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Desigualdade de gênero pode afetar estrutura cerebral de mulheres
Hipótese levantada por estudo é que menor escolaridade, menos cuidados na infância e maior mortalidade materna tenham impacto não só psicológico, mas também na estrutura do cérebro
Um novo estudo encontrou evidências de diferenças significativas na espessura do córtex cerebral entre homens e mulheres em populações com grande desigualdade de gênero. Nas regiões do cérebro onde foi identificada, a variação é interpretada pelos pesquisadores como maior vulnerabilidade em termos de saúde mental – e pode indicar que as mulheres estiveram mais expostas a situações adversas desde o início da vida.
Quando comparadas, imagens de ressonância de homens e mulheres mostraram diferenças nas seguintes regiões: giro cingulado anterior caudal direito, giro orbitofrontal direito e córtex occipital lateral esquerdo. Nesta população, os homens possuíam uma espessura cortical maior em relação às mulheres nessas áreas. Ainda não há como determinar as consequências destas diferenças na prática, mas sabe-se que estas regiões são responsáveis pelo gerenciamento das emoções, pela resiliência em situações adversas e na regulação dos sentimentos negativos. Também são associadas ao processamento de memória, à avaliação de riscos e à modulação do medo e ansiedade.
O índice de desigualdade de gênero foi estabelecido pelo Fórum Econômico Mundial em 2006. Desde então, é avaliado anualmente em 156 países do mundo e abrange quatro dimensões: participação e oportunidade econômica, acesso à educação, empoderamento político, saúde e sobrevivência. Os dados são colhidos localmente e se traduzem em uma comparação das informações para compor um indicativo da diferença entre homens e mulheres, considerados a partir de sexo biológico somente, sem levar em conta as identidade de gênero. No artigo, os pesquisadores reconhecem que esta é uma limitação dos dados com que trabalharam, já que não há sobreposição entre sexo biológico e identidade de gênero.
Com essas informações, foi possível correlacionar situações de vida menos favoráveis das mulheres com o desenvolvimento neuronal. Assim, menos escolaridade, menos cuidados na infância, e maior mortalidade materna parecem ter impacto não só psicológico, mas também na estrutura do cérebro.
Pedro Gomes Rosa - Foto: Reprodução/YouTube
O que torna o estudo especialmente relevante é a utilização de diferentes populações combinadas e uma amostra grande, trazendo uma nova perspectiva sobre essas diferenças cerebrais. Foram colhidas e analisadas por um grupo internacional de cientistas imagens de ressonância magnética de 7876 adultos, entre 18 e 40 anos de idade, de 79 países.
O médico Pedro Gomes Rosa, pesquisador da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) que participou da pesquisa, destaca alguns pontos importantes para compreender os resultados obtidos:
Quando nascemos, existem diferenças entre os cérebros de bebês do sexo masculino e feminino. No entanto, as semelhanças entre eles são muito maiores, sem que sejam percebidas diferenças na região cortical. Os resultados da pesquisa não são explicados pela biologia somente, mas considerando uma variável social específica, a desigualdade de gênero, que pode ter impacto ao longo do crescimento. As variáveis sociais são difíceis de serem estudadas de forma isolada. Este estudo é pioneiro nesse sentido, pois conseguimos mostrar uma relação entre essa variável e modificações na espessura cortical.”
O pesquisador explica que as diferenças documentadas no estudo podem ser compreendidas como um reflexo do que aconteceu ao longo da vida, particularmente em alguns momentos da infância e adolescência. “Há dois momentos dramáticos em termos de neurodesenvolvimento – os chamados primeiros mil dias, que englobam a gestação e os dois primeiros anos de vida, além da puberdade. As meninas iniciam a puberdade antes dos meninos muitas vezes em um contexto de estresse, o que tem reflexos na saúde mental”, disse ao Jornal da USP.
No Brasil, de acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2021, as meninas de 13 a 17 anos se sentem mais tristes, sofrem mais violência doméstica e abuso sexual e possuem uma maior insatisfação com o próprio corpo em relação aos meninos. Esses dados justificam um quadro menos favorável em termos de bem-estar psicológico.
Para o neurocientista Raymundo Machado de Azevedo Neto, assistente de pesquisa no Instituto de Cérebro no Hospital Albert Einstein, o trabalho apresentou resultados coerentes com o que ele tem se deparado em diversos estudos. “Maiores diferenças de espessura cortical e volume de hipocampo entre homens e mulheres em populações com maior desigualdade social eram esperadas por conta dos estudos prévios. O que esse estudo tem de novidade é a possibilidade de verificar essas diferenças combinando diferentes populações e com uma amostra robusta.”
Raymundo Machado de Azevedo Neto - Foto: Lattes
As imagens foram feitas em diferentes países (veja mapa). Uma das preocupações dos pesquisadores foi verificar se havia a possibilidade de distorções locais, isto é, alguns dos países apresentavam resultados destoantes do resultado mais amplo. Entretanto, de acordo com os autores, os testes estatísticos mostraram que o resultado permanece constante nos diferentes países, sem apresentar variações de uma localidade a outra, ou mesmo entre regiões diferentes, o que reforça a possibilidade de um fenômeno que vai além dos aspectos culturais locais.
Mapa mostra regiões que entraram na pesquisa. No estudo, quanto maior o nível de desigualdade de gênero em um país, maior foi a diferença média encontrada na espessura cortical entre mulheres e homens - Imagem do artigo/PNAS Psychological and Cognitive Sciences
Ressalvas
Bruna Velasques - Foto: Reprodução/Instagram
É nessa direção que Pedro Gomes Barbosa conclui: “o estudo traz novas perguntas em vez de responder a questões que gostaríamos. As variáveis precisarão ser melhor compreendidas. Por exemplo, como pensar a prevalência de depressão entre as mulheres? Ou o abuso de substâncias entre os homens?”
O artigo foi liderado pelo pesquisador Nicolas Crossley, professor visitante da Universidade de Oxford, Reino Unido e por André Zugman, pesquisador do National Institute of Mental Health, nos Estados Unidos, que completou seu doutorado na Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp). Contou ainda com a colaboração dos professores do Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp) e dos pesquisadores do Laboratório de Neuroimagem em Psiquiatria da FMUSP.
Mais informações: e-mail pedrogomesrosa@gmail.com, com Pedro Gomes Rosa
*Pesquisadora colaboradora da FMUSP, com edição de Luiza Caires e Valéria Dias
**Sob supervisão de Moisés Dorado e Simone Gomes de Sá
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