda a documentação liberada é residual: “Não podemos esquecer que imagens de câmeras de segurança costumam ser produzidas para serem apagadas depois de um determinado período”. Novamente, são apresentados ao visitante ângulos inéditos do Palácio, gravados a partir de diferentes tipos de câmera e em diferentes qualidades — no que se fez muito importante a aplicação da inteligência artificial.

Antes da parte final da exposição, há uma área com três pequenos bancos e uma televisão, reservada para a exibição do documentário Domingo no Golpe, produzido por Giselle Beiguelman e Lucas Bambozzi em 2024 e que conta com narração criada a partir de trechos de falas da senadora Eliziane Gama (PSD-MA), relatora da CPMI (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito) sobre os atos golpistas. Feito a partir das imagens disponibilizadas pelo GSI, mas antes que o protótipo de filtro ficasse pronto, o documentário parte do impeachment da então presidente Dilma Rousseff (PT), em 2016, para entrar nos meandros do bolsonarismo e do golpismo, até chegar ao 8 de janeiro. A relatora reitera, na narração, que houve conivência dos órgãos de segurança em relação aos ataques e afirma que o 8 de janeiro “ainda não terminou”. O trailer de Domingo no Golpe, cuja versão completa tem em torno de 20 minutos, está disponível para acesso neste link.
Rastros da Destruição finaliza a mostra, mais uma vez dando ênfase à depredação e ao estrago, físico e simbólico, causado pelos invasores — e registrado pelas câmeras. Conforme destaca o texto no painel, “os danos aos acervos artísticos e arquitetônicos evidenciam a vulnerabilidade do patrimônio em tempos de crise”. Giselle complementa, e crê que o evento do 8 de janeiro é, por si só, “de extrema relevância para entendermos as fragilidades e as forças da democracia brasileira”. Para a coordenadora, as imagens das câmeras, algumas das quais estão expostas, servem para pensar em novas narrativas históricas: “Que outras histórias essas imagens contam sobre Brasília, que é sempre tratada como uma cidade-monumento? As imagens revelam uma arquitetura mal conservada, com inúmeras interferências e pontos de vista que transcendem o olhar humano”, reflete.

Acervos Digitais e Pesquisa para além da exposição
O projeto temático Fapesp Acervos Digitais e Pesquisa, a partir do qual se originou a exposição no AHM, começou antes mesmo do 8 de janeiro acontecer, e tinha como prerrogativa a noção de documentação social, ou seja, nas palavras de Giselle Beiguelman, “tomando por ponto de partida a ideia de que todo objeto, uma vez que esteja on-line, é passível de estar conectado a inúmeras outras instâncias. Então ele não é um objeto em si mesmo”. A partir dessa ideia, o grupo de pesquisa, coordenado por ela e composto com as estudantes que viriam a ser curadoras da exposição (Amanda Klajner, Ana Roman, Cássia Hosni, Milena Szafir, Renata Perim), passou a produzir discursos críticos sobre todo tipo de documento que pudesse ser acessado on-line — sendo ele originalmente digital, ou não —, com o auxílio de mecanismos de inteligência artificial e de divisão computacional. A ideia era, a partir da investigação de bases de dados e de suas correlações, dos sistemas de gestão e dos documentos nato-digitais, “problematizar as diferentes naturezas dos documentos, as formas de acesso, de visualização e de preservação”.
Ao longo de 2022, o projeto teve suas discussões restritas ao campo da teoria, fato que veio a mudar com o 8 de janeiro, responsável, segundo a coordenadora, por “redefinir” o projeto. “Com a liberação da massa de arquivos [pelo GSI], pudemos não só testar muitas das nossas hipóteses, mas consolidar um repertório metodológico”, afirma. A partir das imagens das câmeras de vigilância do Planalto, Acervos Digitais e Pesquisa desenvolveu dois protótipos, com o objetivo primordial de “criar arquivos que não existem”, isto é, explorar as camadas dos arquivos e ligar essas camadas a outros arquivos, a fim de chegar a algo novo. Como exemplo, ela traz o segundo protótipo: “Fizemos um modelo de IA (inteligência artificial) que utiliza a visão computacional para reunir fotos que são postadas pelos usuários para documentar a arquitetura e, assim, criamos um arquivo que não existe sobre o mobiliário brasileiro, identificando nas fotos onde apareciam cadeiras, mesas e demais peças de mobiliário”. O protótipo teve o auxílio do projeto Arquigrafia, também vinculado à FAU e à Fapesp, e vem rendendo convites frequentes para a participação em congressos nacionais e internacionais — como o Cidoc 2024, evento organizado pelo Icom (Conselho Internacional de Museus) com enfoque na área de documentação e arquivo de museus, e o Isea, ligado às áreas da arte e da tecnologia.

Giselle também ressalta a importância da distribuição de conhecimentos e da publicização daquilo que é produzido por meio da intersecção entre pesquisa, extensão e ensino na universidade pública, e acredita que as discussões trazidas pelas câmeras, pelo projeto e pela exposição são capazes de suscitar debates mesmo fora dos órgãos oficiais ou judiciais: “É uma questão decisiva na história do nosso direito à memória, no exercício da cidadania e do direito ao espaço público, que foi contestado de forma violenta nessa invasão”. Ela vê, nos atos antidemocráticos, uma desconexão entre as ideias de espaço público e bem comum: “Pode-se quebrar tudo, porque subentende-se que o espaço público é terra de ninguém — e se é de ninguém, é meu também. Então, eu vou lá e atiro o relógio no chão, quebro a cadeira, destruo a janela, chuto a porta”.
A coordenadora do projeto e da exposição finaliza frisando a importância de se fazer um estudo sobre eventos como o 8 de janeiro: “Nós damos um tratamento ao 8 de janeiro não como um dia em particular, mas como uma ponta de um iceberg que precisa ser problematizado: a história do autoritarismo brasileiro e suas transformações recentes. E as investigações só confirmam que essa discussão é mais do que urgente”.
A exposição foi inaugurada no contexto do Festival Arquivo Aberto, do AHM, no final de novembro, e transcendeu o festival. Recentemente, segundo Giselle, foi solicitada sua prorrogação: “Consideramos importante que professores e estudantes visitem a mostra agora que as aulas vão voltar. A priori, a exposição permanece pelo menos até o dia 31 de março, que é uma data muito simbólica porque marca o golpe de 1964. Mas isso ainda é passível de atualização”.
A exposição Arquivo e Memória do 8 de Janeiro de 2023, com coordenação de Giselle Beiguelman e curadoria de Amanda Klajner, Ana Roman, Cássia Hosni, Milena Szafir e Renata Perim, está disponível até o dia 28 de janeiro — com previsão de extensão até o dia 31 de março —, de terça a sexta-feira, das 9h às 17 horas, e aos sábados, das 10h às 16 horas, na sala 25 do Arquivo Histórico Municipal de São Paulo, localizado na Praça Coronel Fernando Prestes, 152, próximo à Estação Tiradentes do metrô. Mais informações no site do Projeto Temático Fapesp Acervos Digitais e Pesquisa.
*Estagiário sob supervisão de Marcello Rollemberg

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