Da implantação do Plano Real até o envolvimento em importantes questões ao redor do mundo

No livro Memórias, o embaixador Rubens Ricupero relembra sua rica trajetória na diplomacia brasileira

 Publicado: 21/06/2024     Atualizado: 24/06/2024 as 16:33

Texto: Luiz Roberto Serrano

Arte: Simone Gomes

O livro Rubens Ricupero, Memórias traz um relato das andanças do embaixador pelo mundo – Foto: Divulgação

“Cheguei perto, assim, de realizar a essência da vocação diplomática, que consiste na paixão pela diversidade das culturas e na compaixão pelos sofrimentos dos pobres e fracos. Encontrei na ONU e na UNCTAD maneira de viver o lema que tomei emprestado do poeta árabe Gibran, “A Terra é minha pátria, a humanidade é minha família”
(Memórias, do embaixador Rubens Ricupero, página 612).

O embaixador Rubens Ricupero costuma fazer palestras no lançamento de seus livros. Foi assim, mais uma vez, no lançamento de seu novo livro, Memórias, um cartapácio de 710 páginas, em que conta e reflete sobre sua longa vida pessoal e profissional. A palestra e o lançamento, no dia 15 de junho, lotaram um dos auditórios da Japan House, na Avenida Paulista, em São Paulo, e a fila de autógrafos, ao fim de sua fala, dava voltas na sala.

Na obra, Ricupero relembra, aos 87 anos, seus antepassados italianos, fala de seus familiares, comenta a política brasileira desde a sua juventude, relata as vastas andanças pelo mundo em função de sua carreira diplomática e dedica cinco capítulos à função pública de maior visibilidade que desempenhou, a de ministro da Fazenda no lançamento e meses iniciais do Plano Real, que gerou a moeda, o real, que desde 1994 goza de uma estabilidade rara na economia brasileira.

O Plano Real

Quando ministro do Meio Ambiente no governo Itamar Franco, tratando de uma questão que começava a ganhar espaço no mundo, Ricupero, segundo seu relato, ouvia referências de que poderia substituir Fernando Henrique Cardoso na pasta da Fazenda, pois este se candidataria à Presidência da República. Eis seu relato sobre a volta de um compromisso sobre meio ambiente no Rio de Janeiro: “Eu me preparava para voltar a Brasília, Miriam Leitão, minha amiga desde os tempos em que cobria o Itamaraty na década de 1970, pediu para me acompanhar no trajeto até o Galeão. Na conversa, confirmou que Fernando Henrique Cardoso finalmente tomara a decisão de se candidatar à Presidência nas eleições de outubro daquele ano. Ela não tinha dúvida que eu o sucederia. Tive de admitir que ela sabia muito mais do que eu.”

Itamar Franco e Ricupero, no lançamento do Plano Real – Foto extraida do livro: Rubens Ricupero, Memórias

Em quatro capítulos do extenso e prolífico livro, da página 473 à 545, Ricupero relata seu duro e desafiante desempenho no cargo de ministro da Fazenda naquele momento crucial da economia brasileira, durante o qual realizou um esforço hercúleo, inclusive físico, para explicar à população brasileira os méritos e os objetivos do Plano Real, tarefa excepcionalmente bem sucedida, até que… deu-se o escorregão.

No intervalo de uma entrevista para um jornal da TV Globo, conduzida pelo jornalista Carlos Monforte, comentando sobre sua performance, Ricupero, até então irreparável na função, disse: “Eu não tenho escrúpulos. O que é bom a gente fatura, o que é ruim a gente esconde”. Apesar da entrevista estar fora do ar, a transmissão, presumivelmente só transmitida para os estúdios da emissora no Rio de Janeiro, foi captada por antenas parabólicas no interior do País. Explodiu na imprensa, levando à demissão de Ricupero, substituído pelo ex-governador do Ceará, Ciro Gomes.

No longo relato que faz no livro sobre o episódio, Ricupero diz, à certa altura: “O que me faz sofrer é que I made a fool of myself, isto é, fiz papel de tolo, ao me deixar levar pela presunção e pela vaidade. Fui, sim, culpado do pecado de hubris, a desmesura, o esquecimento das limitações pessoais, a pretensão de ser mais do que era. Como no Poema em linha reta de Fernando Pessoa/Álvaro de Campos, todos querem ser príncipes na vida, ninguém quer ser ridículo, e foi isso que fui ao longo da conversa. Gostaria de apagar de minha vida aqueles dezenove minutos, mas nunca atribuí a ninguém a responsabilidade pelo que sucedeu a não ser a mim mesmo.”

É uma dura reflexão por parte dele, mas o fato é que a colaboração de Ricupero para o sucesso do lançamento do Real foi inestimável.

Guimarães Rosa

No livro, Ricupero relata suas vacilações sobre que formação universitária deveria buscar, até que decidiu cursar a Faculdade de Direito da USP, na qual teve mais decepções do que encantos, destacando-se entre os encantos os professores Goffredo da Silva Telles Júnior, em Introdução ao Direito, Basileu Garcia, em Direito Penal, e Miguel Reale, em Filosofia do Direito. Mas foi decisivo em seu destino o amigo do primeiro ano de Direito, Arrhenuis Fábio Machado de Freitas, que depois do segundo ano da escola prestou concurso no Itamaraty. Informado pelo amigo sobre a nova carreira, decidiu-se finalmente por prestar exames na casa da diplomacia brasileira, nos quais foi bem-sucedido. Corria 1958.

Num livro de 710 páginas, em que relata uma extensa e bem-sucedida carreira diplomática, além de fatos da vida pessoal, é preciso escolher o que destacar em uma resenha. Pois aqui vai uma observação de Ricupero sobre um diplomata histórico, mas mais conhecido como romancista, o consagrado Guimarães Rosa. Nosso autor transcreve nota escrita por Guimarães Rosa, então chefe da Divisão de Fronteiras do Itamaraty, ao seu tradutor italiano Edoardo Bizzari. Dizia Rosa, na nota: “Pois você sabe que sou aqui Chefe do Serviço de Demarcação de Fronteiras e deve ter acompanhado nos jornais o palpitante caso de divergência com o Paraguai, o assunto de Sete Quedas […]”, relatou. “Foi uma absurda e terrível época […] fora e longe de tudo o mais, nem me lembrava que era Guimarães Rosa, não respondi às cartas das editoras estrangeiras, perdi dinheiro, sacrifiquei importantes oportunidades, adoeci mais, soterrei-me.” O comentário de Ricupero sobre o teor da nota: “Apesar de haver realizado a tarefa com impecável consciência, no fundo (Rosa) a considerou um estorvo ao seu trabalho de escritor”.

Santiago Dantas

“Sem reconciliação em torno de um programa mínimo para fazer o parlamentarismo funcionar e preservar o que sobrou da Constituição fragilizada, sem controle da inflação para impedir a exacerbação dos conflitos distributivos, a sociedade vai se fragmentar em grupos polarizados e violentos . Nessa hora, os militares intervirão. Não será, como no passado, uma pausa para convocar eleições. Desta vez, as Forças Armadas se prepararam para permanecer no poder por muito, muito tempo! Será uma experiência inédita, que o Brasil jamais conheceu até agora.”

São palavras do ministro das Relações Exteriores, Santiago Dantas, citadas por Ricupero. Corria o governo parlamentarista de João Goulart, em que o mineiro Tancredo Neves foi o primeiro ministro, entre setembro de 1961 e julho de 1962. Infelizmente proféticas àquela altura, ainda antes do golpe militar de 1964. No livro, Ricupero derrama-se em elogios a Santiago Dantas e revela seu fascínio no primeiro encontro com o então chanceler: 

Santiago Dantas, chanceler admirado por um Ricupero no seu começo de carreira – Foto: Autor Desconhecido – Arquivo Nacional – wikipedia – Domínio público

“Foi a impressão mais forte que recebi em toda a minha vida do poder da palavra como pensamento vivo e concreto, da força do verbo que organiza e explica o mundo e a história por meio da razão e da inteligência.” Infelizmente, quando o conciliador Tancredo Neves e seu ministério parlamentarista pediram demissão para candidatar-se às eleições de 1962, Santiago Dantas foi recusado pelo Congresso para sucedê-lo…

As referências a Guimarães Rosa e Santiago Dantas, dois grandes nomes ligados ao Itamaraty, são rápidas citações da extensa e importante caminhada de Ricupero pela diplomacia e pelo governo brasileiros. Os cargos mais visíveis ao grande público foram o de ministro da Fazenda, no decisivo momento do Plano Real e, anteriormente, o de ministro do Meio Ambiente, quando o tema começava a ganhar maior relevância no Brasil e no mundo. Mas ele ocupou postos importantes da diplomacia brasileira, como a Embaixada do Brasil nos EUA e na Itália, bem como em entidades internacionais como secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), por nove anos e, simultaneamente, sub-secretário geral da Organização das Nações Unidas e presidente do Comitê de Comércio e Desenvolvimento do Acordo Geral de Tarifas e Comércio. Uma carreira nacional e internacional de extrema relevância diplomática, envolvendo sempre temas políticos e econômicos, com significativas nuances culturais e viagens pelo mundo. Essa longa vivência está expressa, em detalhes, em Memórias. Vale transcrever o parágrafo que está no capítulo Livros que escrevi, batalhas políticas de que participei, através do qual expressa sua linha de pensamento:

Fala-se muito na superação da dicotomia direita versus esquerda. Pode ser verdade e desejável do ponto de vista da libertação das ideologias absolutistas que tantas ruínas deixaram no século 20. Mas é preciso ter em mente o que dizia Norberto Bobbio: a divisão crucial em política continua a opor dois campos. De um lado, os que julgam impossível reduzir a desigualdade. Do outro, os que acreditam na capacidade dos seres humanos de aperfeiçoar a sociedade, a fim de diminuir a desigualdade tanto quanto possível. Enquanto nosso país estiver na lista dos mais desiguais, seremos obrigados a repetir com Giacomo Leopardi: “Se queremos algum dia despertar e retomar o espírito da Nação, nossa primeira atitude deve ser não a soberba nem a estima das coisas presentes, mas a vergonha”.

Memórias é um excelente roteiro profissional – e também de vida – para os diplomatas brasileiros de hoje e de amanhã. Além de uma instrutiva leitura para quem deseja entender os desafios embutidos nas relações do Brasil com o mundo.

Ricupero entrega ao então secretário-geral da ONU, Kofi Annan, um estandarte oferecido pela escola de samba Mangueira - Foto extraida do livro : Rubens Ricupero Mémórias

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