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O que acontece quando diferentes pássaros e cantos se misturam
Pesquisadores investigam papel do canto inato na hibridação de linhagens e o que influencia a variação geográfica deste canto
Texto: Camilla Almeida*
Arte: Carolina Borin**
Da esquerda para direita, as espécies Pyriglena híbrido, Pyriglena atra e Pyriglena leucoptera - Fotomontagem: Jornal da USP - Fotos: Cedida pelos pesquisadores/Sidnei Sampaio dos Santos
Da esquerda para direita, as espécies Pyriglena híbrido, Pyriglena atra e Pyriglena leucoptera - Fotomontagem: Jornal da USP - Fotos: Cedida pelos pesquisadores/Sidnei Sampaio dos Santos
Entre os pássaros, quando duas linhagens diferentes entram em contato, ocupando uma mesma localidade, pode ocorrer uma troca de material genético por meio do cruzamento. Neste caso, são originados indivíduos híbridos. Nas aves subóscines, uma linhagem evolutiva de ocorrência principalmente nas Américas, acreditava-se que as variações nos cantos inatos – aqueles geneticamente determinados – fossem uma barreira para a ocorrência de hibridação. Um novo estudo contraria essa crença ao mostrar que mesmo indivíduos de populações com diferenças nos cantos inatos podem acasalar e dar origem a híbridos. O estudo revelou que, na verdade, acaba até ocorrendo uma homogeneização nos cantos na área de contato entre os grupos.
A pesquisa também explorou os mecanismos que moldam a variação geográfica em aves com cantos inatos, permitindo constatar que fatores como as características físicas dos pássaros e o espaço geográfico influenciam na variabilidade apresentada entre estes cantos.
Os resultados do trabalho feito em parceria entre o Instituto de Biociências (IB) da USP e a University of Missouri, dos Estados Unidos, foram divulgados em artigo publicado na revista The American Naturalist.
Papa-taoca
Para alcançar esses resultados, foram analisados 496 cantos masculinos de 63 locais distribuídos ao longo de todo gradiente de Mata Atlântica, que ocupa o litoral brasileiro. Foram escolhidas espécies irmãs do gênero Pyriglena, conhecido popularmente como papa-taoca: Pyriglena atra, o papa-taoca-da-bahia, encontrado no estado da Bahia, e Pyriglena leucoptera, o papa-taoca-do-sul, avistado mais ao sul do bioma.
Autora do artigo e professora do IB, Cristina Yumi Miyaki explica que espécies irmãs são um produto do chamado processo de especiação, que acontece quando uma população de indivíduos se separa geneticamente por algum motivo, originando duas linhagens que evoluem independentemente uma da outra. Ou seja, embora pertençam à mesma família, as duas espécies possuem características próprias que as diferenciam, como seus cantos e penugens.
Cristina Yumi Miyaki - Foto: arquivo pessoal
Essas duas espécies se encontram no vale do Rio Paraguaçu – área que fica conhecida como zona de hibridização, já que podemos encontrar híbridos de papa-taoca-da-bahia e de papa-taoca-do-sul. Nesta localidade foi possível analisar que os cantos das aves se homogeneizam e ficam muito similares. Assim, os pesquisadores constataram que o canto não é uma barreira para a hibridização das espécies e contribui para a especiação, contrariando a prerrogativa de que os cantos geneticamente definidos impediam tais processos.
Localidades de amostragem dos cantos de aves do gênero Pyriglena em toda a Mata Atlântica. Círculos pretos e vermelhos representam as localidades de amostragem dentro das áreas de distribuição de P. leucoptera (A, B) e P. atra (B), respectivamente. A inserção mostra a zona de contato entre as duas espécies ao longo do vale do Rio Paraguaçu. O círculo azul (localidade 22) indica a zona de hibridação - Imagem: Reprodução do artigo/cedida pelo pesquisador
A pesquisa também explorou as razões para essa variabilidade geográfica nos cantos. De acordo com o pesquisador do IB e primeiro autor do artigo Marcos Maldonado Coelho, o tamanho das aves e a cobertura florestal do ambiente possuem participação nessa disparidade. Quanto maior o pássaro, menor será a frequência de seu canto, dado o impedimento mecânico de quão rápido a siringe – órgão responsável pela emissão de sons – será capaz de vibrar. No caso da vegetação, cantos que apresentam um maior intervalo temporal e lento podem ser ouvidos com recorrência em florestas que possuem uma cobertura mais densa.
Espectrogramas que mostram a variação geográfica nos cantos de machos do papa-taoca. A) Exemplo de um canto de Pyriglena atra (localidade 1 na figura 1B). B) Exemplo de um canto na zona de contato de P. atra. C) Exemplos de cantos de machos com plumagem híbrida (zona de hibridação, localidade 22). D) Exemplo de um canto de Pyriglena leucoptera (localidade 61 na figura 1A). E) Exemplo de um canto na zona de contato de P. leucoptera (localidade 26) – Imagem: Reprdução do artigo/E. P. Brettas
Sobre as perspectivas da pesquisa, Coelho diz que seguirá estudando o processo de especiação e os fatores de influência da variação vocal nesse grupo, agora sob um olhar da genômica – um ramo da genética que se dedica ao estudo do genoma completo de um organismo. “Testaremos algumas hipóteses relacionadas à importância dos cantos no campo genético, para uma melhor compreensão da especiação – que possui uma lacuna muito grande de conhecimento.”
Mais informações: e-mail maldonadocoelhom@gmail.com, com Marcos Maldonado Coelho; e-mail cymiyaki@ib.usp.br, com Cristina Yumi Miyaki
*Estagiária sob orientação de Luiza Caires e Valéria Dias
**Estagiária sob orientação de Moisés Dorado
Marcos Maldonado Coelho - Foto: arquivo pessoal
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