Escavando o brincar: pesquisa arqueológica investiga práticas infantis dos séculos 19 e 20

Estudo analisou brincadeiras, jogos e aprendizagens no cotidiano de crianças por meio de coleções arqueológicas, documentação escrita e iconográfica

 26/07/2024 - Publicado há 5 meses     Atualizado: 29/07/2024 às 13:26

Texto: Pedro Morani*
Arte: Brenda Kapp**

Fotomontagem feita por Brenda Kapp com fotos enviadas pela pesquisadora Daniela Alves

Crianças que viveram nos séculos 19 e 20 aprendiam por meio de brincadeiras de imaginação e de jogos de regras, em locais como o ambiente doméstico, em praças públicas e no meio institucional. Além disso, pessoas próximas influenciavam diretamente no processo de aprendizagem. O resultados fazem parte da tese de doutorado de Daniela Alves realizada no Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP.

No trabalho, a negociação e a cooperação, classificadas como formas de aprender, também foram analisadas e evidenciaram o papel de aspectos como a convivência familiar, a classe social, as atividades domésticas, escolares e culturais que praticavam.  

Para realizar a pesquisa, a arqueóloga se baseou em três pilares: coleções arqueológicas, documentação escrita e iconográfica. “O trabalho de Lev Vigotski [psicólogo], A formação social da mente, foi de grande utilidade. O autor, já nas primeiras décadas do século 20, afirmava que as brincadeiras de imaginação e os jogos de regras eram modos pelos quais as crianças se desenvolviam e aprendiam. Ele ressaltava que elas eram atividades situadas, isto é, não havia uma única possibilidade de jogo ou de brincadeira, elas seriam variadas, dependeriam do meio social e das interações que as crianças criariam com os próprios brinquedos, com os pares e com os adultos”, explica ela. “Tudo isso, em conjunto, possibilitou concluir que os brinquedos foram meios importantes que ajudaram as crianças em suas aprendizagens.”

Daniela Alves
- Foto: Arquivo pessoal
Daniela Alves - Foto: Arquivo pessoal
Cavalinho de chumbo 
- Foto: Arquivo pessoal
Cavalinho de chumbo - Foto: Arquivo pessoal

Na juventude, Daniela Alves fez o curso de magistério e foi professora de crianças no interior de Minas Gerais, onde nasceu. Além dessa relação antiga, ela foi motivada pela tentativa de relacionar sua profissão ao mundo de sua filha de oito anos. A pesquisadora afirma ter trazido, por meio da sua tese, uma temática constantemente ignorada pela arqueologia: a infância. “Aqui no Brasil realmente existem poucos estudos sobre a infância. Isso está mudando, mas ainda são poucos ou sem grande aprofundamento, como artigos. Dissertações e teses, que são trabalhos maiores, a gente não tem tantas publicações mesmo”, aponta a pesquisadora.

A pesquisadora afirma ter feito um trabalho minucioso na busca das fontes iconográficas, ou seja, conversou com pessoas que poderiam ter documentação destes locais, além de procurar informações sobre as crianças. “Isso porque os acervos que eu identifiquei, os contextos arqueológicos, não foram suficientes sozinhos para possibilitar interpretações sobre as vidas das crianças ou sobre suas infâncias”. Ela conta ter utilizado objetos já escavados, que possuem documentação histórica, e que pode ser acessada por meio do Iphan, o Instituto do Patrimônio Artístico e Histórico.

Os diferentes “baús” de brinquedos

Com o recorte temporal dos dois séculos anteriores ao atual, a historiadora encontrou coleções arqueológicas em três cidades. O Instituto Brasileiro de Arqueologia, no Rio de Janeiro, com a coleção do antigo Convento do Carmo; na cidade de São Paulo, com as da Praça das Artes e do Capão; e em Porto Alegre, com os sítios Praça Brigadeiro Sampaio e Solar Travessa Paraíso. Cada uma tem sua importância por certificarem a presença de crianças naqueles locais de uma maneira diferente do que já se fazia na arqueologia, que era procurar por ossadas.

No Centro de Arqueologia de São Paulo, onde se encontram hoje as peças do acervo da Praça das Artes e do Capão, havia brinquedos encontrados no porão de um antigo orfanato do início do século 20, e que funcionou até 1997.

 “A gente enquanto adulto, quando trabalha com coleções infantis, principalmente, se identifica com essa cultura de alguma maneira, lembra um pouquinho da infância, com esse material que era mais recente’, segundo Daniela. Mesmo sendo um lar de caridade, foram encontrados vários brinquedos usados pelas crianças ao longo de sua história, mostrando que, para além da condição de classe social, as crianças brincavam e aprendiam.

Pela diferença temporal e de localidade, os acervos conferidos apresentavam distinções, principalmente no material dos brinquedos. “O sítio antigo Convento do Carmo, que é do século 19, eu associei à Família Real, que poderia ter pertencido ao Dom Pedro I, Dom Pedro II, Dona Januária, enfim, toda a Família Real. A gente percebe que os objetos têm um material mais refinado, como dados de marfim, apitos de marfim. E assim, claro que a gente tem o contexto também de preservação, o local de identificação do material”, aponta Daniela.

Apito em marfim - Foto: Arquivo pessoal
Soldadinho de chumbo - Foto: Arquivo pessoal
Xícara em plástico - Foto: Arquivo pessoal
Peão em madeira - Foto: Arquivo pessoal

Boneca e guloseimas

Além dos objetos, o livro Nos tempos de Dante, de Maria Paes de Barros, também foi analisado. A obra, escrita quando a autora já era idosa, conta suas memórias de uma criança que cresceu na região central de São Paulo, na mesma localidade do sítio Praças das Artes. Maria Paes de Barros descreve sua rotina como uma menina, suas tarefas de costura, seus passeios pelo interior nas fazendas da família e suas brincadeiras com irmãos e irmãs. “Em certo trecho, ela descreve acerca de um momento conflituoso ocorrido entre a irmã mais velha, a tutora, que educava as meninas em casa, e o pai. A irmã devia pedir desculpas ao pai por ter feito brincadeiras inoportunas no momento dos estudos. Se assim fizesse, receberia como prêmio uma boneca dentro de um berço e muitas guloseimas. Nesse trecho ficou clara a negociação entre filha e pai”, explica Daniela.

Barros revelou experiências muito pessoais de sua infância, vivenciadas em uma família numerosa, de uma classe social abastada e com pessoas escravizadas, na segunda metade do século 19. Isso significa que as histórias por ela descritas eram muito particulares, dependentes daquele período histórico e daquele espaço específico. “Isso porque as vidas de outras daquele mesmo período eram diferentes, as crianças escravizadas e as da classe trabalhadora que viviam em São Paulo certamente tiveram outras experiências durante suas infâncias, com rotinas diárias de brincar muito distintas e consequentemente aprenderam de modos diversos”, acrescenta Daniela.

Vestimenta em algodão para boneca - Foto: Arquivo pessoal

O aprender brincando

Os vários brinquedos analisados, de diferentes localidades e períodos, mostram como eles foram e ainda são constituidores de infâncias, pois estão presentes até hoje nas vidas das crianças, possibilitando o desenvolvimento de brincadeiras e jogos que ajudam no aprendizado.  “Crianças que brincam, aprendem. Não precisa necessariamente ter um adulto que as ensine, elas aprendem muito entre elas, sozinhas aprendem coisas que não se ensina na escola. Se relacionando entre elas, entendem coisas por meio das brincadeiras que não são possíveis de outros modos”, acredita Daniela.

Bolinhas de gude e porcelana
- Foto: Arquivo pessoal
Bolinhas de gude e porcelana - Foto: Arquivo pessoal

Os objetos fazem parte e são importantes para as crianças desde o século 19. “Esses brinquedos foram meios que possibilitaram a construção de aprendizagens”, conclui a pesquisadora.

A tese está disponível neste link.

Mais informações: com Daniela Maria Alves, e-mail danymalves@gmail.com

*Estagiário sob supervisão de Fabiana Mariz
**Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado

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