Blog
USP cria linhagem modificada de roedores para estudos em epilepsia e comorbidades neuropsiquiátricas
Seleção genética de ratos foi feita no Laboratório de Neurofisiologia e Neuroetologia Experimental da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto e está disponível para pesquisadores e empresas no Rat Resource and Research Center, na Universidade do Missouri, associado aos Institutos Nacionais de Saúde (NIH), nos EUA
Seja para o entendimento de uma doença ou testagem de medicamentos promissores, os pesquisadores precisam percorrer etapas de experimentos pré-clínicos, com modelos animais in vitro ou in vivo, e clínicos, com seres humanos, para avaliar aspectos como: eficácia, toxicidade, segurança e efeitos colaterais. Na etapa pré-clínica, os pesquisadores buscam criar um ambiente semelhante às condições reais em seres humanos, por exemplo, com o uso de animais selecionados geneticamente, para terem uma resposta mais próxima à dos humanos.
Na busca por tratamentos para epilepsia e doenças neuropsiquiátricas, equipes de cientistas do Laboratório de Neurofisiologia e Neuroetologia Experimental (LNNE) da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP fizeram uma seleção genética de 65 gerações em roedores e criaram a linhagem de Ratos Wistar Audiogênicos (WAR), que foi oficialmente recebida em janeiro de 2022 no Rat, Resource and Research Center (RRCC) na Universidade do Missouri, nos Estados Unidos, para ser disponibilizada para a comunidade científica internacional.
Norberto Garcia Cairasco – Foto: Divulgação/UFMG
“A disponibilidade dos WAR internacionalmente significa que qualquer pesquisador que tenha interesse na linhagem possa ter acesso por solicitação com cadastro feito no próprio site do banco do RRCC”, conta Norberto Garcia Cairasco, professor, diretor do LNNE e chefe do Departamento de Fisiologia da FMRP.
A linhagem WAR é fruto de seleção genética (inbreeding) que gerou um fenótipo que pode ser avaliado do ponto de vista do comportamento, da atividade elétrica cerebral (EEG), das alterações nas células e em moléculas, tais como genes e proteínas relacionadas à epilepsia e doenças neuropsiquiátricas, entre elas ansiedade, depressão, alterações de memória/cognitivas, como na doença de Alzheimer, compulsão e autismo. Além disso, a pesquisa com a linhagem ainda possibilita a análise cardiovascular e respiratória, geralmente associada a morte súbita, além de alterações metabólicas e endócrinas, por exemplo.
“Embora no início tenhamos estudado apenas as respostas relacionadas ao fenótipo de epilepsia, com o passar do tempo começamos a observar alterações comportamentais de outros tipos, como estresse, ansiedade e depressão. Recentemente, observamos fenômenos mais complexos que exigem um olhar mais detalhado nos protocolos experimentais, por exemplo: compulsão ou perda de memória”, explica Garcia Cairasco.
Mais de 30 anos de história
Após mais de 30 anos de estudos com a linhagem WAR, o professor afirma que a disponibilidade dos animais para pesquisadores de todo o mundo é resultado da união e esforço de diversos participantes. “Ficam os agradecimentos, que sempre serão insuficientes, para centenas de pessoas, fundações e centros do cenário nacional e internacional que nos auxiliaram para o sucesso na produção da linhagem”, afirma.
O trabalho começou na década de 1980 quando Garcia Cairasco era orientado pelo professor Renato Marcos Endrizzi Sabbatini, da FMRP, no mestrado e no doutorado com estudos sobre os aspectos do comportamento animal associado às manifestações das epilepsias. “Depois de um período de dois anos de pós-doutorado no Duke University Medical Center, nos Estados Unidos, iniciamos, em 1990, a seleção genética que geraria a linhagem WAR e a apresentamos no Congresso Americano de Genética no mesmo ano.”
A modificação genética aconteceu no Laboratório de Neurofisiologia e Neuroetologia Experimental, que foi criado em 1988, e contou, ao longo dessas décadas, com trabalho para avaliação comportamental e de seleção genética do biólogo José Antonio Cortes de Oliveira e para a avaliação da atividade elétrica cerebral, do biólogo Flávio Del Vecchio, ambos do LNNE. “Já em 1992, foi realizada a primeira defesa de doutorado utilizando a linhagem, com Maria Carolina Doretto, doutoranda da FMRP na época. Ao longo das décadas, a linhagem foi usada em dezenas de estudos em teses de doutorado e dissertações de mestrado que contribuíram com a ciência, sendo apresentados em congressos nacionais e internacionais, palestras e artigos científicos”, recorda.
Em mais de três décadas, o grupo de pesquisadores produziu aproximadamente oito mil ratos da linhagem WAR, seguindo todas as exigências que envolvem a ética para o uso de animais em pesquisa. “Desde 2018, os WARs foram transferidos para ter a sua criação no Biotério para Linhagens Especiais de Ratos, no campus de Ribeirão Preto da USP, que é reconhecido pela Pró-Reitoria de Pesquisa da USP. O espaço funciona sob minha coordenação e com a execução das tarefas pelo técnico e biólogo José Antonio Cortes de Oliveira”, explica Garcia Cairasco.
Internacionalização e disponibilidade da linhagem para a ciência
O processo de transferência para o banco de animais americano foi iniciado em 2010 com suporte do Polo de Ribeirão Preto da Agência USP de Inovação (Auspin) e com acompanhamento e interlocução com o Centro Multidisciplinar para Investigação Biológica na Área da Ciência de Animais de Laboratório (Cemib) da Universidade de Campinas (Unicamp). De acordo com Garcia Cairasco, os pesquisadores da Unicamp “realizaram com extrema competência a rederivação/higienização dos WAR, requisito fundamental para o transporte em condições de segurança sanitária para o RRRC”.
“Todos os protocolos nacionais e internacionais foram detalhadamente seguidos para serem processos éticos, legais, fluidos e eficientes. A história, desde o início do desenvolvimento da linhagem WAR, ultrapassa 30 anos e representa um icônico e árduo trabalho. Isso foi possível graças à retaguarda de múltiplos alunos, técnicos e colaboradores do LNNE, do Departamento de Fisiologia, dos Programas de Pós-Graduação em Fisiologia e Neurociências, da FMRP da USP e dos auxílios com bolsas e em pesquisas da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo [Fapesp], do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico [CNPq], da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior [Capes] e Fundação de Apoio ao Ensino, Pesquisa e Assistência do Hospital das Clínicas da FMRP [Faepa]“, conta o docente.
Flávia Prado, do Polo de Ribeirão Preto da Auspin, explica que a transferência tecnológica da linhagem aumenta a visibilidade e favorece as relações internacionais. “A disponibilização desta linhagem é um importante passo ao grupo de pesquisa e à FMRP para parcerias internacionais. Além de possibilitar novas pesquisas e interações, empresas também poderão ter interesse em realizar o processo de licenciamento da linhagem, reconhecendo a sua origem”, reforça.
O professor Garcia Cairasco ainda salienta que as investigações com os animais WAR disponibilizados no RRRC, banco de animais americano, ainda podem contribuir na formação de recursos humanos em projetos multi e interdisciplinares institucionais e internacionais. “Como exemplo disso, colaborações já solidificadas têm sido feitas entre o LNNE a Georgetown University, sob coordenação do professor Patrick C. Forcelli, que utiliza os ratos geneticamente predispostos à epilepsia (GEPRs), e pesquisadores da Universidade de Salamanca (Usal)), sob a coordenação da professora Dolores E. López, que desenvolveu a linhagem de hâmsters geneticamente sensíveis a crises audiogênicas (GASH/Sal). Uma consequência natural deste conjunto de colaborações em estudos comparativos entre as linhagens WAR, GEPRs e GASH/Sal é a minha aprovação para receber, no dia 28 de junho, o Doutorado Honoris Causa pela Usal, certamente uma honraria pela trajetória científica e relevância internacional nos seus estudos das epilepsias e comorbidades neuropsiquiátricas”, finaliza.
Mais informações: e-mail ngcairas@usp.br, com o professor Garcia Cairasco
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.