Doença rara que afeta povoado de Goiás tem sua origem traçada à colonização europeia

Araras, no município de Faina, é a região com maior concentração de casos de xeroderma pigmentoso, doença genética não contagiosa que pode levar ao câncer de pele ainda na infância

03/08/2021
Por Bruna Irala
Arte Rebeca Alencar/Jornal da USP

Foto: EBC

Há dez anos, pesquisadores do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP estudam a manifestação do xeroderma pigmentoso (XP) no povoado de Araras, localizado no munícipio de Faina, em Goiás. A doença, genética autossômica e recessiva, ou seja, não ligada ao sexo e herdada pelos pais, é causada pela falta de um mecanismo de reparo a lesões no DNA provocadas pela luz solar. Ela pode levar a um acúmulo de danos resultando no câncer de pele. As lesões começam a aparecer durante a infância, na forma de sardas e manchas em regiões da pele expostas ao sol, além de um alto desconforto nos olhos provocado pela luz solar.

As pesquisas foram conduzidas com a coordenação do professor Carlos Frederico Martins Menck, no Laboratório de Reparo de DNA do ICB, junto à pesquisadora Veridiana Munford e a pós-doutoranda Ligia Pereira Castro. Segundo os pesquisadores, o XP atinge um a cada 400 habitantes de Faina  município de 7 mil habitantes, de acordo com o censo de 2010 –, todos os casos concentrados na região de Araras. Uma frequência alta para uma região rural, isolada geograficamente e com baixa densidade populacional.

Em um estudo de 2017, o grupo tinha identificado quais eram as mutações que atingiam o povoado de Araras. Mais recentemente, os pesquisadores descobriram que uma dessas mutações chegou ao Brasil por conta da colonização europeia, há cerca de 200 anos. 

 O estudo The Iberian legacy into a young genetic xeroderma pigmentosum cluster in central Brazil foi publicado na revista Mutation Research/Genetic Toxicology and Environmental Mutagenesis, no início de 2020. 

As duas mutações que ocorrem no gene POLH, uma no intron 6 e outra no exon 8, chegaram à comunidade goiana em períodos distintos. Os introns e os exons constituem os genes, que são segmentos de moléculas de DNA. As sequências codificantes dos genes são chamadas de exons e são intercaladas por segmentos não codificantes, chamados de introns. A mutação no intron 6, predominante nos portadores da doença em Araras, foi descoberta sendo exatamente igual à de quatro famílias que vivem na região do País Basco e de Cantábria, na Espanha. A mutação no exon 8 foi trazida em 1965 por uma família de outro município de Goiás e, apesar de ter ocorrido em duas famílias diferentes da Europa, não apresenta relação familiar com a população de Araras.

Carlos Menck – Foto: Arquivo Pessoal

A alta incidência da doença no povoado se dá por conta dos casamentos consanguíneos e do isolamento geográfico da localidade. “Temos um caso em que 50% do cromossomo de uma criança é igual ao de seu tio-avô, ambos com a doença. Isso ocorre porque não houve recombinação. Ou seja, são três gerações de relações entre primos”, afirma Ligia Pereira Castro.

Subtipos

Existem oito subtipos conhecidos de XP, que vão de XP-A a XP-G e sua forma variante, XP-V. Ao comparar as células dos pacientes de Araras com esses grupos, os pesquisadores descobriram se tratar da XP Variante. Segundo Ligia, “ela acontece quando existe a capacidade de reparo das lesões no DNA, mas as células não funcionam bem devido à ausência da síntese de translesão, um processo que ajuda a célula a tolerar a lesão do DNA”.

O diagnóstico do xeroderma pigmentoso é feito pelo sequenciamento de genes das vias de reparo celular. Castro explica que “diferentes genes estão envolvidos com a doença e cada gene tem uma função nas vias de reparo, de forma que a célula pode ter diferentes respostas à radiação ultravioleta. Nós avaliamos essas respostas de morte celular para caracterizar qual é o problema envolvido nas linhagens daqueles pacientes”. Por conta disso, dependendo de qual gene está afetado, a doença pode apresentar um pior ou melhor prognóstico.

Após anos de pesquisa, os pesquisadores desenvolveram um teste diagnóstico mais rápido, por meio do método PCR. “Esse teste só é possível na região de Araras porque identificamos as mutações antes. Hoje já conhecemos várias outras mutações XP no Brasil. Como algumas delas já apareceram em vários pacientes, isso indica um efeito fundador da mutação no País e mostra também a importância de se conhecer a história e a origem dessas mutações. Nesses casos em que a mutação é frequente, há interesse em se desenvolver testes PCRs”, explica Menck.

Segundo Ligia Pereira, “as consequências do xeroderma pigmentoso nos pacientes dependem muito do nível de exposição ao sol da pessoa e do seu modo de vida”. Como é uma doença de acúmulo de lesões, o diagnóstico precoce e o acompanhamento médico frequente são importantes e podem desacelerar o surgimento de tumores e evitar o desenvolvimento de câncer de pele. 

Lígia Pereira Castro – Foto: Arquivo Pessoal

Os principais órgãos afetados pela doença são a pele e os olhos, por estarem mais expostos. “Porém, ao longo dos anos, um acompanhamento mais detalhado da parte clínica dessas pessoas tem mostrado que eles também têm uma maior propensão de desenvolver problemas de tireoide, problemas hematológicos e mais tumores em órgãos internos. Por isso, a importância de acompanharmos a parte clínica deles”, ressalta Ligia.

O tratamento atual consiste na identificação e remoção de lesões e tumores que possam surgir, o uso de filtro solar com fator de proteção solar (FPS) sempre maior que 60 e a redução do contato com o sol. De acordo com Ligia, “existem muitos outros fatores externos que implicam o agravamento das manifestações da doença, que são mais determinantes que o genótipo em si”. O principal deles é o nível de fotoproteção de cada pessoa.

Mais informações: e-mails ligia.pereiracastro@gmail.com, com Ligia Pereira Castro, e cfmmenck@usp.br, com Carlos Frederico Martins Menck.


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