Se, de um lado, países desenvolvidos dominam tecnologias de fontes de energia renováveis, essenciais para a descarbonização do setor elétrico, países de baixa e média renda seguem com dificuldades para implantá-las. Nos países em desenvolvimento, a transição energética caminha a passos lentos, mesmo que agendas de desenvolvimento sustentável, como Agenda 21 e Agenda 2030, e acordos multilaterais, como o de Paris, forneçam uma série de objetivos e metas para tornar o setor elétrico mais sustentável no mundo.
Um dos obstáculos que dificultam essa transição é a replicação de modelos de planejamento energético de forma desconectada da realidade desses países. É o que mostra um estudo realizado por pesquisadores do Grupo de Energia do Departamento de Engenharia de Energia e Automação Elétricas (Gepea) da Escola Politécnica (Poli) da USP, do Fapesp Shell Research Centre for Gas Innovation (RCGI) e da Universidade de Queensland, na Austrália. Um artigo foi publicado na revista Energy e pode ser acessado neste link.
Mudança de foco
“Quando se discute transição energética, fala-se de uma série de soluções encontradas na bibliografia internacional, que é muito mais voltada para estudos realizados nos países desenvolvidos. Portanto, são discussões distantes da realidade de países de baixa e média renda. Enquanto os países desenvolvidos falam em autonomia do consumidor, outros países ainda lutam para dar acesso a qualquer tipo de energia elétrica para parte da população”, exemplifica Stefania Gomes Relva, pesquisadora da Poli e autora do estudo.
“Assim, não basta promover a transferência da tecnologia, são necessários modelos e planejamento estratégico diferentes dos adotados no Norte global e, sobretudo, que haja mecanismos de estímulo que levem em conta outras necessidades, como a formação de mercado interno e de mão de obra qualificada para manter as plantas renováveis autossuficientes”, destaca.
Ou seja: para que a transferência de tecnologia funcione e, por consequência, a transição para um setor elétrico de baixo carbono e mais sustentável, é preciso também focar os países em desenvolvimento, e não só os desenvolvidos. “Temos muitos acordos internacionais e todos nós sabemos dessa disparidade entre o Sul e o Norte global, mas isso é muito pouco ou nem discutido nesses acordos de transferência de tecnologia”, diz Drielli Peyerl, jovem pesquisadora da Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo (Fapesp) no RCGI e coautora do estudo.
Principais desafios
Para rastrear essa desconexão entre as inovações propostas e o que, de fato, é implantado nos países em desenvolvimento, os pesquisadores fizeram uma revisão bibliográfica de artigos focados em questões de transição energética de países de baixa e média renda.
De 625 artigos analisados inicialmente, foram selecionados 85 que tratavam de projetos e demandas de transição energética em países em desenvolvimento, regiões ou blocos econômicos do Sul global. A partir disso, os pesquisadores foram coletando informações que respondessem à pergunta: quais elementos impulsionam ou atrasam a transição energética em países em desenvolvimento?
“Com esta abordagem, conseguimos ter uma visão abrangente de como essas informações se relacionam entre si, o que possibilitou uma análise em maior dimensão do que estava sendo apresentado nesses artigos. Pudemos mapear quais eram os elementos característicos da transição energética em países em desenvolvimento e, a partir desses elementos, identificamos quais eram os principais desafios”, explica Stefania Relva.
Problemas comuns
Na análise, os pesquisadores constataram que, já no planejamento para a transição energética, precisam ser considerados ainda aspectos como corrupção, imprevisibilidade econômica, formação de expertise e mercado interno nos países de baixa e média renda.
“Corrupção é um assunto em alta no Brasil e percebemos que também é um debate muito comum em outros países em desenvolvimento. Eles também enfrentam a falta de transparência política e uma instabilidade econômica muito grande, com um perfil econômico que varia rapidamente”, afirma Vinícius Oliveira da Silva, pesquisador da Poli e coautor do estudo.
Silva explica que, enquanto países desenvolvidos têm uma economia consolidada e maior capacidade de fazer planos, os países em desenvolvimento são muito instáveis, com variações de crescimento tão bruscas que se torna difícil projetar o crescimento econômico, de um ano para outro. “Com isso, nos países desenvolvidos fica muito mais fácil planejar no longo prazo e executar uma mudança no setor energético. Já por aqui é difícil até definir uma tendência”, conta.
Outra questão importante em relação a essa desconexão entre as realidades se refere à eficiência energética. Países desenvolvidos associam eficiência energética aos equipamentos de uso final da energia. Porém, no Sul global, o sistema é tão incipiente que perdas muito maiores ocorrem na transmissão e distribuição da energia elétrica. O estudo, inclusive, traz um gráfico sobre o nível de perda de energia dos países de alta, média e baixa renda. “Essas perdas também estão relacionadas à quantidade de ligações irregulares, os famosos ‘gatos’, nos países de baixa e média renda. Como perdemos muito mais energia no processo de transporte, já não dá para copiar um modelo igual ao dos países desenvolvidos”, diz Stefania.
Neste contexto, os pesquisadores sugerem uma maior interação entre países de baixa e média renda para troca de experiências ou pesquisa sobre a implantação de novas fontes energéticas. “Precisamos criar modelos próprios em vez de simplesmente importar modelos. Ao criar modelos domésticos, é possível trocar essas experiências com países do mesmo bloco – o que chamamos de cooperação Sul-Sul –, a fim de compartilhar essas tecnologias”, diz Drielli Peyerl.
Para ela, embora a proposta pareça simples, isso exige uma mudança na lógica com que a transição energética no setor elétrico tem sido realizada nos últimos anos globalmente. “É claro que precisamos da colaboração dos países desenvolvidos, mas não é só ajuda financeira ou apoio para replicar modelos. É preciso uma mudança significativa; de criar autossuficiência e formar um mercado interno nesses países. Caso contrário, por exemplo, a transferência de tecnologia vai continuar não funcionando tão bem como o esperado”, conclui.
Da assessoria de Comunicação do RCGI