Montagem sobre foto: Cleber Siquette/Gustavo Xavier

Texto: Gustavo Xavier
Diagramação: Cleber Siquette

03/03/2021

Ademilde Fonseca, nascida no Rio Grande do Norte em 4 de março de 1921 – portanto, há exatos 100 anos -, foi uma cantora que dominou a arte da interpretação de vários gêneros brasileiros. Mas foi com o choro que ela mais se notabilizou e ganhou admiração de músicos e ouvintes. Suas interpretações virtuosísticas chamaram a atenção desde sua primeira gravação, em 1942, até as vésperas de sua morte, ainda na ativa, em 2012, aos 91 anos.

Tico-Tico no Fubá, composta por Zequinha de Abreu, já era conhecida em sua versão instrumental. Mas a letra de Eurico Barreiros ganhou destaque quando Ademilde Fonseca deixou o mundo da música estupefato com sua agilidade vocal, encaixando sílabas em exíguos milissegundos que pinicavam os ouvidos como o pássaro esfomeado que dava nome à composição.

Ela não era a primeira a cantar choro, gênero que já foi muito defendido como exclusivamente instrumental. Carmem Miranda, Aracy Cortes e Aracy de Almeida, entre outras, já tinham feito isso antes. Mas sua gravação de Tico-Tico no Fubá, em 1942, impressionou tanto que “ela ficou identificada com o choro e os autores passaram a compor pensando nela. No caso dos choros instrumentais que ganhavam letra, essas letras eram feitas para ela cantar. Por isso tudo funcionava tão perfeito”, conta o cavaquinista e pesquisador Henrique Cazes.

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“Ademilde foi única. Ela combinava musicalidade, preparo e coragem para enfrentar maratonas de notas em melodias de choro. Ela estava no lugar certo e na hora certa: a fase em que o choro brilhou no rádio, ou seja, as décadas de 1940 e 50”, avalia Cazes.

Depois, na década de 1970, o choro voltou à tona, em parte por ser considerado um símbolo de resistência cultural à ditadura. E Ademilde frequentou as apresentações, inclusive em espaços emblemáticos como o Teatro de Arena. Foi nesse momento que ela recebeu composições de uma nova geração de músicos, como Paulinho da Viola, Martinho da Vila e a dupla João Bosco e Aldir Blanc. Esta fez em sua homenagem Títulos de Nobreza (Ademilde no Choro), gravada por ela em 1975.

Molde vocal preciso

“Tudo o que a gente tem dentro da boca, o tamanho dos dentes, o tamanho da língua, da arcada, tudo isso exerce influência sobre a qualidade, o timbre e a articulação. A rapidez, a agilidade da Ademilde tem a ver com a personalidade dela, sua musicalidade, assim como com sua saúde vocal. Ela devia ter um aparelho fonador todo certinho, um bom tamanho de laringe, de cavidade oral e da língua”, analisa Beatriz Raposo, que é linguista especializada em fonética pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

Beatriz Raposo, que estuda aspectos da fala e do canto, confirma que Ademilde Fonseca é a referência de quem canta rápido e com qualidade no Brasil. “Ela se destaca das outras cantoras pela esperteza, por uma alegria, uma exatidão de cantar rápido, mas com a articulação muito boa de cada sílaba.”

Ademilde Fonseca e Daniela Rezende - Foto: Arquivo Pessoal da Pesquisadora
Ademilde Fonseca e a professora Daniela Rezende – Foto: Arquivo pessoal de Daniela Rezende

Em relação aos outros instrumentos musicais, o instrumento vocal é mais complicado, embora mais natural. “Você tem que ajustar processos articulatórios que estão acontecendo na laringe com processos articulatórios na cavidade oral”, explica Beatriz. Há vários desafios a serem superados, especialmente no caso do canto rápido e preciso como o de Ademilde Fonseca. Por exemplo, o desafio das consoantes, que facilmente podem desafinar o canto. Consoantes como “t” e “p”, principalmente, acabam por interromper a passagem de ar e fecham o trato vocal. O ar para e as pregas vocais se distanciam. Uma das consequências é a possibilidade de desafinar. É difícil não se atrapalhar com as consoantes e, numa música rápida, elas estão se sucedendo em espaços muito curtos. Além disso, há vogais, como “e”, que também são difíceis de afinar. “Esses detalhes fonéticos estão o tempo todo tentando derrubar a melodia. E aí você ouve a Ademilde e parece que ela já nasceu sabendo tudo isso”, constata Beatriz.

Daniela Rezende é professora de canto na Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e autora do livro A Voz e o Choro – Aspectos Técnicos Vocais e o Repertório de Choro Cantado como Ferramenta de Estudo no Canto Popular. O livro é resultado de sua dissertação de mestrado apresentada em 2010 na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e foi fortemente motivado pela impressão da autora em relação à performance de Ademilde Fonseca, com quem se encontrou e entrevistou para a pesquisa. Ela conta que Ademilde nunca realizou estudos formais em música. Para Daniela, a “Rainha do Chorinho” aprendeu muito por convivência e escuta, além da prática e da intuição. Aliás, o apelido se consolidou a partir de sua gravação de Apanhei-te Cavaquinho, composta por Ernesto Nazareth e Darci de Oliveira, de execução ainda mais rápida do que Tico-Tico no Fubá.

Mas, além da rapidez e precisão de Ademilde, Daniela Rezende destaca outros vários aspectos de sua excelência. “O que mais me impressionou quando estudei a Ademilde foram os choros lentos. Ela mantém o mesmo timbre vocal e qualidade de som, tanto no grave quanto no agudo, indo de um para o outro sem quebra”, revela.

A interpretação de Sonoroso, composta por K-Ximbinho e Del Loro, foi a que mais chamou a atenção de Rezende. Trata-se de uma música de extensão muito grande. Ou seja, as notas não se situam numa faixa média mais ou menos próxima. Pelo contrário, o percurso entre as notas mais agudas e as mais graves é bem longo, exigindo muito de quem a interpreta. “Esse choro me impressionou muito, porque ela faz essa transição de agudo para o grave como se estivesse cantando ‘do-ré-mi-fá’.”

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Sonoroso é cheio de sobe e desce e ela canta isso como se estivesse andando na praia”, brinca Daniela Rezende. “Ela tem muita musculatura, muito treinamento do trato vocal para fazer essas emissões parecerem tão fáceis.”

Daniela lista uma série de dificuldades enfrentadas para se cantar músicas como as que Ademilde interpretava tão bem. Entre os desafios estão os saltos entre passagens de registro, que são modos distintos como o corpo emite sons e a localização predominante da vibração – peito, cabeça. E ela fazia essas passagens limpidamente. Outra das dificuldades está na necessidade de emitir frases longas e sustentar notas durante bastante tempo. “Os desafios do choro não são apenas a agilidade, mas também essa capacidade respiratória para as notas longas. Porém, quem desenvolve bem a agilidade indiretamente trabalha para fazer a sustentação depois. Porque a agilidade trabalha com o diafragma, com uma musculatura que, depois de desenvolvida, você consegue usar também para a sustentação.”

Molde vocal preciso

Metacanção para Ademilde

A foneticista Beatriz Raposo destaca a canção O Que Vier Eu Traço como uma música que expõe brilhantemente o perfil de Ademilde Fonseca. Composta por Alvaiade e Zé Maria, a canção é como a própria expressão da cantora.

O Que Vier Eu Traço é toda metalinguística. Trata do próprio processo musical. Como se fosse a Ademilde dizendo de si mesma e de sua característica artística.

“Quem não tiver o ritmo na alma
E nem cantando com mais calma
Faz o que eu faço”

“É como se ela dissesse: ‘Olha, eu sou rápida mesmo, eu sou boa cantando rápido, e mesmo quem tiver mais calma não vai fazer o que eu faço’”, comenta Beatriz Raposo.

“Samba-canção, samba de breque,
Batucada
Para mim não é nada
O que vier eu traço”

“Qualquer dificuldade ou desafio é ultrapassado pelo dom ou talento da cantora. E isso é muito verdade para a Ademilde Fonseca”, continua Beatriz.

“Não tenho veia poética
Mas canto com muita tática”

Sobre esses versos, a foneticista destaca que, no caso, “a cantora não precisa expressar-se pela poesia. Basta ter seus recursos especiais para cantar, que a letra resume em ‘cantar com muita tática’. É como se ela dissesse: ‘Meu lugar é lugar de cantora’.”

“Não faço questão de métrica
Mas não dispenso a gramática”

“Aqui ela se refere ao tamanho dos versos e sua organização temporal, que dão ritmo à poesia. Em um momento pós-romântico e modernista, fica bem falar que não se preocupa em cantar com versos metrificados. No entanto, a gramática, ou seja, aquilo que é elemento sine qua non da língua, isso tem de ser preservado. Como se ela dissesse: ‘Eu não estou cantando só com a minha tática, com a minha articulação, com a minha precisão, com a minha agilidade articulatória. Eu estou cantando com a nossa língua, algo que faz sentido’”, completa Beatriz.

“Não me atrapalho na música
Nem mesmo sendo sinfônica
Procuro tornar simpática
A minha voz microfônica”

“E, ao final, o termo ‘microfônica’ é um elemento interessantíssimo nessa metalinguagem de que se constitui a letra da canção. Faz referência a um recurso tecnológico de amplificação da voz e meio fundamental para sua gravação. Tem uma modéstia aí. Mas também tem aquela ênfase: ‘Lembrem que eu tenho tática. Mesmo que a tecnologia não seja perfeita, eu dou conta disso’.”

Ademilde Fonseca - Foto: Arquivo pessoal de Daniela Rezende

A seiva do canto

Esse prazer em dar conta dos desafios musicais foi constatado por Daniela Rezende quando esteve com Ademilde Fonseca. Aquele encontro deixou uma impressão forte na pesquisadora. “Quando eu a entrevistei, ela estava bem velhinha e tinha uma deficiência pulmonar gravíssima. Teoricamente, ela não conseguiria cantar. Mas ela tinha mais dificuldade de falar do que de cantar. Na entrevista ela cantou um pouquinho e, na hora de cantar, parece que acessava um outro registro do funcionamento corporal e a voz ficava à disposição.”

Impressionada com a capacidade de Ademilde de mobilizar seus recursos para cantar, mesmo com as limitações da idade, Daniela destaca a alegria de viver que preenchia o ambiente.

Essa disposição a acompanhou até a véspera de sua morte, quando participou de um programa de TV. O cavaquinista Henrique Cazes era um dos músicos que tocaram com ela na ocasião. “Eu, o Luís Filipe de Lima e o Beto Cazes gravamos o programa Sarau do Chico Pinheiro, com a Ademilde, na Globonews. E aconteceu uma coisa curiosa. Depois da última música, ela levantou e foi dar um beijo em cada músico. E o câmera estava gravando. A última imagem gravada dela foi nos abraçando e beijando. E foi o final do programa. Muito emocionante para nós”, lembra Cazes.


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