Tolerância e observação: a fórmula dos macacos-prego para passar tradições culturais

Macacos-prego da Serra da Capivara vivem em um sistema de rede social propício para aprendizagem e transmissão cultural de suas habilidades; experimentos ampliam compreensão sobre evolução cultural dos primatas

Estudo mostrou como os vínculos sociais aumentam a tolerância e favorecem o aprendizado de novas habilidades em macacos-prego, o grupo de primatas com o maior registro do uso de ferramentas / Foto – Camila Galheigo Coelho

 Publicado: 03/12/2024 às 8:00

Texto: Tabita Said

Arte: Beatriz Haddad*

Uma grande caixa de acrílico repleta de comida chamou a atenção de macacos-prego que vivem no Parque Nacional Serra da Capivara, no Piauí, Nordeste do Brasil. O dispositivo foi colocado por pesquisadores da USP e da Universidade de Durham (Reino Unido) em uma área frequentemente usada pelos macacos. A ideia era descobrir como iriam solucionar o mistério da caixa, que contava com dois mecanismos de abertura: puxar uma pequena alça verde ou levantar uma placa retangular azul. O que os cientistas observaram revelou mais do que a simples busca por recompensa. Os animais mostraram uma dinâmica rede de disseminação de novos comportamentos, na qual a tolerância mútua desempenha um papel central em um cenário altamente competitivo, como a procura por alimentos.

“A tolerância social em macacos-prego [acontece] quando os indivíduos toleram uns aos outros em sua proximidade. Uma maior tolerância social entre os indivíduos pode ser indicada por eles se alimentando ou se limpando juntos”, explica Rachel Kendal ao Jornal da USP. A professora do Departamento de Antropologia da Universidade de Durham foi uma das supervisoras da pesquisa. “O estudo indica que os macacos-prego provavelmente têm uma estratégia de aprendizagem social de copiar machos bem-sucedidos no contexto desta tarefa de forrageamento extrativo”, diz.

Os experimentos foram feitos entre 2012 e 2013, observando duas populações diferentes de macacos-prego, 40 indivíduos do grupo Jurubeba e 30 da Pedra Furada. Para desempenhar a tarefa de abrir a caixa e conseguir comida, os pesquisadores treinaram um indivíduo de cada grupo, que serviram de modelo de resolução do problema. Quando conseguiam, uma bandeja era servida, contendo uma mistura de milho, amendoim e passas. 

Rachel Kendal é uma pesquisadora de cabelos longos e loiros. Ela usa uma blusa escura, brincos e um colar
Rachel Kendal é professora de Antropologia Evolutiva na Universidade de Durham, no Reino Unido - Foto: Reprodução/Durham University
Eduardo Otton é um pesquisador de cabelos escuros e curtos. Ele usa óculos, barba e bigode, está segurando um microfone
O etólogo Eduardo Ottoni é professor do Instituto de Psicologia (IP) da USP - Foto: IEA

Os macacos-prego conseguiram abrir a caixa mais de 8 mil vezes, sendo que em 92% delas o sucesso foi obtido por meio da observação direta. O experimento mostrou que conexões sociais mais fortes possibilitam oportunidades de observação, sugerindo que a tolerância social aumenta a probabilidade de aprendizado e facilita a disseminação da informação. 

“A possibilidade de haver tradições comportamentais depende do bicho deixar outros chegarem perto. A gente já sabia que tolerância com filhotes é total, mas aqui, a gente instanciou o fato concreto de que as relações sociais mediaram o caminho da transmissão. Ou seja, não era uma competência individual, mas algo se propagando por meio do contato e aprendizado mútuo”, destaca Eduardo Ottoni, coordenador do Laboratório de Etologia Cognitiva do Instituto de Psicologia (IP) da USP e também supervisor da pesquisa.   

Os resultados foram publicados este mês na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS).   

Um macaco-prego à esquerda da foto em cima de uma pedra, dois macacos-prego no chão à direita da foto. Eles observam um quarto macaco-prego no centro da foto que interage com uma máquina branca em uma floresta
Observado por outros macacos em até 5 metros de distância, um macho adulto resolve a tarefa usando a elevação da aba azul, em vez de puxar a saliência verde. Experimentos mostraram que a elevação foi o método mais difundido entre os macacos – Foto: Camila Galheigo Coelho / PNAS

Modelando o comportamento animal

Utilizando uma análise de difusão baseada em rede (NBDA, na sigla em inglês), os cientistas puderam desenvolver uma modelagem matemática na qual um software era alimentado com informações precisas das conexões sociais de cada macaco-prego em diferentes contextos – brincando, se limpando, comendo ou apenas observando quem conseguia tirar comida da caixa. Dados como identidade, distância da caixa, método escolhido para abertura e tempo de resolução também foram registrados. 

“A análise envolveu Camila [primeira autora do artigo] coletando muitos dados sobre quem andava com quem durante suas atividades diárias. Ela poderia, então, criar uma rede social de quem tinha conexões mais fortes com quem em diferentes situações”, explica Rachel. Ela se refere à Camila Galheigo, doutora em Psicologia pela USP, que fez as coletas durante seu estágio de pesquisa na Universidade de Durham. 

O NBDA foi utilizado para compreender como uma informação ou comportamento é espalhado em um grupo. “Essa modelagem matemática compara as redes de relações dos bichos, que podem ser diretamente no ato da observação da tarefa, ou mediadas em outros contextos, como quem faz ‘catação’ do outro, quem brinca mais com o outro. Então, esses modelos comparam o quanto a rede social prevê a trajetória de propagação versus uma rede hipotética”, detalha Ottoni. 

A rede hipotética assume que cada indivíduo pode aprender por si mesmo, sem a influência ou a observação de outros. Os testes estatísticos compararam os dois modelos para explicar qual deles explicava melhor o comportamento observado, e as evidências apontaram o sucesso do modelo de aprendizagem social para a resolução de tarefas. 

Nos macacos-prego da Pedra Furada, houve evidências mais fortes de aprendizagem social quando os indivíduos observaram manipulações de tarefas além de 5 metros. Esse modelo foi influenciado pela neofobia, em que o indivíduo teme e evita novos objetos.  

Já nos macacos do grupo Jurubeba, as tarefas eram melhor desempenhadas quando o grupo observava um “solucionador” dentro de 1 metro de distância. Para além dos 5 metros, o sexo influenciou a difusão social em redes de observação dos Jurubeba, indicando que os machos tiveram taxas de aprendizagem mais altas do que as fêmeas.

“Neste caso, é benéfico aprender com indivíduos que são bem-sucedidos ou bons na tarefa que você deseja aprender e possivelmente machos, pois os machos tendem a usar ferramentas mais do que as fêmeas nesta espécie. Portanto, podem ser considerados mais proficientes”, afirma Rachel. 

Recompensas alimentares deslizam por um eixo para a bandeja na parte inferior da máquina. Um macho jovem resolve a tarefa pela opção “levantar” (à esquerda) e “puxar” (à direita) – Foto: Camila Galheigo Coelho / PNAS

Duas técnicas para comer

Cada grupo de macacos-prego teve um indivíduo treinado com uma técnica diferente de abertura da caixa. Os da Jurubeba aprenderam a levantar e os da Pedra Furada aprenderam a puxar. Os pesquisadores relataram que, no início, os indivíduos de ambos os grupos usaram a mesma técnica que haviam observado no indivíduo treinado. Nos da Pedra Furada, porém, um indivíduo descobriu a opção alternativa de levantar para conseguir a recompensa, e passou a levantar e puxar, de forma intercalada.

“Eles vão descobrindo as coisas por eles mesmos. Então, mesmo no grupo em que a segunda técnica foi semeada, a outra técnica também acabou se propagando”, afirma Ottoni. Mesmo assim, a opção de levantar se tornou a mais escolhida entre todos. Não se sabe se a ação era mais natural ou se a porta azul era mais visível.

“Requereria um exame mais minucioso para saber se eles não aprenderam a técnica específica, ou se caíram na mais fácil. Mas as estatísticas mostraram que o caminho da propagação da nova técnica foi o caminho das interações sociais”. 

Os macacos-prego produziram as mais antigas ferramentas não humanas conhecidas fora da África, como martelos de pedra e bigornas, e vêm aumentando seu “kit” de ferramentas com o uso de varetas como sondas para buscar presas.  

“Você junta essa inteligência individual a essa propriedade social da tolerância, que vai variar conforme a relação social, e passa a ser algo fundamental a capacidade de transmitir comportamentos culturalmente. Assim como a gente depende disso, se não nem estaríamos aqui”, afirma Ottoni.

O artigo Social tolerance and success-biased social learning underlie the cultural transmission of an induced extractive foraging tradition in a wild tool-using primate está disponível neste link.

Mais informações: rachel.kendal@durham.ac.uk, com Rachel Kendal, e ebottoni@usp.br, com Eduardo Ottoni

*Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado


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