Fósseis de preguiça-gigante em perfeito estado são catalogados em São Paulo

Laboratório da USP trabalhou com ossos de três espécies de preguiças-gigantes, animais que viviam no solo e eram representantes da megafauna da América do Sul

 15/05/2024 - Publicado há 7 meses     Atualizado: 20/05/2024 às 17:31

Texto: Julia Custódio*

Arte: Joyce Tenório**

O pesquisador Artur Chahud e a estudante Gabriella Pereira observando os fósseis de preguiça-gigante - Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Há 10 mil anos, uma preguiça-gigante caiu e ficou presa no Abismo Iguatemi, no Vale do Ribeira de Iguape, e recentemente parte da sua ossada — em perfeito estado — foi catalogada por pesquisadores do Instituto de Biociências (IB) da USP.  Os exemplares encontrados oferecem informações sobre a anatomia da espécie e sobre o meio ambiente do Pleistoceno (entre 2,5 milhões e 11 mil anos atrás).

Os restos fósseis da preguiça Catonyx cuvieri, da família Scelidotheriidae, foram encontrados em 1999 na primeira expedição ao Abismo Iguatemi, localizado na região sul do Estado de São Paulo. O úmero completo (braço), um rádio (parte do antebraço) e uma falange intermédia (osso do dedo) do animal estavam no acervo do Laboratório de Paleontologia Sistemática do Instituto de Geociências (IGc) da USP.

Esses materiais foram estudados durante os últimos anos pelos pesquisadores do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos (LEEH) do IB, coordenado pela professora Mercedes Okumura, e catalogados em artigo publicado recentemente. Esse indivíduo Catonyx era um jovem adulto, sem doenças evidentes. De acordo com as medidas dos ossos, era um animal robusto, um dos representantes da megafauna brasileira.

Artur Chahud - Foto: Marcos Santos/USP Imagens

A espécie Catonyx cuvieri deixou vestígios em uma área biogeográfica restrita à região oriental da América do Sul, nordeste, sudeste, centro-oeste e sul do Brasil e Uruguai, e provavelmente conviveu com seres humanos. Essas preguiças terrestres, por serem animais grandes, provavelmente viviam em ambientes típicos de Cerrado em transição com florestas densas, chamados de ecótonos.

“Há hipóteses de que nos últimos 14 mil anos já haveria floresta na região, porém se ela estivesse consolidada dificilmente esses animais a habitavam. O que dá a entender que o bioma estaria em fase transicional de floresta com o Cerrado, favorecendo a entrada desses animais maiores, que se alimentam de vegetações típicas do Cerrado”, explica Artur Chahud, pesquisador do LEEH e autor do artigo.

Concepção artística da Eremotherium laurillardi, preguiça-gigante que viveu nas Américas há até cerca de 12 mil anos - Imagem: Rodolfo Nogueira

Segundo os pesquisadores, a análise de materiais fósseis é sempre desafiadora: nem sempre os ossos estão íntegros, muitas vezes estão quebrados ou com incrustações. “Ficamos horas e horas analisando o material, pensando ‘isso é do osso mesmo ou será que aconteceu alguma coisa no ambiente que danificou esse material?’”, diz Gabriella Pereira, estudante de graduação do IB e uma das autoras do artigo. “É assim mesmo, é um trabalho de comparação.”

No caso dos materiais coletados da Catonyx, os ossos são praticamente o modelo padrão devido ao perfeito estado de conservação que mantiveram até serem encontrados pelas expedições. “O Abismo Iguatemi é uma caverna vertical. Ele [o animal] caiu, mas ficou muito protegido, apesar de não estar inteiro. É um abismo que favoreceu a preservação das peças”, diz Artur.

Nos últimos anos, os pesquisadores também trabalharam com materiais fósseis que não tiveram tanta sorte assim. Esse é o caso do fêmur da preguiça terrestre argentina, da família Nothrotherium, que foi encontrado com incrustações e fraturas superficiais.

Essa ossada foi descoberta em uma expedição no Abismo Ponta de Flecha, também em São Paulo, em 1980. O material ficou 40 anos sem identificação no acervo do IGc, até que o LEEH o requisitou para estudo e o definiu como o primeiro indivíduo da espécie encontrado no Brasil. Apesar de haver outras espécies da mesma família que já foram encontradas no Brasil (como o Nothrotherium maquinense), o material do estudo apresenta semelhança com algumas espécies antigas de Megalonychidae encontradas na Argentina.

“Imagine a nossa surpresa ao pegarmos o material e encontrar uma preguiça que só existia na Argentina e que nunca tinha sido vista aqui, guardada em uma gaveta por tantos anos!”, relembra Artur. Assim, os pesquisadores publicaram uma nova ocorrência do animal, o que ampliou a área biogeográfica da espécie.

Gabriella Pereira - Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Apesar de não ter sido feita a datação de carbono-14 para saber a idade geológica do material, esse Nothrotherium sp. provavelmente viveu entre o Pleistoceno e o Holoceno (de 11 mil anos atrás até o presente). Era um jovem adulto robusto, que tinha em média 2 metros de altura. 

Também no Abismo Ponta de Flecha, foram encontrados fósseis de um Eremotherium, outra espécie de preguiça-gigante terrestre, que tem cerca de 4 metros de altura. O material analisado foi um calcâneo (calcanhar) de um indivíduo em fase de crescimento; o artigo foi aprovado e aguarda publicação.

Todas essas espécies de preguiças-gigantes (CatonyxNothrotherium e Eremotherium) não eram arborícolas, como as preguiças que conhecemos hoje. É possível determinar isso pelos tamanhos, improváveis de se manterem em cima de árvores por muito tempo. 

A partir desse material etiológico dos animais que viveram no passado é possível pensar como era a fauna do ambiente onde eles viviam. “A implicação que tiramos dos materiais é que é inviável um animal desse vivendo em uma floresta densa, o que é típico de animais muito grandes”, resume Gabriella. 

Os acervos

O laboratório trabalha com materiais de acervo, peças que foram encontradas em expedições e aguardam pesquisadores especializados para analisar as espécies e fazer a datação. 

Para Artur Chahud, “sem elas [as coleções], não fazemos nada”. Apesar de serem materiais recolhidos no passado, eles ainda têm importância no presente, como é o caso da ossada do Nothrotherium que estava esperando há 40 anos.

“Muita gente pensa que museu é um depósito de ‘coisa velha que não serve para nada’, mas essas coleções podem e devem ser estudadas, sob diferentes abordagens, e podem servir para criar conhecimento novo”, diz a professora Mercedes Okumura.

Mais informações: e-mails arturchahud@yahoo.com e gabriellacpereira@usp.br, com Artur Chahud e Gabriella Pereira, respectivamente.

*Estagiária com orientação de Luiza Caires


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