Os tambores Rum, Rumpi e Lê - Foto: Flickr

Musicalidade do Ogan vai além do Candomblé e carece de maior reconhecimento

Estudo apresentado na USP defende que Ogans do Candomblé são fundamentais para a música brasileira, e deveriam ter mais espaço para atuação na educação e na cultura

 14/04/2022 - Publicado há 3 anos     Atualizado: 13/05/2022 às 11:24

Autor: Antonio Carlos Quinto

Arte: Guilherme Castro/Jornal da USP

Na música brasileira e universal, o toque de um tambor é facilmente identificado! Seja na bateria de uma escola de samba, onde instrumentos (tambores) de diferentes timbres, formas e sons são responsáveis pelo ritmo. Seja pela arte de um músico percussionista, que pode atuar em diferentes ritmos musicais, lá está o “tambor” e seus diferentes “toques”. “Por isso defendo que a musicalidade de um mestre Ogan de Candomblé é de suma importância para a música brasileira”, diz o músico e pesquisador Vítor Israel Trindade de Souza.

Ele é autor de uma pesquisa de mestrado apresentada na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP intitulada O Ogan Otum Alabê: sacerdote e músico percussionista da Nação Ketu no Ilê Axé Jagun. Sob a orientação do professor Alberto Tsuyoshi Ikeda, docente colaborador do Programa de Pós-Graduação em Música da ECA e da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), Trindade analisa e destaca a importância do Ogan do Candomblé no que ele chama de um “reposicionamento necessário” dentro da música brasileira. “Além disso, o Ogan merece ser devidamente reconhecido pela cultura de um modo geral e pela sociedade como um todo”, enfatiza. E ser reconhecido numa sociedade, como defende Trindade, passa também pela profissionalização. “Ogan já é uma profissão devidamente reconhecida pelo Ministério do Trabalho. Assim, um mestre Ogan pode atuar, além da música, em diversos campos, como na educação e na cultura, por exemplo”, destaca o pesquisador ao Jornal da USP.

Ogan cidadão

A trajetória de Trindade como Ogan é um dos motivos pelo qual ele passou a empreender seu estudo. Há cerca de 30 anos, durante visita a uma casa de Candomblé, o músico foi, como ele diz, “designado pelo santo” a exercer a atividade de Ogan. E assim o fez na Casa de Candomblé Ilê Axé Jagun, onde cumpriu e seguiu todos os rituais necessários para se tornar um Ogan e, ao mesmo tempo, exercendo suas atividades de músico profissional e arte-educador.

Além do reconhecimento da musicalidade do Ogan dentro da música brasileira, Trindade também mostra em sua pesquisa o quanto o trabalho de um Ogan está ligado à educação, principalmente no que diz respeito à Lei 10.639/03 de diretrizes da educação.

Atabaque de cravilha no Ilê Axé Jagun, com Pejigan Manoel, Omoloiê Victor e Opotum William - Foto: Ialorixá Bárbara de Oiá, 2017

Mas, além de sua própria trajetória, Trindade resolveu descrever em sua pesquisa a trajetória de um outro Ogan da mesma casa, chamado “Otum Alabê” William Eduardo dos Santos, conhecido como Opotum Bicudo. “De certa forma, pude acompanhar o trabalho dele enquanto Ogan da casa e sua dificuldade para ganhar seu sustento”, conta Trindade. Ele ressalta que um Ogan na casa de Candomblé é o responsável por quase tudo, desde manutenções diversas das instalações até a sua principal função que é tocar e comandar os rituais. “O Ogan Otum Alabê é um sacerdote e um músico que se tornou profissional, porque na maioria das vezes ele vive exclusivamente do que recebe como honorários por seus serviços no tambor”, descreve o pesquisador. Mas nem sempre tais honorários são suficientes.

Além da trajetória de William Eduardo dos Santos, Trindade apresenta em sua pesquisa um recorte sobre a Nação Ketu, uma das nações referenciais do culto aos Orixás. Como relata Trindade em seu estudo, “o Ogan Otum Alabê, ou William Eduardo dos Santos, é o principal Ogan da Casa do Candomblé. Ele é o ‘faz-tudo’ no mundo da Nação Ketu. É o que conhece os preceitos de iniciação com todos os detalhes que o ritual exige, como as cantigas, os movimentos pertencentes a cada Orixá e as muitas outras importantes funções no cotidiano da Religião dos Orixás.”

Na educação

Além do reconhecimento da musicalidade do Ogan dentro da música brasileira, Trindade também mostra no estudo o quanto o trabalho de um Ogan está ligado à educação, principalmente no que diz respeito à Lei 10.639/03 de diretrizes da educação, que inclui no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da presença da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Africana” nas disciplinas dos ensinos fundamental e médio.

Todo o meu trabalho se direciona à cultura afro-brasileira, e é impossível falar de música afrodescendente sem falar do Ogan, seja ele de qualquer nação ou religiosidade, como os músicos cubanos ou do reggae jamaicano ou haitiano que tem as mesmas raízes", descreve Trindade.

“O meu trabalho mostra que a atividade do Ogan pode ser inserida na educação”, enfatiza o pesquisador. O próprio trabalho de Trindade, por exemplo, se fortaleceu por intermédio de projetos desenvolvidos na cidade de Embu das Artes, em São Paulo, em que foram atendidos mais de mil professores que tiveram acesso a ferramentas de aplicação da lei. “É onde surgia o trabalho do Ogan, por exemplo”, cita o músico, lembrando que nesses projetos houve participação de sua mãe, Raquel Trindade, e de seu filho, Marcelo Tomé.

Da tradição do Candomblé

O papel do Ogan, como conta Trindade, surge com a fundação, no início do século 19, de uma casa de Candomblé no bairro da Barroquinha, na cidade de Salvador, Bahia. “A casa foi fundada por três mulheres que frequentavam uma comunidade católica chamada Ordem da Irmandade da Boa Morte. As africanas Adetá ou Iá Detá, Iá Calá, Iá Nassô”, relata, destacando que, por ser um culto mais direcionado às mulheres, foi criado o cargo de Ogan. “Afinal, os homens teriam de ter uma função.”

Um Ogan, como descreve o pesquisador, geralmente nasce espiritualmente como abian (iniciante no Candomblé) e cresce como “homem tambor”. Ele vive o cotidiano do Candomblé, come a comida da casa desde criança: o acarajé, o acará, o omalá ou o caruru fazem parte do seu menu trivial. “Quando ele assume seu cargo na Casa, é um homem que tem todas as referências de um militar de alta patente e muito condecorado ou, mesmo, de um mestre ou doutor em sua profissão”, explica Trindade.

Da tradição familiar

Pavilhão do Teatro Popular Solano Trindade - Foto: Arquivo pessoal

O pesquisador e músico Vitor Trindade se considera um Ogan “tardio”, pois se iniciou na atividade por volta dos 30 anos. “Em geral, a maioria dos Ogans está na função desde pequeno, como é o caso de William”, diz. Além de músico e arte-educador, Trindade dirige o Teatro Popular Solano Trindade, localizado na cidade de Embu, na Grande São Paulo. Filho de Raquel Trindade, escritora, artista plástica e folclorista, Vitor Trindade é neto de Solano Trindade (pai de Raquel), que também foi poeta, folclorista, pintor, ator, teatrólogo, cineasta e militante do Movimento Negro.

Enquanto músico, Trindade já gravou sete discos: Ayrá Otá, Vitor da Trindade e Carlos Caçapava (2000, São Paulo), Revista do Samba (2001, Alemanha), Outras Bossas (2003, Alemanha), Revista Bixiga Oficina do Samba (2005, São Paulo), Hortensia du Samba (França, 2011), Samba do Revista (2011, São Paulo), Ossé, Vitor da Trindade (2015, São Paulo). Trindade orgulha-se em ressaltar que sua pesquisa é o “primeiro projeto de música negra na ECA”. Ele também é autor do livro Oganilu, O Caminho do Alabê, publicado em 2019 de forma independente. 

Mais informações: e-mail vitordatrindade@lwmail.com.br

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