Letícia salienta que o agrupamento dos Homo sapiens visualizado no gráfico é o que fortalece a hipótese de uma origem única na África para todas as populações do mundo. “Se eles tivessem se originado em lugares diferentes, provavelmente não estariam tão agrupados dessa forma”.
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Quando os humanos da África dominaram o mundo
Grupo de pesquisa cria banco de dados que reúne medidas anatômicas dos humanos primitivos e defende hipótese de que nossa espécie tem uma origem única no continente africano
Pesquisa apontou a variedade dos ossos e dos dentes de vários seres humanos que viveram entre 500 mil e 250 mil anos atrás, na era conhecida como Pleistoceno médio - Fotomontagem: Jornal da USP - Imagens: John Gurche/Smithsonian Museum of Natural History, Tim Evanson, Martyman/Wikimedia Commons, Cicero Moraes/Wikimedia Commons e Maayan Harel/Revista Nature
Pesquisa apontou a diversidade dos ossos e dos dentes de vários seres humanos que viveram entre 500 mil e 250 mil anos atrás, na era conhecida como Pleistoceno médio - Fotomontagem: Jornal da USP - Imagens: John Gurche/Smithsonian Museum of Natural History, Tim Evanson, Martyman/Wikimedia Commons, Cicero Moraes/Wikimedia Commons e Maayan Harel/Revista Nature
Centenas de milhares de anos antes dos primeiros Homo sapiens surgirem, espécies humanas muito diferentes de nós já viviam na Europa e na Ásia dominando o fogo e instrumentos primitivos. Nessa época, ao menos três espécies derivadas do Homo erectus, os primeiros hominínios a ocuparem territórios asiáticos, habitavam o mundo: na África viviam os Homo bodoensis; na Europa, os Homo heidelbergensis; e, na Ásia, os Homo daliensis.
Embora distintas, as três espécies compartilhavam crânios grandes e robustos, testa achatada, capacidade craniana de média a grande e arcos acentuados sobre as sobrancelhas. A face poderia ser plana, no caso dos africanos, ou levemente projetada para frente, nas espécies que viviam fora desse continente.
“Nesse período, houve uma explosão de diversidade morfológica tanto na África quanto na Ásia e na Europa. Tradicionalmente, alguns autores chamam tudo de Homo heidelbergensis, porém observamos uma variabilidade muito grande para ser denominada dentro de uma única espécie”, introduz Gabriel Rocha, biólogo que analisou as medidas de diversos crânios antigos, ao Jornal da USP.
Gabriel Rocha - Foto: Arquivo Pessoal
Ao lado de Gabriel Rocha, o professor Walter Neves e as estudantes de biologia Maria Helena Senger e Letícia Valota analisaram a diversidade dos ossos e dos dentes de vários seres humanos que viveram entre 500 mil e 250 mil anos atrás, na era conhecida como Pleistoceno médio.
A investigação desenvolvida no Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP trabalha com os traços anatômicos dos fósseis, o que é muito importante, dado que o DNA não está preservado nessas espécies mais antigas. O artigo reinterpreta a história evolutiva das espécies humanas à luz das descobertas mais recentes.
Ilustração reconstrói feições do Homo erectus, os primeiros seres humanos de que temos notícia a viverem fora do continente africano
Imagem: John Gurche/Smithsonian Museum of Natural History
Os pesquisadores conseguiram demonstrar que a nossa espécie, que surgiu há cerca de 250 mil anos, tem uma origem única no continente africano. Paralelamente, a variante europeia heidelbergensis deu origem aos neandertais (Homo neanderthalensis) há aproximadamente 450 mil anos.
Na Ásia, coexistiram denisovanos, Homo erectus remanescentes e, nas ilhas filipinas, os pequenos Homo floresiensis, de apenas um metro de altura. A variante daliensis, porém, parece não ter dado origem a outro grupo.
O cruzamento de sapiens com alguns indivíduos das outras espécies humanas, dentro e fora da África, pode ser observado nos traços genéticos de neandertais e denisovanos em algumas populações humanas atuais.
Mesmo assim, esses pequenos vestígios não alteram as principais características dos sapiens originais, como a capacidade craniana, a face plana, a presença do queixo e dentição pequena dos humanos modernos. Todos nós temos uma origem e uma estrutura corporal comum, bem diferente dos humanos que foram extintos.
A chegada dos humanos modernos ao Oriente Médio ocorreu há 180 mil anos. Na Europa, a chegada da nossa espécie há 50 mil anos coincide com o declínio da população de neandertais. Aos poucos, os Homo sapiens também substituíram as espécies humanas do Leste Asiático, como o Homo daliensis e o Homo longi.
De todo modo, Maria Helena Senger lembra que não existe uma espécie mais evoluída que outra.
“Não é porque nós sobrevivemos que somos mais evoluídos que outras espécies. Não existe um pico de evolução, em direção ao ótimo. Nós apenas temos sorte de sermos selecionados. É uma seleção quase aleatória”. Para a biologia, a evolução é apenas uma adaptação ao ambiente. “Os neandertais não eram necessariamente uma espécie mais primitiva”, reforça a estudante.
Segundo Letícia Valota, outros fatores podem ter levado ao desaparecimento dessas populações, em um período de muita instabilidade climática. “Os neandertais coexistiram com os Homo sapiens durante muito tempo, mas viviam em grupos muito diferentes, que tendiam a ser um pouco menores em número de indivíduos [quando comparados aos grupos dos sapiens]”.
Achados recentes mostram que diversas espécies humanas coexistiram há 100 mil anos, como o Homo naledi, localizado na África do Sul em 2017, e o Homo luzonensis nas Filipinas em 2019 e diversas espécies na China. Essas evidências aumentam o nosso conhecimento sobre as antigas populações humanas e enriquecem as ferramentas para determinar as idades e as origens dos ancestrais humanos.
Um grande banco de dados com a descrição das características das espécies hominínias durante os 7 milhões de anos de evolução humana será disponibilizado pelo grupo de pesquisa em alguns meses. “Até então, todas essas medidas estavam perdidas em diversos artigos”, justifica Maria, responsável pelos dados sobre mandíbulas, já trabalhadas pelo grupo em outro artigo.
Maria Helena Senger - Foto: Arquivo Pessoal
O objetivo central da equipe é fortalecer a incipiente paleoantropologia brasileira por meio da democratização do acesso a essas informações. Foram consideradas medidas de crânio, reunidas por Gabriel, mandíbulas, por Maria, e dentes, por Letícia.
O artigo ajuda a localizar outras descobertas, como o crânio humano peculiar achado em 2006 na província de Anhui, na China, e o crânio antigo achado por um operário durante a construção de uma ponte na cidade Harbin, no mesmo país, em 1933, no quadro de espécies já conhecidas. Por diversos motivos, o trabalhador escondeu os restos desse habitante primitivo por décadas. Em 2018, porém, sua família foi convencida a entregá-los a pesquisadores da Universidade de Geociências de Hebei. O crânio seria de uma espécie ainda não conhecida que teria vivido há pelo menos 146 mil anos entre mamutes e cervos gigantes.
Algumas ossadas também foram reclassificadas nos últimos anos. É o caso de um crânio quase completo do grupo que originou a nossa espécie encontrado por mineradores que trabalhavam próximo a Marraquexe, no Marrocos, em 1961. Os fósseis escavados no local tinham sido datados com 40 mil anos. No entanto, métodos mais avançados de verificação apontaram em 2019 que eles teriam na verdade cerca de 315 mil anos. Hoje, os sapiens encontrados em 1963 na Etiópia são considerados os mais antigos, com cerca de 233 mil anos.
Para a análise, os fósseis foram agrupados de acordo com os grupos populacionais a que pertenciam. Através de uma análise estatística, foi possível mapear a proximidade dos indivíduos de acordo com as características anatômicas reunidas no banco de dados, das quais foram selecionados 25 traços mais relevantes.
Letícia Valota - Foto: Arquivo Pessoal
O gráfico obtido confirmou que os sapiens e os neandertais realmente poderiam ser classificados como espécies separadas das demais, mas os fósseis tradicionalmente conhecidos como heidelbergensis eram completamente diferentes entre si. “Os sapiens de todas as regiões — da África, da Ásia, da Europa e do Oriente Médio — coincidiram, o que significa que é uma espécie realmente coesa. Os heidelbergensis não, porque cada um aparece em um ponto diferente do gráfico. Ficou muito óbvio que realmente não tem como serem da mesma espécie, porque se espera pelo menos que tenha a interseção igual a que tiveram os neandertais”, resume Maria.
Gráfico gerado por análise estatística. Os indivíduos nomeados por siglas, em cinza escuro, foram aproximados das populações mais bem estabelecidas pela ciência de acordo com suas características físicas. Quanto mais próximos dos polígonos, mais provável que pertençam às espécies representadas - Imagem: Elsevier Quaternary Environments and Humans
*Estagiário sob orientação de Luiza Caires
**Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado
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