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Teoria da evolução amplia horizontes da pesquisa sobre a saúde humana
Medicina evolutiva propõe maior atenção às interações entre o organismo humano e seu ecossistema, usando premissas da evolução para compreender melhor doenças recorrentes no mundo moderno, como diabete, câncer e ansiedade
A medicina evolucionista incorpora uma visão mais ampla e ecológica da saúde, atenta ao diálogo contínuo entre as espécies que tentam sobreviver e o ambiente. Na imagem, crânios de diferentes hominídeos - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Ninguém duvida que a biologia e a medicina são áreas intimamente conectadas. A medicina não se limita só aos aspectos biológicos, é claro, mas é impossível imaginar seu desenvolvimento sem conhecimento deles. Pode ser, porém, que a medicina ainda não esteja suficientemente atenta àquela que é uma das bases da biologia, que é a teoria da evolução. Campo em certo sentido recente, a medicina evolutiva propõe um olhar mais afinado com esta perspectiva.
“A medicina evolutiva estuda as conexões que o conhecimento da biologia evolutiva pode trazer ao estudo da saúde e das doenças, tanto na compreensão das origens dessas doenças, como de seu funcionamento e terapêutica”, define de maneira ampla o professor Alexandre Ferraro, que lidera um grupo da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) e acaba de ser eleito membro do Conselho Diretor da Sociedade Internacional de Medicina Evolucionista e Saúde Pública.
Ele explica que, mesmo a teoria da evolução sendo um pilar essencial na compreensão da biologia, por muito tempo ela não pôde dar uma contribuição maior à medicina, principalmente por motivos históricos. “Logo após seu nascimento, a evolução sofreu um desvio para um lado mais sociológico, que deu origem a ideias como a eugenia.” Mesmo que de maneira errônea, explica ele, “a teoria da evolução acabou dando fundamentos científicos para a eugenia e se tornou fonte para justificativas ligadas ao racismo e a tragédias como o Holocausto.”
Alexandre Ferraro - Foto: arquivo pessoal
Por isso, se tornou um tabu fazer, na área da saúde humana, essa ponte com a teoria da evolução. “A biologia molecular, por exemplo, avançou enormemente na medicina. Mas a biologia evolucionista tinha essa herança maldita, digamos assim. Então, só mais recentemente, conforme se multiplicaram os questionamentos, viu-se que, exatamente pela matriz biológica da saúde humana, um olhar a partir da biologia evolucionista seria não só de grande contribuição, mas também essencial para a compreensão de aspectos que de outra forma seriam incompreensíveis.”
Mas mesmo com essa espécie de suspensão, o campo já vem progredindo há pelo menos três décadas. “A medicina evolutiva não é muito nova como conhecimento, mas sim se pensarmos na estruturação de um corpo de pensadores. Ainda assim, ela já tem trazido contribuições não só do ponto de vista clínico, mas também da saúde pública”, diz Ferraro.
Saúde desde o útero
O efeito de uma intervenção preventiva durante a gestação e nos primeiros mil dias de vida pode ser muito maior do que se tentar resolver o problema de saúde que o adulto vai desenvolver mais tarde - Foto: tirachardz/Freepik
Ferraro acredita que haveria um grande avanço nas políticas públicas se houvesse a compreensão de que a origem de algumas doenças crônico-degenerativas, que são as que mais matam no mundo todo, “tem a ver não tanto com estilos de vida ou comportamentos do adulto, mas com trajetórias determinadas biologicamente pelo que acontece dentro do útero e nos primeiros anos de vida” – algo que a evolução ajuda a explicar.
Isso é o que ele testemunha em suas próprias pesquisas. “Estudo a restrição de crescimento intrauterino e o estresse psicossocial sofrido durante a gestação, e como isso influencia a trajetória de vida que o indivíduo vai cursar”, detalha ele. E exemplifica: “Isso implica desde uma primeira menstruação precoce nas meninas, até o aumento da massa gorda no corpo, com risco maior de doenças metabólicas e cardiovasculares no adulto.”
Num certo sentido, compara o médico, as doenças crônico-degenerativas do adulto podem ser vistas como um “pedágio” pago para garantir a sobrevivência da espécie até o período fértil, quando há maturidade biológica para a reprodução.
“Quando isso é investigado experimentalmente em modelos animais, é como se o organismo dissesse: ‘Olha, o ambiente onde eu estou crescendo é de grande risco para a sobrevivência da espécie, então o quanto antes eu tiver competência reprodutiva, maior a chance da minha espécie não entrar em extinção’ ”, explica o pesquisador, de forma didática.
Ele destaca o impacto que pode ter, inclusive do ponto de vista do custo-efetividade, reconhecermos que “o efeito de uma intervenção nos primeiros mil dias de vida pode ser muito maior do que buscar resolver depois o problema no adulto”.
Conhecimentos como esses decorrem não só de pesquisas com modelos animais, mas também de estudos observacionais consistentes, incluindo “experimentos naturais” que aconteceram ao longo da história com seres humanos.
Por exemplo, ao olharmos para a tragédia da fome extrema na Holanda na Segunda Guerra e, 60 anos depois, identificarmos as consequências disso nos descendentes das vítimas que estavam grávidas no período. Seus filhos tiveram maior incidência de obesidade, colesterol alto, diabete e problemas cardiovasculares do que a população em geral. “Se nos voltarmos para a biologia ao buscar entendimento deste fenômeno, a teoria da evolução, agora aplicada à saúde humana, é a melhor explicação que podemos ter”.
O pesquisador acredita que tudo começa a fazer mais sentido se entendermos que, na sua estrutura biológica, a espécie humana dá uma prioridade maior à reprodução do que ao envelhecer com saúde.
Cesárea e obesidade
O professor lembra que o grupo de que ele participa, ligado aos estudos de coorte de Ribeirão Preto, foi um dos primeiros a demonstrar uma associação importante entre nascer de parto cesárea e a obesidade e hipertensão do adulto. “Quando, há dez anos, começamos a falar isso, nos olhavam com grande suspeita. Mas, infelizmente, o Brasil é um lugar excelente para testar essa hipótese, porque somos recordistas de parto cesárea. E começamos a encontrar uma associação cada vez mais forte entre a obesidade no adulto e ter nascido de parto cesárea. Isso depois de termos descartado uma série de outros fatores que também poderiam explicar tal fenômeno”, relata.
“Também começamos a nos deparar com uma série de evidências de que nascer por parto vaginal determina uma microbiota diferente da de quem nasce cirurgicamente, que é uma microbiota hospitalar. Ao mesmo tempo, sabemos que a microbiota está enormemente associada ao padrão de saúde que o indivíduo vai desenvolver.”
A mudança massiva no modo de nascer, do parto natural para o cirúrgico, está gerando impactos ainda não totalmente conhecidos na saúde humana - Foto: Jonathan Borba/Pexels
Dito de outra forma, evolutivamente, temos um ecossistema de micróbios que mantém em equilíbrio todo o organismo. E uma intervenção moderna, como nascer de parto cirúrgico, faz com que tenhamos uma colonização por microrganismos totalmente diferentes. Para Ferraro, essa é uma questão a ser aprofundada ainda, mas haverá um grande ganho, nas políticas de saúde, se for comprovado que o incentivo ao parto natural pode diminuir muito o número de adultos com obesidade, hipertensão e doenças cardiovasculares.
“Ao entender que não é somente o indivíduo e o ambiente, mas todo o ecossistema que existe no organismo mais o ambiente, podemos pensar com mais clareza nas consequências de tomar antibiótico ou nascer de parto cesárea. Qual impacto que mudanças como estas estão gerando em longo prazo?”, questiona.
Lebres ansiosas
Os distúrbios mentais, como o transtorno de ansiedade, também podem ser entendidos do ponto de vista evolutivo. Ferraro diz que a psiquiatria hoje é pensada através de sintomas, que são agrupados, e o tratamento é planejado a partir disso. Mas quando começamos a refletir sob a perspectiva da evolução, mais do que sintomas, talvez estejamos diante de respostas ao diálogo constante que o organismo tem com o ambiente.
“A gente encontra em animais, lebres, por exemplo, que quando o ambiente tem muitos predadores, como coiotes, os filhotes que sobrevivem mais são aqueles com um perfil mais ansioso, porque a ansiedade dispara a resposta de fuga ou luta”, diz. Mas a população de lebres não chega a ficar homogênea, e sim com os indivíduos distribuídos em um espectro, uns com traços mais ansiosos, e outros menos. Uma vez que aumenta essa população, começa a haver respostas menos rápidas ligadas ao estresse e à fuga. “Quer dizer, começam a sobrar mais presas mais fáceis de serem capturadas, e a população de predadores começa a subir de novo”, detalha.
Segundo o médico, podemos começar a olhar para o aumento da prevalência de doenças modernas como uma resposta fisiológica, até certo limiar, saudável, que nosso organismo foi preparado para ter diante de ambientes estressantes. “É um pouco a ideia da febre ou da diarreia, que causam mal-estar, mas são recursos importantes para nossas defesas.” É claro que, a partir de um certo ponto, assim como a febre e a diarreia, a ansiedade passa a ser um problema.
Mas a ideia é que a evolução pode ajudar a entender esse percurso, ao mesmo tempo em que “aguça o nosso olhar para vermos de outras perspectivas aspectos da saúde que antes víamos apenas do ponto de vista sintomático”, diz Ferraro. “Para a saúde mental, uma consequência disso é passar a ver os transtornos dentro de um espectro, e não como coisas binárias. Esse é tipicamente o olhar de um evolucionista. Uma ideia básica de Darwin é que existe um espectro de manifestações fenotípicas, uma variabilidade de jeitos de ser. E em um determinado ambiente, os portadores de uma certa variabilidade sobrevivem e se reproduzem mais do que outros.”
Olhar ecológico
A mensagem resumida é que a medicina evolucionista nos obriga a ter um olhar muito mais global e ecológico da saúde, que nos permite perceber que há um diálogo contínuo entre o organismo e o ambiente, visando a uma melhor adaptação para a sobrevivência da espécie.
Esquema da árvore da vida feito por Charles Darwin - Ilustração: Charles Darwin/Wikimedia Commons/Domínio Público
O pesquisador ressalta, porém, que na profissão médica existe um problema de saúde para ser resolvido, e não se pode perder isso de vista. “Nós não estamos falando de um biólogo que poderia focar numa visão ecológica. Como médicos, temos que ‘resolver’ alguma coisa. Mas ao mesmo tempo se, ao procurarmos a solução, levarmos em consideração o impacto deste diálogo ambiente-organismo – como a biologia evolucionista tipicamente faz – também podemos ampliar o leque de recursos terapêuticos”, conclui.
Programação fetal
Ferraro conta que, ainda na graduação, participou de um trabalho de extensão que levava educação em saúde a comunidades da periferia. E chamava sua atenção crianças pequenas desnutridas cujas mães eram obesas. “Há três décadas, meus professores me falavam que a possível explicação disso era o acesso à alimentação, que aquela dinâmica familiar favorecia adultos ao invés de crianças. Mas com o que eu via em campo no projeto de extensão, eu não estava convencido disso”, relembra.
Daí surgiu na comunidade científica o que, inicialmente, foi chamado de teoria da programação fetal.
“É como se a desnutrição, até os primeiros mil dias de vida, programasse seu organismo para acumular em tecido adiposo as calorias que consumimos. Vamos nos tornando um organismo poupador de caloria no formato adiposo. O problema é que, atualmente, o ambiente do adulto não é pobre em calorias. Em inglês, é o que chamamos de mismatch, um conceito típico da medicina evolucionista, que quer dizer que existe essa incompatibilidade entre o ambiente em que o organismo se desenvolve e aquele em que vai viver”, explica.
As consequências dos estudos na área ultrapassam a literatura científica. “Com esse conhecimento, conseguimos pressionar até a Organização das Nações Unidas (ONU) a olhar para a questão. Um documento de 2011 expressava que, para seu desenvolvimento, os países deveriam se preocupar com as doenças crônico-degenerativas, e foi incluído um parágrafo dizendo que o acontece no período gestacional e nos primeiros anos de vida é essencial para a origem dessas doenças. Ou seja, os governos precisam se preocupar com isso também.”
Outras aplicações
A medicina evolutiva já tem diferentes linhas de pesquisa que agregam o olhar da evolução ao entendimento de doenças infecciosas e autoimunes até ao câncer.
“Presenciamos uma explosão no diagnóstico de doenças autoimunes, e quando temos em mente que evoluímos para conviver com helmintos [parasitas] no nosso intestino, podemos nos perguntar se nos livrarmos completamente deles pode estar alterando de alguma forma nossa imunidade. E há uma série de estudos que estão encontrando exatamente isso, inclusive com propostas terapêuticas como a colonização com helmintos para a supressão dos sintomas gastrointestinais de doenças autoimunes. Veja como isso amplia nosso entendimento, de um ponto de vista higiênico para um ponto de vista ecológico-evolucionista.”
Quanto ao câncer, vemos um processo de seleção natural ocorrer tanto no surgimento da doença como na forma como as células cancerígenas respondem a nossos próprios mecanismos de defesa e ao tratamento, como quimioterapia e radiação.
A resposta adaptativa das células do câncer ao nosso sistema imune e aos quimioterápicos é um típico processo de seleção natural, só que acontecendo dentro do organismo - Na imagem, grupo de células de defesa em volta de uma célula cancerígena - Foto: Alex Ritter, Jennifer Lippincott Schwartz and Gillian Griffiths, National Institutes of Health/Flickr/Domínio Público
Em primeiro lugar, nosso corpo está continuamente produzindo células cancerígenas, mas na maioria dos casos elas não sobrevivem. Então por que, depois de uma certa faixa etária, começa a aumentar muito o número de pessoas com câncer? “Existe o câncer infantil, que tem outra origem, mas no adulto o câncer é uma doença que fica bem mais frequente a partir de uma certa idade. Entre outras razões, isso acontece porque, com o passar do tempo, uma célula cancerígena começa a estar muito mais bem adaptada a sobreviver em seu ambiente, e assim se multiplica.”
Quanto às terapias, podemos ir matando a maioria das células cancerígenas, mas, já que a multiplicação celular é grande, também há alta probabilidade de aparecer uma célula com uma rara característica que a torna resistente e, portanto, mais adaptada ao ambiente com quimioterápicos.
“Esse é um raciocínio tipicamente evolucionista, pensando em respostas celulares para sobreviver a um ambiente, que é o corpo humano” diz Ferraro, ao explicar que a resistência que os microrganismos adquirem aos antibióticos, que é um problema gravíssimo e implica racionalidade no usos destes medicamentos, segue a mesma lógica.
Limitações
Perguntado sobre os entraves para o campo avançar, Alexandre Ferraro menciona, em primeiro lugar, a falta de uma maior conscientização da importância – na esfera clínica e na da saúde pública – de se aprender evolução. “E daí ocorre que também sentimos uma limitação para difundir isso no nível da graduação. A primeira disciplina de Medicina Evolucionista no Brasil é dada por mim na Faculdade de Medicina, ainda como optativa.”
A segunda limitação que ele cita é que ainda falta uma maior compreensão do benefício econômico que o pensamento evolutivo pode trazer, “não só em termos de saúde pública, mas para a própria indústria farmacêutica”. Por exemplo, quando não fosse possível por razões médicas ter um parto normal, poderíamos ter um suplemento que permitisse a multiplicação das mesmas bactérias do parto vaginal, sugere.
Mais informações: e-mail ferraro@usp.br, com Alexandre Ferraro, ou na página do grupo no Instagram
*Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado
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