Montagem sobre foto: Cleber Siquette/Pixabay

A literatura como caminho
para repensar a saúde

Por: Claudia Costa
Diagramação: Cleber Siquette

Aproximar estudos da linguagem à medicina pode parecer algo incomum. Mas desde 2011 o Grupo de Estudos em Literatura, Narrativa e Medicina (Genam) da USP, coordenado pela professora Fabiana Buitor Carelli, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), e pelo médico Carlos Eduardo Pompilio, do Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina (FM), vem promovendo reflexões sobre o papel da linguagem e da narrativa relacionados às questões de saúde e de doença. Durante a pandemia de covid-19, o grupo tem promovido os encontros virtuais Book Club, dedicados à discussão de obras literárias que tratam de doenças, especialmente infectocontagiosas, e acaba de lançar a série de podcasts Ciência Poética, que no episódio inaugural trata da criação do grupo, que surgiu dentro de um hospital.

Trabalhando desde a graduação com a questão da narrativa, a professora Fabiana se viu dentro de um hospital acompanhando sua mãe, que estava internada, e em conversas com o médico que a assistiu, Carlos Pompilio, o Dr. Cadu, como é conhecido no HC, surgiu a ideia de se trabalhar a relação entre medicina e letras. Mas isso não era algo novo. No Reino Unido, no final dos anos 1990, já havia surgido a narrative based medicine, referenciada pela publicação do livro de mesmo título organizado por dois grandes teóricos, Trisha Greenhalgh e Brian Hurwitz, originando uma série de cinco artigos publicados no British Medical Journal (BMJ). Em um deles, Por Que Estudar Narrativa?, eles defendiam, segundo Fabiana, uma visão narrativa da prática médica, questionando até mesmo a verdade empírica da medicina. Havia também estudos na Columbia University, em Nova York, nos Estados Unidos. Em 2006, foi publicado o livro Narrative Medicine: Honoring the Stories of Illness, de Rita Charon, médica e professora da Columbia University, uma das idealizadoras da narrative medicine (ou medicina narrativa).

“É interessante dizer que é uma área nascida nos meios médicos”, comenta Fabiana, acrescentando que Rita Charon é medica, clínica geral de formação, que só depois foi estudar literatura comparada por seu interesse nas narrativas, e Brian Hurwitz, do Centre for the Humanities and Health, King’s College London, tem formação em medicina e foi também pioneiro da narrative medicine e depois das medical humanities. Hurwitz esteve no Brasil, no ano passado, como professor convidado da USP para ministrar a disciplina de pós-graduação Medical Humanities in a Comparative Perspective. “Foi um interesse que não surge das humanidades, e sim dos médicos que começam a perceber limites na sua prática clínica, de não saber como lidar com as questões de linguagem que envolvem essa prática. É daí que surge esse novo campo de estudo”, informa Fabiana.

Foto: Vinicius Linné/Divulgação
Foto: Vinicius Linné/Divulgação

Porém, há cerca de dez anos, houve uma espécie de ruptura entre as duas correntes de estudo. Segundo Fabiana, foram se distinguindo duas vertentes: enquanto o grupo norte-americano é mais pragmático, buscando instrumentalizar os médicos com esse saber literário de conhecimento de doentes e doenças, o grupo inglês trabalha em uma linha mais humanística, com interdisciplinaridade entre áreas como história e filosofia, que na opinião da professora é mais teoricamente fundamentada, e da qual o Genam se aproxima. Embora, levando em consideração todos os estudos até então formulados, o grupo brasileiro busca, filosófica e metodologicamente, constituir um pensamento original, diz a professora. O desafio é levar esse conhecimento para fora do Brasil. Como informa Fabiana, o grupo está organizando uma coletânea de artigos, que será publicada em inglês, “muito provavelmente no Reino Unido”.

Book Club e Ciência Poética

Criado durante a pandemia de covid-19, a série de encontros virtuais Book Club é dedicada a obras literárias que tratam de doenças, “especialmente doenças infectocontagiosas, tentando conferir algum sentido para esse momento que estamos vivendo”, explica a professora Fabiana Carelli. “A literatura é linda nesse sentido, porque trabalha com inúmeros tipos e modelos das experiências individuais, autorais e originais a respeito dessas situações, e pode oferecer caminhos para repensar nossa própria experiência”, relata. Além disso, continua, a narrativa tem um lado existencial que vai além da instrumentalização.

Produzido quinzenalmente, o Book Club acontece sempre às terças-feiras, às 18 horas, no canal do Genam no Youtube, reunindo convidados e público para compartilhar experiências de leitura. Já foram apresentados programas sobre obras do poeta italiano Boccaccio (Il Decameron), do escritor colombiano Gabriel García Marquez (O Amor nos Tempos do Cólera), do romancista norte-americano Philip Roth (Nêmesis) e do autor português José Saramago (As Intermitências da Morte), além de um documentário de Miguel Gonçalves Mendes, em que Saramago fala sobre a morte.

Reprodução: GENAM/Youtube

No próximo encontro, no dia 28 de julho, terça-feira, serão discutidos dois contos de João Guimarães Rosa, Sarapalha, do livro Sagarana, e Sôroco, sua Mãe, sua Filha, de Primeiras Estórias. “Embora Guimarães Rosa tenha sido médico e exercido a medicina no início de sua carreira, nunca escreveu um livro totalmente dedicado à temática médica. Há muitos personagens médicos e referências a doenças, mas não uma obra completa sobre o assunto”, comenta Fabiana. O primeiro conto, Sarapalha, é sobre um vilarejo acometido pela malária, tema de Cícero Nardini Querido e José Otto Reusing Júnior, médicos do Hospital Universitário e do Hospital das Clínicas da USP. O segundo conto, Sôroco, trata da doença mental, descrita por Guimarães Rosa quase como uma doença contagiosa até a década de 60, em que os pacientes eram isolados da família e do convívio social – a convidada é a professora Ariadne Catarine dos Santos, egressa do curso de mestrado da FFLCH. O encontro ainda contará com a presença do professor Júlio César Machado de Paula, da área de Literaturas Africanas da Universidade Federal Fluminense (UFF), em participação especial como violonista, executando algumas modas de Minas Gerais.

Com previsão de ir ao ar todas as sextas-feiras, também quinzenalmente, o podcast Ciência Poética está disponível nas plataformas Anchor e Spotify, entre outras. O primeiro programa tratou da criação do Genam, um grupo eclético e transdisciplinar, que atualmente possui 85 integrantes. Como diz o Dr. Cadu no episódio: “Eu sei muitas coisas como médico, mas como interpretar os fatos de linguagem envolvidos nessa prática, que é interpessoal entre paciente/médico, médico/médico, médico/familiares; como interpretar os fenômenos de linguagem e aprimorar a minha capacidade de linguagem nesse processo, isso eu aprendi no Genam”. Uma síntese dos últimos dez anos de trabalho do Genan também pode ser encontrada no livro Pode o Subalterno Pensar? Literatura, Narrativa e Saúde, resultado da tese de livre-docência da professora Fabiana Carelli.

Segundo a professora, o podcast vai trazer temas sobre o vasto campo de estudos que envolve a literatura e a saúde, sobre as possíveis relações entre a narrativa e a vida, sobre o poético na ciência e nas outras formas da cultura. O próximo programa vai abordar a medicina narrativa, e o terceiro podcast trará uma entrevista com o linguista Vitor Nóbrega, formado pela USP, que possui um trabalho de pesquisa no Massachusetts Institute of Technology (MIT), nos Estados Unidos, sobre a origem da linguagem nos seres humanos, propondo a relação entre linguística e antropologia da linguagem.

O GENAM promove

Nesta terça (28/07)
às 18 horas

Mais uma edição do Book Club, com obras de Guimarães Rosa.

Inscrições e materiais para os encontros podem ser realizadas pelo e-mail genam@usp.br.
Mais informações na página do:Facebook.

Logo GENAM USP

Acesse os programas do Book Club:

Ciência Poética no: