Coletivo coloca em cena reflexões sobre o sono e o sonhar

Inspirada em cosmologias indígenas, peça em cartaz no Teatro da USP explora o valor do sonho na sociedade contemporânea

 29/05/2024 - Publicado há 1 mês

Texto: Lara Paiva*
Arte: Beatriz Haddad**

Peça "Um Jaguar por Noite" fica em cartaz até 9 de junho - Foto cedida pelo coletivo
Peça "Um Jaguar por Noite" fica em cartaz até 9 de junho - Foto cedida pelo coletivo

Inspirado na cosmologia de povos ameríndios, o Coletivo 28 Patas Furiosas – grupo de teatro paulistano criado em 2013 – se debruça sobre a ausência de sono de qualidade na peça Um Jaguar por Noite, em cartaz no Teatro da USP (Tusp), no Centro MariAntonia, até 9 de junho. Nela, os personagens, reunidos numa casa para celebrar algo de que não se lembram mais, refletem sobre as dificuldades do sono nas cidades e buscam se lembrar de sonhos de que também já se esqueceram. Com o passar do tempo, o encontro passa a ganhar dimensões irreais e tanto os atores como a plateia são transportados a um plano fantasioso e repleto de símbolos.

Para compor a peça, o coletivo pesquisou com pajés, lideranças indígenas e antropólogos a temática do sono e dos sonhos. Para os povos ameríndios, os sonhos possuem um significado coletivo, com valor central na vida coletiva. Eles podem trazer recados para as comunidades e reflexões sobre a vida. Integrante do elenco de Um Jaguar por Noite, a atriz Sofia Botelho explica que a ideia surgiu ao refletirem como seria para a nossa sociedade se compartilhássemos nossos sonhos. A questão destacada, entretanto, foi a ausência do sono e do sonhar. O estudo mergulhou nas cosmologias xavante, kamayurá e guarani, em que sonhar é uma maneira não só de coletivizar uma experiência, mas também de se transformar e transitar entre mundos.

Wagner Antonio, integrante do 28 Patas Furiosas e responsável pela encenação, cenário e luz da peça, aponta as diferentes concepções dos sonhos. Para nós – afirma -, eles são algo banal e cotidiano, e a reflexão, particular, é terapêutica, enquanto para alguns povos indígenas são elementos centrais na cultura e pertencem à coletividade. Nossa indiferença ao sono e aos sonhos seria sintomática do nosso distanciamento em relação à própria coletividade. Wagner Antonio vê o teatro do coletivo como uma forma de remediar esse vício. “O teatro pode ser nossa tecnologia do sonho, um lugar onde nos juntamos de forma coletiva, presencial e ritualística para refletir sobre nossos sonhos e, de alguma maneira, mexer com a realidade de cada pessoa que vem assistir”, reflete.

Já o título Um Jaguar por Noite brinca com a conhecida frase “matar um leão por dia”, adaptada para fazer referência ao elemento indígena da peça. “Assim como é preciso ter coragem para encarar o dia, é preciso ter coragem para enfrentar tudo o que nos impede de ter uma boa noite de sono e de agir através dos sonhos”, acrescenta Antonio. 

A temática da peça partiu de Valéria Rocha, integrante do coletivo, que estudava com o antropólogo Arthur Iraçu os cantos coletados em sonhos pelo povo Xavante. Outros integrantes do 28 Patas Furiosas apresentaram diferentes textos e vivências e, a partir do diálogo entre o grupo, a peça foi tomando forma. Uma das principais referências foi o neurocientista e biólogo Sidarta Ribeiro, autor do livro O Oráculo da Noite – A História e a Ciência do Sonho (Companhia das Letras, 2019), que foi lido e estudado em conjunto. O autor do texto é Tadeu Renato, colaborador de longa data do coletivo. 

Sofia Botelho explica que a pesquisa usou como ponto de partida três palavras, ou três “Es”: encantamento, embrutecimento e esquecimento. “Vivemos em uma sociedade embrutecida. As coisas são só coisas e são concretas. A pesquisa sobre o sono e os sonhos traz forças de lugares que não estamos acostumados a olhar”, declara. “Olhamos para as coisas de maneira encantada só se for um assunto urgente. Se não, sempre veremos uma árvore como um objeto nosso, que pode ser derrubado, ou os rios como algo que pode ser poluído”, diz.

A linguagem experimental do 28 Patas Furiosas mescla as artes cênicas com as artes visuais, incorporando a luz, o espaço e a cenografia como elementos cruciais. “Estamos acostumados a ir ao teatro e ver o ser humano no centro da cena. Sempre que tem um objeto ou matéria, ele está ali para servir o humano, submetido ao seu desejo”, destaca Sofia. “Já as artes visuais têm a matéria como força principal, e tentamos colocá-la numa posição de igualdade com o ator.” Na peça, as coisas falam tanto quanto os atores. Os painéis de LED no palco, chamados de painéis oníricos, também são protagonistas da ação. Programados individualmente, criam atmosfera e ritmo por meio de cores e luzes. Operados pelos integrantes Dimitri Luppi e Felipe Fly, eles acompanham os movimentos dos atores com uma linguagem das artes visuais. O objetivo é que a peça envolva os sentidos dos espectadores – algo presente desde os primeiros trabalhos do coletivo, que contam com a estrutura onírica para que a ação não seja simplesmente racionalizada, mas também experienciada. “Buscamos acabar com a hierarquia entre corpo, espaço e matéria e criar um trânsito entre essas forças a ponto de que possamos confundi-las e explorar as subjetividades”, explica Wagner Antonio.

Ouça no link abaixo o boletim Dica Cultural, da Rádio USP, sobre a peça Um Jaguar por Noite, produzido e apresentado pela jornalista Heloisa Granito.

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A investigação do coletivo sobre o mundo do sono e dos sonhos começou em 2020, quando, escolhidos pela Lei de Fomento ao Teatro da cidade de São Paulo, o grupo se debruçou sobre a temática. Na ocasião, ele criou uma instalação-happening, a Parabólica dos Sonhos, que, de forma interativa entre atores e plateia, explorava os sonhos do público. Ela foi apresentada no Tusp em 2022, como uma performance em que o espectador estava livre no espaço para se relacionar com as coisas e relatar seus sonhos. O 28 Patas Furiosas foi contemplado novamente em 2023, surgindo então Um Jaguar por Noite.  A peça faz parte de um conjunto de obras compostas no âmbito do projeto Dos Sonhos à Vigília: Pesquisa, Espaço e Território em 10 anos de Trajetória do 28 Patas Furiosas.

 

O 28 Patas Furiosas surgiu, em 2013, da reunião de atores e atrizes egressos de diferentes escolas de artes cênicas, como a Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, o Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) e a Escola Livre de Teatro. Além de criar suas próprias peças, o grupo também promove festivais e aluga sua sede, o Espaço 28, no bairro do Bom Retiro, em São Paulo, para ensaios. “Vemos o teatro como um lugar onde podemos coletivizar reflexões de forma onírica e de experimentar com a linguagem, posicionando a gente dentro de uma discussão político-social”, explica Wagner Antonio. “Aprendemos que os sonhos não são uma fantasia ou um desejo distante. Nosso mundo não opera os sonhos. Os sonhos é que operam a realidade.”

A peça Um Jaguar por Noite, do coletivo 28 Patas Furiosas, fica em cartaz até 9 de junho, às sextas-feiras e sábados, às 21 horas, e aos domingos, às 18 horas, na sala do Teatro da USP (Tusp) no Centro MariAntonia da USP (Rua Maria Antonia, 294, Vila Buarque, em São Paulo, próximo às estações Santa Cecília e Higienópolis-Mackenzie do Metrô). Grátis. Os ingressos podem ser retirados na bilheteria com uma hora de antecedência. Mais informações estão disponíveis no site do Tusp

*Estagiária sob supervisão de Roberto C. G. Castro

**Estagiária sob supervisão de Simone Gomes


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