Micropartícula reforçada com escudo de silício chega ao intestino e reduz efeitos de inflamação

Testado em camundongos, peptídeo contido em micropartícula diminuiu a inflamação e induziu a recuperação do tecido intestinal lesado como ocorre em doenças como Crohn e retocolite ulcerativa

 Publicado: 11/06/2024     Atualizado: 12/06/2024 as 8:12

Texto: Júlio Bernardes

Arte: Beatriz Haddad*

Molécula administrada por via oral chega até o trato intestinal sem perder seus efeitos, substituindo o uso de injeção, considerada mais invasiva aos pacientes  – Imagem: Arte Jornal da USP feita com imagens de Pixabay (@Elionas2) e Freepik

Micropartículas com o peptídeo AC2-26, elaborado a partir de uma proteína sintetizada pelo corpo humano, a anexina A1, reduziram a inflamação e os sintomas de Doenças Inflamatórias Intestinais (DIIs) em camundongos, ajudando a recuperar os tecidos do intestino, apontam testes feitos por pesquisadores da USP e do Hospital Israelita Albert Einstein. As micropartículas, feitas de silício e reforçada com polímeros, permitem que a molécula chegue ao intestino sem perder seus efeitos, substituindo a administração de medicamentos por injeção, considerada mais invasiva para os pacientes. As conclusões da pesquisa são relatadas em artigo publicado na revista International Journal of Nanomedicine.

As DIIs são doenças crônicas caracterizadas pela presença recorrente de inflamação no trato gastrointestinal, em especial no intestino grosso. “As mais comuns são a doença de Crohn e retocolite ulcerativa”, apontam Milena Broering, que pesquisou o tratamento em sua tese de doutorado, e a professora Sandra Farsky, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF) da USP, orientadora do trabalho. “Sua origem ainda não é totalmente conhecida, mas pode estar ligada a características do sistema imune associadas à genética, à exposição a fatores ambientais, medicamentos, alimentos e hábitos que alteram a microbiota intestinal, deixando-a com perfil mais agressivo, ou seja, capaz de atacar a parede do intestino e iniciar a inflamação.”

“Essas doenças não têm cura e os medicamentos somente diminuem a inflamação, tentando manter os pacientes fora das crises. Os principais sintomas são diarreia e emagrecimento”, relatam as pesquisadoras. “Os pacientes têm risco significativo de desenvolvimento de câncer colorretal e implicações sociais consideráveis decorrentes da situação debilitante enfrentada pelo doente. A incidência é de 9,6 por 100 mil pessoas, enquanto a prevalência no Brasil é de 0,1% da população. O número de pacientes tem aumentado mundialmente, e a doença também atinge os jovens.”

De acordo com Milena Broering e Sandra Farsky, as terapias atuais para as DIIs podem ser divididas em diferentes classes, porém a mais eficaz para o tratamento e o controle são os medicamentos biológicos. “Eles são anticorpos que atuam diretamente sobre alguns mediadores inflamatórios. No caso das DIIs, um dos alvos é o fator de necrose tumoral alfa (TNFa), produzido por células do sistema imune e que propaga a resposta inflamatória. Se há o bloqueio deste mediador, a inflamação tende a diminuir”, explicam. “Hoje eles são a melhor opção para quem tem DII, porém muitos pacientes desenvolvem resistência aos anticorpos e alguns não respondem às opções disponíveis, além de apresentarem reações de infusão, pois são administrados por via endovenosa (injeção). E são medicamentos de alto custo, o que onera os serviços de saúde pública.”

Milena Broering - Foto: Currículo Lattes
Milena Broering - Foto: Currículo Lattes

Recuperação do tecido

“Nosso grupo de pesquisa, junto com outros do mundo, tem mostrado que a proteína anexina A1, produzida em diversas células do corpo humano, controla respostas inflamatórias e induz a recuperação do tecido lesado. A proteína e seus fragmentos ativos (peptídeos), como o Ac2-26, foram produzidos para administração”, relatam as pesquisadoras. “Com estes dados, nós queríamos desenvolver uma forma farmacêutica para administrar tanto a proteína ou os peptídeos por via oral, porque os tratamentos existentes, administrados por injeção, não são totalmente efetivos.”

Com a colaboração dos grupos de pesquisas dos professores Marco Antonio Stefano, da FCF, e Márcia Fantini, do Instituto de Física (IF) da USP, foi desenvolvido um sistema de micropartícula mesoporosa para proteger o peptídeo até chegar ao intestino. “Proteínas e peptídeos sofrem ação de compostos e condições do organismo, como enzimas, diferenças de pH, interação com proteínas, entre outros, que podem modificar suas estruturas e suas atividades biológicas”, observam Milena Broering e Sandra Farsky. “Como os pacientes com DIIs são muito debilitados, o mais adequado seria administrar uma formulação farmacêutica que pudesse levar o medicamento para o intestino inflamado por uma via não invasiva.”

As micropartículas testadas na pesquisa são chamadas de Santa Barbara Amorphous (SBA-15). Feitas de silício, com tamanho médio de 2 micrômetros (µm), elas possuem uma estrutura hexagonal com nanoporos capazes de abrigar diferentes substâncias, como os peptídeos. O SBA-15 foi inicialmente desenvolvido por um grupo de cientistas da Universidade da Califórnia em Santa Barbara (Estados Unidos) e foi sintetizado para o estudo pelo pesquisador Luis Carlos Cides, do IF.

“Para otimizar a entrega local do peptídeo Ac2-26 e aumentar sua resistência ao longo do percurso no trato gastrointestinal, nós adicionamos um polímero conhecido como Eudragit®”, afirmam as pesquisadoras. “Este polímero já é empregado comercialmente para a entrega de medicamentos no intestino, administrado por via oral, porque ele se solubiliza em pH mais básico, como do intestino.”

Sandra Farsky - Foto: Currículo Lattes
Sandra Farsky - Foto: Currículo Lattes

Recuperação da inflamação

Após o desenvolvimento do nanomaterial, a detecção do caminho percorrido no organismo até o intestino foi feita pelo grupo de nanobiotecnologia do Hospital Israelita Albert Einstein. “Foram realizados experimentos com animais in vivo e ex vivo, estes com amostras de tecido”, explica o professor Lionel Gamarra, do Einstein, que coordenou os testes. “O percurso foi detectado com um tomógrafo de fluorescência IBIS, que usa a luz para produzir imagens que confirmaram a chegada das micropartículas. Isso já havia sido evidenciado por outras técnicas de análises dos tecidos, porém faltava uma verificação in vivo.

Camundongos foram usados para testar a micropartícula contendo Ac2-26. “Induzimos a inflamação do cólon (colite) nos animais e iniciamos o tratamento no ápice da doença, durante quatro dias seguidos, nos quais os camundongos receberam as micropartículas por via oral, uma vez ao dia”, descrevem Milena Broering e Sandra Farsky. “Observamos os sinais clínicos, como perda de peso, consistência e presença de sangue nas fezes para avaliar a eficácia do tratamento, e no final coletamos amostras do intestino para análises teciduais e celulares, tudo com aprovação do Comitê de Ética para o Uso de Animais.”

Em sentido horário, preparação da nanopartícula com a adição de silício e de polímero, testes "in vitro" com células, efeitos do peptídeo no intestino de camundongos e administração da molécula por via oral - Imagem: cedida pelas pesquisadoras
Em sentido horário, preparação da nanopartícula com a adição de silício e de polímero, testes "in vitro" com células, efeitos do peptídeo no intestino de camundongos e administração da molécula por via oral - Imagem: cedida pelas pesquisadoras

“Após um dia de tratamento, os camundongos começaram a recuperar o peso corporal e mantiveram redução dos sinais clínicos da doença, até o final da terapia”, ressaltam as pesquisadoras. “Nos tecidos e células, observamos que o Ac2-26, além de controlar a resposta inflamatória, induziu a regeneração tecidual e recuperou o comprimento intestinal normal. Observamos tanto na histologia quanto em marcadores celulares específicos que o tratamento modulou de forma positiva as junções celulares que compõem a barreira intestinal.”

Segundo Milena Broering e Sandra Farsky, desenvolver um medicamento a partir de estudos experimentais é um processo longo, complexo e cheio de desafios, que, além dos testes em camundongos, exige estudos adicionais em outros modelos animais e várias fases de ensaios clínicos entre humanos, demonstrando sua eficiência e segurança. “Além disso, há desafios técnicos e financeiros, incluindo a necessidade de investimentos substanciais para produção em larga escala e a realização de estudos de longo prazo para monitorar possíveis efeitos colaterais”, enfatizam. “Portanto, mesmo que os resultados iniciais sejam promissores, pode levar entre dez a 15 anos para que o medicamento esteja disponível na clínica, dependendo de vários fatores, incluindo o sucesso em cada etapa do desenvolvimento e a obtenção das aprovações necessárias.”

A pesquisa, desenvolvida pela doutoranda da FCF Milena Broering, teve a orientação da professora Sandra Farsky e a colaboração de Luana Fillipi Xavier, Pablo Scharf, Pâmela Pacassa Borges e Silvana Sandri, do Departamento de Análises Clínicas e Toxicológicas da FCF; Marco Antonio Stephano e Marcos Camargo Knirsch, do Departamento de Tecnologia Bioquímica e Farmacêutica da FCF; Luis Carlos Cides, Márcia Fantini e Paulo Leonidas Oseliero Filho, do Departamento de Física Aplicada do IF. Também participaram da pesquisa Ibrahim M. Sayed e Soumita Das, da Universidade de Massachusetts (Estados Unidos); Fernando Anselmo de Oliveira e Lionel Gamarra, do Hospital Israelita Albert Einstein.

Mais informações: e-mails sfarsky@usp.br, com a professora Sandra Helena Poliselli Farsky, milenafbroering@gmail.com, com Milena Broering, e lionelgamarra7@gmail.com, com Lionel Gamarra

*Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado

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