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Pequeno verme que vive nas cavernas traz novos entendimentos sobre a evolução
Estudo pioneiro sobre especificação de células-tronco revela novo modo de perda de características evolutivas em planárias de caverna

As planárias são pequenos vermes de vida livre conhecidas por suas propriedades de regeneração, com pedaços podendo gerar um indivíduo completo. Agora, uma análise da distribuição de células-tronco explica a presença de olhos rudimentares e funcionais em animais do Mato Grosso do Sul – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens


Federico Brown - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
A investigação teve início com a doação de uma pequena população de planárias de caverna Girardia multidiverticulata para o Laboratório de Biologia Evolutiva do Desenvolvimento do Instituto de Biociências (IB) da USP. “Pareceu um modelo superinteressante para entender alguns troglomorfismos”, comenta Federico Brown, professor doutor do Departamento de Zoologia e coordenador do laboratório.
Troglomorfismos são características adaptativas típicas de animais que vivem em ambientes de cavernas, e foi a partir delas que Luiza Saad, doutora pelo IB e primeira autora do artigo, dirigiu-se para o Planalto da Bodoquena a fim de coletar mais indivíduos da espécie para estudo. “Tem a entrada da caverna, que é um buraco no chão, muito difícil até de ver, e aí há uma queda livre de 25 metros. Depois dessa queda, está o corpo d’água em que as planárias foram encontradas”, descreve a pesquisadora.
O objetivo inicial da pesquisa de doutorado de Luiza Saad era compreender o troglomorfismo de desaparecimento dos olhos na Girardia multidiverticulata, espécie originalmente descrita sem o órgão. Porém, quando algumas planárias começaram a nascer com um distinto pigmento, foi descoberta a presença de pequenos olhos rudimentares e funcionais.
Saad diz que, em um primeiro momento, pensou que se tratava de dois morfotipos. Apenas quando a cientista prosseguiu com seus experimentos, no Whitehead Institute, que se confirmou a presença de células oculares, tanto em planárias com olhos quanto naquelas sem olhos discerníveis. “Consegui marcar os genes com a técnica de in situ [fluorescent in situ hybridization], em que você marca um gene específico e ele floresce ao vê-lo no microscópio. E esses marcadores mostraram que essas células estavam presentes.”

Luiza Saad - Foto: Gretchen Ertl/Whitehead Institute

Comparação da presença de olhos em diferentes espécies de planárias de superfície e de caverna utilizando fotos (duas primeiras linhas) e a técnica de fluorescent in situ hybridization (última linha) - Imagem: retirada do artigo
Distribuição de células
A primeira hipótese levantada para explicar a presença de olhos nas planárias de caverna era a presença de algum defeito na expressão dos genes responsáveis pelo desenvolvimento desses órgãos. Porém, uma análise de expressão gênica diferencial – em que se realizou o sequenciamento dos genes conhecidos por formarem os olhos –, mostrou que não havia grandes alterações em comparação às planárias de superfície. Todos os genes estavam ali.
“Pensamos, então, que deve ter sido alguma coisa antes. Algo deve estar afetando essas células [embrionárias] antes de virarem células de olho”, comenta a bióloga. As planárias são conhecidas pela capacidade de regeneração. Ela se deve às vastas quantidades de células-tronco em seus organismos, que se diferenciam para reconstruir diversas partes do corpo. Saad e Brown explicam que foi a partir da contagem dessas células que algumas perguntas da pesquisa começaram a ser respondidas.
“As planárias, de forma geral, têm células-tronco em seus corpos durante a vida adulta inteira. É diferente do ser humano. Os genes que estão ativos nessas células meio que só mantêm a célula viva e, quando ela se especifica, passa a expressar determinado gene que é diferente de quando era uma célula-tronco. Ela vira uma célula especializada.”
Luiza Saad
A análise das células-tronco foi feita utilizando marcadores gerados por fluorescent in situ hybridization (FISH) quando elas se encontravam tanto no estágio anterior à diferenciação quanto durante o processo. Saad dá o exemplo do gene arrestin, expresso nas células fotorreceptoras do olho: “No trajeto da célula-tronco até virar uma célula fotorreceptora, você tem determinados genes expressos nesse meio tempo”.
O método trabalhou com genes de células do olho, da faringe e da epiderme, estudando a distribuição celular a partir de experimentos controlados e com planárias de tamanhos similares. Também foi usada a técnica EdU, que marca onde, no organismo, as células recém-divididas estão sendo incorporadas.

Luiza Saad - Foto: Gretchen Ertl/Whitehead Institute
Fauna cavernícola
O estudo verificou que o número reduzido de células oculares em planárias de caverna está associado a uma taxa reduzida de especificação das células-tronco. Isso significa que, enquanto a quantidade de células especializadas em outros tecidos é comparável entre espécies de caverna e de superfície, a quantidade destinada à formação dos olhos nas planárias subterrâneas é significativamente menor, resultando na diminuição do órgão.
Saad declara que o estudo – pioneiro no filo dos platelmintos – é relevante para entender como a evolução está agindo nesses ambientes subterrâneos. “Os resultados mostram um mecanismo evolutivo ao qual animais [troglóbios] estão sujeitos. Alguns peixes de caverna também têm os olhos reduzidos ou perderam esses olhos. Vemos que mesmo em animais tão distantes na evolução ainda há características similares devido ao ambiente em que eles vivem.”
Muitos animais que habitam cavernas possuem evoluções adaptativas apenas encontradas nesses ambientes. De acordo com Brown, o alto grau de espécies endêmicas faz com que esses sistemas sejam importantes de serem conservados. A Girardia multidiverticulata se configura como uma espécie ameaçada de extinção e os ecossistemas subterrâneos em que vive sofrem impactos da mineração ilegal, do destamatamento e da agricultura.
Para os pesquisadores, espera-se que a descoberta possa contribuir para chamar atenção à fragilidade dos ambientes de cavernas, como também inspirar a investigação de mutações genéticas ainda pouco estudadas e compreendidas.
O artigo Reduced adult stem cell fate specification led to eye reduction in cave planarians pode ser lido aqui.
Mais informações: lsaad@wi.mit.edu, com Luiza Saad, e fdbrown@usp.br, com Federico Brown
*Estagiária sob orientação de Luiza Caires
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A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.
CÓPIA
tags: planárias de caverna, células-tronco, fauna cavernícola, adaptação evolutiva
[IMAGEM DE DESTAQUE] Legenda: As planárias são conhecidas por suas propriedades de regeneração, com pedaços dos animais sendo capazes de gerar um indivíduo completo – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens / Fonte: Cecília Bastos/USP Imagens / Texto alternativo: fotografia aproximada de três planárias de coloração amarelada da espécie Girardia multidiverticulata no Laboratório de Biologia Evolutiva do Desenvolvimento do Instituto de Biociências (IB) da USP.
Dentro de uma caverna no Planalto da Bodoquena, no Mato Grosso do Sul, pesquisadores encontraram uma população de planárias que pode trazer novos entendimentos sobre os estudos de evolução e desenvolvimento. Artigo publicado na Nature Communications apresenta um novo modelo de perda de características evolutivas desses animais baseado em mudanças na taxa de especificação de células-tronco adultas. O destino diferenciado das células pode resultar na perda ou redução do tamanho de órgãos, fenômenos observados nos olhos das planárias estudadas.
[IMAGEM PESQUISADOR] Legenda: Federico Brown – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens / Fonte: Cecília Bastos/USP Imagens / Texto alternativo: homem branco adulto de olhos claros e cabelo escuro e enrolado. Usa óculos e uma camisa verde clara.
A investigação teve início com a doação de uma pequena população da planárias de caverna Girardia multidiverticulata para o Laboratório de Biologia Evolutiva do Desenvolvimento do Instituto de Biociências (IB) da USP. “Pareceu um modelo super interessante para entender alguns troglomorfismos”, comenta Federico Brown, professor doutor do Departamento de Zoologia e coordenador do laboratório.
Troglomorfismos são características adaptativas típicas de animais que vivem em ambientes de cavernas, e foi a partir delas que Luiza Saad, doutora pelo IB e primeira autora do artigo, dirigiu-se para o Planalto da Bodoquena a fim de coletar mais indivíduos da espécie para estudo. “Tem a entrada da caverna, que é um buraco no chão, muito difícil até de ver, e aí há uma queda livre de 25 metros. Depois dessa queda, está o corpo d’água em que as planárias foram encontradas”, descreve a pesquisadora.
[IMAGEM] Mapa e localização da caverna / Legenda: A caverna onde as planárias foram encontradas se localiza no Planalto da Bodoquena, região que abarca a cidade de Bonito – Imagem: retirada do artigo / Fonte: retirada do artigo / Texto alternativo: Mapa da América do Sul e do Brasil em um contorno verde claro, com as coordenadas da localização da caverna no Mato Grosso do Sul. Associado ao ponto no mapa, está uma imagem da entrada da caverna no solo e coberta de vegetação.
[IMAGEM] Mapeamento interno da caverna Buraco do Bicho / Legenda: O Buraco do Bicho apresenta condições propícias para o desenvolvimento de animais troglóbios – Imagem: Livia Cordeiro, Irina Ermakova / Fonte: Livia Cordeiro, Irina Ermakova / Texto alternativo: mapa desenhado da formação interna da caverna Buraco do Bicho, onde as planárias foram encontradas. Estão representadas informações como o formato e a variação de altura da estrutura interna da caverna.
O objetivo inicial da pesquisa de doutorado de Saad era compreender o troglomorfismo de desaparecimento dos olhos na Girardia multidiverticulata, espécie originalmente descrita sem o órgão. Porém, quando algumas planárias começaram a nascer com um distinto pigmento, foi descoberta a presença de pequenos olhos rudimentares e funcionais.
[IMAGEM PESQUISADOR] Legenda: Luiza Saad – Foto: Gretchen Ertl/Whitehead Institute / Fonte: Gretchen Ertl/Whitehead Institute / Texto alternativo: mulher branca adulta de olhos escuros e cabelos castanhos de tamanho médio. Está sorrindo e vestindo uma jaqueta verde acima de uma camiseta branca.
Saad diz que, em um primeiro momento, pensou que se tratava de dois morfotipos. Apenas quando a cientista prosseguiu com seus experimentos no Whitehead Institute, que se confirmou a presença de células oculares, tanto em planárias com olhos quanto naquelas sem olhos discerníveis. “Consegui marcar os genes com a técnica de in situ [fluorescent in situ hybridization], em que você marca um gene específico e ele floresce ao vê-lo no microscópio. E esses marcadores mostraram que essas células estavam presentes”.
[IMAGEM] Comparação de planárias / Legenda: Comparação da presença de olhos em diferentes espécies de planárias de superfície e de caverna utilizando fotos (duas primeiras linhas) e a técnica de fluorescent in situ hybridization (última linha) – Imagem: retirada do artigo / Fonte: retirada do artigo / Texto alternativo: Comparação da estrutura dos olhos em cinco diferentes planárias com olhos discerníveis e não discerníveis, assim como comparação de marcações de genes presentes em células oculares de cada um dos animais. Tanto as planárias com olhos discerníveis quanto as sem olhos discerníveis possuem consideráveis quantidades de células oculares em seus organismos.
Distribuição de células
A primeira hipótese levantada para explicar a presença de olhos nas planárias de caverna era a presença de algum defeito na expressão dos genes responsáveis pelo desenvolvimento desses órgãos. Porém, uma análise de expressão gênica diferencial – em que se realizou o sequenciamento dos genes conhecidos por formarem os olhos –, mostrou que não havia grandes alterações em comparação às planárias de superfície. Todos os genes estavam ali.
“Pensamos, então, que deve ter sido alguma coisa antes. Algo deve estar afetando essas células [embrionárias] antes de virarem células de olho”, comenta a bióloga. As planárias são conhecidas pela capacidade de regeneração. Ela se deve às vastas quantidades de células-tronco em seus organismos, que se diferenciam para reconstruir diversas partes do corpo. Saad e Brown explicam que foi a partir da contagem dessas células que algumas perguntas da pesquisa começaram a ser respondidas.
[CITAÇÃO] “As planárias, de forma geral, têm células-tronco em seus corpos durante a vida adulta inteira. É diferente do ser humano. Os genes que estão ativos nessas células meio que só mantém a célula viva, e quando ela se especifica, passa a expressar determinado gene que é diferente de quando era uma célula-tronco. Ela vira uma célula especializada.” – Luiza Saad
A análise das células-tronco foi feita utilizando marcadores gerados por fluorescent in situ hybridization (FISH) quando elas se encontravam tanto no estágio anterior à diferenciação quanto durante o processo. Saad dá o exemplo do gene arrestin, expresso nas células fotorreceptoras do olho: “no trajeto da célula-tronco até virar uma célula fotorreceptora, você tem determinados genes expressos nesse meio tempo”.
O método trabalhou com genes de células do olho, da faringe e da epiderme, estudando a distribuição celular a partir de experimentos controlados e com planárias de tamanhos similares. Também foi usada a técnica EdU, que marca onde, no organismo, as células recém-divididas estão sendo incorporadas.
[IMAGEM] Distribuição de células em duas planárias / Legenda: Marcação do gene arrestin em células oculares de espécies de superfície e de caverna, as diferenciando das células-tronco não especializadas – Imagem: retirada do artigo / Fonte: retirada do artigo / Texto alternativo: Imagem que mostra a marcação do gene arrestin em células oculares de uma planária de superfície e uma de caverna. Ambas apresentam o gene.
Fauna cavernícola
O estudo verificou que o número reduzido de células oculares em planárias de caverna está associado a uma taxa reduzida de especificação das células-tronco. Isso significa que, enquanto a quantidade de células especializadas em outros tecidos é comparável entre espécies de caverna e de superfície, a quantidade destinada à formação dos olhos nas planárias subterrâneas é significativamente menor, resultando na diminuição do órgão.
Saad declara que o estudo – pioneiro no filo dos platelmintos – é relevante para entender como a evolução está agindo nesses ambientes subterrâneos. “Os resultados mostram um mecanismo evolutivo ao qual animais [troglóbios] estão sujeitos. Alguns peixes de caverna também têm os olhos reduzidos ou perderam esses olhos. Vemos que mesmo em animais tão distantes na evolução, ainda há características similares devido ao ambiente em que eles vivem”.
Muitos animais que habitam cavernas possuem evoluções adaptativas apenas encontradas nesses ambientes. De acordo com Brown, o alto grau de espécies endêmicas faz com que esses sistemas sejam importantes de serem conservados. A Girardia multidiverticulata se configura como uma espécie ameaçada de extinção e os ecossistemas subterrâneos em que vive sofrem impactos da mineração ilegal, do destamatamento e da agricultura.
Para os pesquisadores, espera-se que a descoberta possa contribuir para chamar atenção à fragilidade dos ambientes de cavernas, como também inspirar a investigação de mutações genéticas ainda pouco estudadas e compreendidas.
O artigo Reduced adult stem cell fate specification led to eye reduction in cave planarians pode ser lido aqui.
Mais informações: lsaad@wi.mit.edu, com Luiza Saad, e fdbrown@usp.br, com Federico Brown.
*Estagiária com orientação de Luiza Caires
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