Naquele lugar, a guerra tinha morto a estrada.
É com essa poesia e violência que começa Terra Sonâmbula, primeiro romance do escritor moçambicano Mia Couto. Sentença de abertura que é o próprio resumo do livro, uma obra nascida dos escombros da guerra civil em Moçambique e da esperança de paz. Terra Sonâmbula integra a lista de leituras indicadas para o vestibular da Fuvest (Fundação Universitária para o Vestibular), que seleciona os candidatos aos cursos da USP.
Nessa estrada morta avistamos duas figuras, um menino e um velho, sobreviventes em meio a uma guerra civil que varreu Moçambique de 1977 até 1992. Famintos, sem rumo ou esperança, encontram pelo caminho um ônibus destroçado, corpos carbonizados e um cadáver cravejado de balas próximo a uma mala. Dentro dela, um conjunto de diários que se tornarão companhia da dupla nas noites angustiantes ao redor do ônibus abandonado.
Para os leitores de Terra Sonâmbula, é o início de um encantamento produzido pela dinâmica de duas histórias: a da dupla Muidinga e Tuahir e a de Kindzu, o personagem narrador dos diários. É também a entrada para o desenho de um país entre a destruição já consumada e a necessária reconstrução ainda por chegar.
“É um quadro bem desolador, para não dizer trágico”, comenta Mário César Lugarinho, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, sobre o retrato que Mia Couto apresenta de Moçambique. “Foi uma guerra fratricida que chegou ao termo porque não havia mais o que e pelo que combater. As condições geopolíticas da Guerra Fria, que deram início a essa guerra civil, haviam sido desbaratadas no final dos anos 1980. Já não havia apoio possível para os dois lados da guerra, toda a infraestrutura do país estava comprometida.”
É nessa situação de impasse, quando todos os lados finalmente tinham se perguntado por que continuar uma guerra na qual não haveria mais vencedores, que Terra Sonâmbula, publicado em 1992, se insere. “O livro de Mia Couto tenta falar sobre esse princípio, ou esse fim”, afirma o professor.
A viagem pelas páginas da obra, de fato, leva o leitor para uma guerra que já se deu. É a narrativa de um intervalo, refletindo o próprio período da publicação do romance, com acordos de paz firmados e expectativas de eleições democráticas. Uma esperança entre o fim de uma era e o começo de outra.
“A narrativa fala das ruínas que essa guerra deixou, dos escombros que ficaram pelo país e com os quais a população tem que lidar”, explica Lugarinho. “E não só os escombros materiais, mas também os espirituais.”
Como faria em trabalhos futuros, Mia Couto explora em Terra Sonâmbula o que o professor chama de uma transcendência “típica” do povo moçambicano. É a relação com o mundo do sonho, do além e do fantástico. Contudo, se comumente esse universo aparece na literatura ocidental como um espaço de revelação e auxílio aos seus heróis, aqui essa transcendência está seriamente comprometida para que represente qualquer ajuda.
“Esse mundo transcendente está em escombros”, analisa Lugarinho. “Mesmo reconhecendo a importância da relação da cultura moçambicana com essa transcendência, Mia Couto aponta que esse mundo transcendente não consegue oferecer sentido. Também está arruinado, porque a guerra foi tão profunda que arruinou a relação do próprio povo moçambicano com suas tradições.”
O autor não se propõe, contudo, a uma obra pessimista. O desafio é justamente operar a recriação de todo esse mundo devastado. É ressuscitar a estrada. Metáfora que percorre toda a narrativa, a estrada é o caminho que precisa ser pensado. “Para onde a estrada aponta, ninguém sabe, até porque é preciso rever todo o caminho feito, é preciso tomar novamente o ponto do fim como um ponto de partida”, diz o docente.
Tarefas que encontram, em Terra Sonâmbula, sua realização justamente através da própria literatura. O movimento determinante desse processo, e espinha dorsal da narrativa, é a dinâmica estabelecida entre a criança Muidinga, o velho Tuahir e os diários de Kindzu. Em um esquema inusitado, chave da direção imaginada por Mia Couto, é Muidinga quem lê para Tuahir os relatos dos cadernos.
“É a criança que vai contar a história para o homem mais velho, sendo que, na tradição africana, quem conta as histórias são os mais velhos para os mais novos, porque eles são os repositórios da memória”, explica o professor. “No mundo que se apresenta em Terra Sonâmbula, a memória dos mais velhos não é significativa e, portanto, é preciso que os mais novos expliquem aos mais velhos esse conhecimento.”
Isso porque as tradições estão em suspenso, mutiladas pela guerra e precisando de redesenhos, dinâmica e atualizações. A leitura, instrumento dominado pelos mais jovens, é assim a ferramenta para a inversão de papéis. É preciso reconhecer que a tradição vacilou. Ao mesmo tempo, é necessário que os mais novos instrumentalizem os mais velhos em sua própria memória. É o que Muidinga faz ao ler os diários para Tuahir, dando a partida em um movimento que tece os primeiros fios que fazem a estrada existir.
Ressuscitar a estrada, acordar os mortos, reviver a memória e romper o sonambulismo – as palavras mágicas de Mia Couto para uma nação erguida da guerra.
O encantamento da escrita
Para o professor Mário César Lugarinho, Terra Sonâmbula é um dos livros mais encantadores da língua portuguesa e Mia Couto, o melhor discípulo de Guimarães Rosa. “O efeito imediato da leitura é o encantamento”, comenta. “Somos literalmente enfeitiçados pela leitura. Não há leitor de língua portuguesa que consiga passar incólume por ela. Esse encantamento, muitas vezes, consegue amenizar o horror da destruição.”
É graças a uma linguagem extremamente poética que o autor faz do horror da guerra civil algum encantamento. O docente explica que Mia Couto lança mão de recursos da poesia lírica – notadamente o alargamento do sentido das palavras, de sua semântica – para instigar o leitor a possibilidades imprevistas de leitura.
Como isso acontece, exatamente? É a primeira sentença da obra, mais uma vez, que oferece a chave: Naquele lugar, a guerra tinha morto a estrada. “O inusitado, que aparece nesse primeiro período e vai percorrer toda a narrativa, é nos fazer pensar em uma ampliação da semântica, da capacidade de significação dessas palavras. Como a guerra tinha morto a estrada? Só entendemos isso no sentido metafórico”, explica o professor.
As possibilidades da resposta, os referenciais da metáfora, estão nas próprias palavras. O que estrada pode significar? Qual é a potencialidade dessa palavra, estrada, para que ela possa ser morta? Qual sua relação com a palavra guerra?
Lugarinho explica que é no próprio processo de leitura, de maneira intuitiva, que vamos criando conexões e tentando decifrar as metáforas, buscando completar um sentido que, de acordo com o professor, sempre continua aberto. “Não se completa porque estamos diante de uma obra que se abre para as interpretações, ela não dá uma verdade prévia”, completa o professor.