Exposição do MAC constrói identidade de artista coreano-brasileira

Mostra fica em cartaz no Museu de Arte Contemporânea da USP até 7 de janeiro de 2024

 10/10/2023 - Publicado há 10 meses     Atualizado: 16/10/2023 as 14:05

Texto: Rebeca Fonseca*

Arte: Gabriela Varão**

Bel Ysoh foi selecionada na segunda edição do Edital de Exposições Temporárias, que realiza as primeiras mostras individuais de artistas em um espaço institucional – Foto: Marcos Santos/Jornal da USP

Fragmentos da individualidade de uma artista visual compõem a exposição Trajetos de Identidade: Bel Ysoh, em cartaz no Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP até 7 de janeiro de 2024. Na mostra, a artista se torna a arte na medida em que investiga o seu próprio eu em pinturas, fotografias, vídeos e cerâmicas.

Bel é brasileira e filha de imigrantes coreanos. “Eu passei muito tempo da minha vida no Brasil, só que eu nunca me senti muito pertencente”, conta a artista que, em 2018, decidiu viajar para a Coreia do Sul. Apesar de já conhecer o país, Bel planejou a viagem para tentar se encontrar. Lá também se sentiu alienígena e descobriu que até sua forma de andar denunciava sua brasilidade.

A partir daí, começou sua investigação. Ao mesmo tempo em que Bel escava sua identidade, ela a constrói, como se torna explícito na sequência de obras Devir de mim mesma (2020). No primeiro ato, Bel rejeita o que há de mais primário na construção de um eu: seu nome de nascença. “Isabel Kwon” é abandonado em detrimento de “Bel Ysoh”, criado a partir das iniciais de sua avó. Segundo a artista, “Kwon” é um sobrenome de tradição patriarcal e significa poder e autoridade.

A ilustração dessa mudança acontece em um vídeo no qual Bel rearranja sua nova identificação depois de rasgar e queimar um pedaço de papel, onde o nome antigo estava escrito. No vídeo do ato seguinte, a artista escreve e reescreve seu novo nome até preencher por completo uma folha de sulfite. Esse papel foi arranjado sobre uma carteira escolar para compor o terceiro ato.

Três obras da série "Devir de mim mesma" - Foto: Marcos Santos/Jornal da USP

O ato final é uma pintura “exprimida da memória da infância”. Se nessa obra faltam traços que possam identificar uma figura humana na tela, eles não poderiam ser mais evidentes em Retrato de uma artista visual (2019), que parece ser o ápice e a materialização da quadrilogia Devir de mim mesma.

Bel explica que se trata de uma referência a uma manifestação artística da década de 1930, durante o Estado Novo, de Getúlio Vargas. “Existia uma lei que proibia imigrantes japoneses de frequentarem espaços políticos e de arte, então eles começaram a pintar autorretratos como forma de se afirmarem”, explica.

Bel aparece com uma máscara no autorretrato, o que ela explica por ter sido feito durante a pandemia de covid-19, quando ela decidiu seguir o caminho das artes visuais. “Desde pequena, sempre busquei ser artista, mas foi só na pandemia que tive coragem de entrar dentro desse mundo”, relata Bel, cuja primeira formação é em Design.

Pinturas "Retrato de uma artista visual" e "Devir de mim mesma ato IV" - Foto: Marcos Santos/Jornal da USP

Em 2017, a artista descobriu “o poder da arte” através do coletivo feminista Mitchossó, onde se reúnem mulheres e pessoas não binárias que não se sentem pertencentes às comunidades brasileira e coreana. O nome do grupo significa “você enlouqueceu”, expressão utilizada em contextos de quebra de comportamentos tradicionais.

Mitchossó é também o nome de um conjunto de obras iniciado pela artista em 2021. Bel conta que pretende pintar os retratos de pessoas que fazem parte do coletivo. A série ainda está em desenvolvimento e a única obra exposta é Júlia (2021), um retrato pouco definido que permite entrever os olhos e boca de uma mulher.

Na mesma parede, a obra Casulo (em decomposição) (2021) é exibida. Trata-se da pintura de uma figura humanoide que aparenta estar derretendo, no meio do caminho para se transformar em algo. A obra foi feita com materiais que alteram sua coloração ao longo do tempo e refletem o nome do quadro.

"Casulo (em decomposição)" ao lado da pintura "Júlia" - Foto: Marcos Santos/Jornal da USP

Júlia, do coletivo Mitchossó, reaparece na videoperformance Convite (2021). Trata-se de um exercício de alteridade entre a artista e outra pessoa que se senta à sua frente. Com referências à cerimônia do chá coreana, a atividade consiste em equilibrar dois copos de cerâmica cheios do líquido em um dispositivo semelhante a uma gangorra. Toda vez que Bel leva o copo à boca, seu convidado repete o gesto e vice-versa.

Bel convida para performance pessoas que mudaram sua vida e que estão acima dela em hierarquias de poder. “Eu convido elas como forma de tentar me equilibrar junto a elas, tentar me identificar com elas.” A comunicação entre as duas pessoas é intensa apesar de silenciosa. Nenhuma palavra é dita, mas é possível sentir a conexão enquanto ambos se esforçam para que nenhum dos copos caia.

A performance foi repetida cinco vezes, sendo que quatro vídeos podem ser assistidos na íntegra. Já o Convite II (à minha mãe) foi organizado em 23 fotogramas que registraram desde a espera de Bel pela sua mãe até o momento em que as duas se abraçam quando terminam de beber o chá.

A investigação da identidade passa também por questionar normas de conduta social de forma explícita, como nas dez fotografias que compõem a fotoperformance inédita Cessão de bons modos, em que Bel abre um caqui — fruta popular na cultura coreana — com as mãos sobre um lençol branco.

A artista relembra que passou bastante tempo da infância na casa de sua avó, na Coreia, durante a época de colheita de caqui. “Eu queria muito amassar e me lambuzar, mas me diziam que eu não podia porque eu era menina”, diz. A obra também evoca discussões sobre sexualidade, um tabu na Coreia, segundo Bel.

As conotações sexuais também podem ser encontradas na primeira fotografia de Para existir (2020) que captura uma pessoa nua com a cabeça coberta por um lençol. A segunda foto registra a situação inversa com o tronco envolvido pelo pano.

Fotoperformance "Cessão de bons modos" e Obra "Para existir" - Foto: Marcos Santos/Jornal da USP

A cor branca do lençol e de outros detalhes das obras representa formas de apagamento para a artista. Bel começou a usar a cor quando visitou um museu na Coreia e conheceu o jarro lua, um vaso de cerâmica tradicional da cultura coreana do século 18 que era símbolo de poder da nobreza e do clero.

No período, um movimento artístico passou a revestir os artefatos com uma camada de pasta de porcelana branca. A descoberta fez Bel questionar o motivo da escolha da cor branca. “O branco na cultura ocidental é sempre ligado à pureza, ao minimalismo, à limpeza, mas eu acredito que em excesso ele gera incômodo e opressão”, defende e critica também as políticas da branquitude características do Brasil.

A técnica da cerâmica dos vasos está presente na série Dal Han-ali / Jarro Lua, iniciada em 2019. Os artefatos são feitos a partir da junção de duas semi-circunferências de porcelana. A artista brinca com o procedimento para criar jarros de diferentes tamanhos e dar uma identidade única a cada peça.

Em cada um dos jarros foi aplicada uma camada de pasta de porcelana que descasca e também garante que uma peça seja diferente da outra. Parte do material descascado foi amontoado em uma pequena pilha junto aos jarros. A Cabeça nº 1, feita com as mesmas técnicas de cerâmica, também se une aos artefatos.

Série "Dal Han-ali / Jarro Lua" e escultura "Cabeça nº 1" - Foto: Marcos Santos/Jornal da USP

O branco está presente ainda em Manifeste-se (2023), uma parede reservada para intervenções visuais do público com gizes de cera pretos. O espaço é uma forma de incluir a representação de outras identidades no trajeto de Bel e também de criticar o uso do branco, que é apagado conforme rabiscos são feitos.

O último vídeo que faz parte da exposição está sendo projetado em uma das paredes do espaço. A performance foi gravada em 2022, quando Bel arrastou uma grande bola de argila pelas ruas do centro de São Paulo. Rola bosta acompanha a artista por 13 minutos na árdua e repetitiva tarefa. O nome é referência ao inseto homônimo que enterra as fezes de outros animais para depositar seus ovos dentro delas e proteger suas larvas.

Em determinado momento do vídeo, Bel para e se senta sobre o material e em outra ocasião, aceita a oferta de um transeunte para ajudá-la a carregar o objeto. “Esse dia foi muito divertido. Eu sentia que muitas pessoas paravam e ficavam olhando, mas elas estavam indo trabalhar e a única que me ajudou foi uma pessoa em situação de rua, que é alguém que tem tempo para dar”, relata a artista.

Ao final, o material tem um formato diferente da esfera original e está marcado pelas texturas do solo, como se sua identidade tivesse sido formada pela rolagem. A Pedra (2022) está exibida ao lado da projeção junto com as luvas usadas por Bel.

A exposição Trajetos de Identidade: Bel Ysoh pode ser visitada até 7 de janeiro de 2024, de terça a domingo, das 10 às 21 horas, no Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP (Avenida Pedro Álvares Cabral, 1.301, Ibirapuera, em São Paulo). Entrada gratuita. Mais informações podem ser obtidas no site do MAC.

* Estagiária sob supervisão de Roberto C. G. Castro

** Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado


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