Consumo excessivo de ultraprocessados aumenta em até 58% o risco de depressão

Pesquisa avaliou mais de 14 mil pessoas ao longo de oito anos; participantes que ingeriam alimentos minimamente processados não apresentaram depressão no período

O maior diferencial da pesquisa foi o enfoque dado à persistência da doença ao longo de oito anos – Imagem: BiancaVanDijk/Pixabay

 Publicado: 10/03/2025 às 8:00

Texto: Gabriela Nangino*

Arte: Beatriz Haddad**

Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), a depressão afeta quase 6% da população brasileira, o que corresponde a cerca de 12 milhões de pessoas. No mundo, são mais de 300 milhões de diagnósticos. O tratamento envolve terapia e medicação, mas o gerenciamento da doença também passa pela busca de um estilo de vida mais saudável, priorizando atividade física, alimentação e sono equilibrados. Diversos estudos associam estes fatores a uma melhora global e duradoura.

No caso da relação entre hábitos alimentares e depressão, porém, “muito do que se sabe vem de pesquisas conduzidas em países ricos”, conta Naomi Ferreira, pós-doutoranda da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), destacando a falta de dados que considerem a realidade dos países de baixa e média renda. Pensando em diminuir essa lacuna, ela liderou um estudo com brasileiros focado especialmente na relação entre o consumo de alimentos ultraprocessados e a incidência e persistência da condição psíquica. A pesquisa envolveu mais de 14 mil pessoas, com dados coletados ao longo de oito anos, e revelou que uma dieta com alto teor destes produtos tem um impacto substancial no risco de depressão persistente.

Foto de uma mulher de cabelos castanhos cacheados e olhos claros. Ela usa uma camisa preta. Ao fundo aparecem duas árvores desfocadas.
Naomi Ferreira - Foto: Linkedin

pesquisa teve o apoio do Laboratório de Fisiopatologia no Envelhecimento (Gerolab), que investiga o envelhecimento e as doenças crônico-degenerativas associadas. Claudia Suemoto, professora de Geriatria da FMUSP e diretora do Biobanco do Gerolab, já verificou anteriormente a associação entre o consumo de ultraprocessados e o declínio cognitivo na terceira idade, e foi responsável por supervisionar o trabalho recente. “Os ultraprocessados têm sido estudados em relação a vários desfechos de saúde”, explica Naomi. O artigo também contou com a participação de profissionais do Instituto de Psiquiatria (IPq) e da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP.

“As pesquisadoras da FSP trabalharam com o Carlos Monteiro, cientista brasileiro que descreveu pela primeira vez a classificação de ultraprocessados”, continua Naomi. Essa classificação, utilizada amplamente em escala mundial, divide os alimentos em quatro grupos: in natura ou minimamente processados; ingredientes culinários processados; alimentos processados; e ultraprocessados (que contêm aditivos como corantes e emulsificantes). No contexto da pesquisa, os grupos 1 e 2 foram unidos, pois os ingredientes são comumente usados na preparação e tempero de alimentos naturais.

Ao longo do estudo, houve três períodos de avaliação (ondas): 2008 a 2010, 2012 a 2014 e 2017 a 2019. Dentre os 13.870 participantes anteriormente livres de depressão, o grupo que consumia alimentos não processados ou minimamente processados não apresentou depressão em nenhuma das ondas avaliadas.

Publicada no Journal of Academy of Nutrition and Dietetics, a investigação foi realizada a partir de dados do Estudo Longitudinal de Saúde do Adulto (Elsa-Brasil), que acompanha a saúde de servidores públicos de seis capitais entre 35 e 74 anos. O Elsa acontece em diversos centros no País, e tem como objetivo avaliar o risco na população brasileira para doenças crônicas, em especial, as cardiovasculares e o diabetes. É considerado um levantamento fundamental para a adequação de políticas públicas de saúde às necessidades nacionais. Um dos enfoques do estudo é a dieta da população, associada às condição de vida, diferenças sociais, relação com o trabalho e gênero.

“O Elsa é um marco, porque é um estudo epidemiológico com um acompanhamento longo, e envolve uma população de quase 15 mil pessoas”, destaca Naomi. “Esses dados são muito importantes para entender um fenômeno que já é analisado em outros contextos socioculturais, mas que tem suas peculiaridades num País como o nosso, composto de desigualdades e adversidades do ponto de vista socioeconômico. ”

A foto mostra uma profissional da saúde de jaleco, segurando a mão de um paciente. Em destaque, no jaleco, a logo do Elsa Brasil
Os participantes são servidores públicos em Belo Horizonte, Porto Alegre, Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo e Vitória. A faixa etária selecionada auxilia a evitar influências externas, pois adolescentes e jovens tendem a um estilo de vida com outros fatores de risco além do consumo de UPF - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Perigo dos ultraprocessados

Informações consolidadas na ciência confirmam que uma alimentação primordialmente in natura auxilia a suprir as necessidades do corpo humano, reduzir a hipertensão e atrasar a neurodegeneração em pessoas de idade avançada. A chamada “dieta mediterrânea” fornece alto teor de antioxidantes e baixas quantidades de gorduras saturadas e açúcares adicionados: consequentemente, o estresse oxidativo é reduzido, e os níveis inflamatórios cerebrais diminuem. “A dieta mediterrânea é caracterizada por um consumo importante de frutas, legumes e verduras, e um consumo baixo de carne vermelha”, comenta Naomi Ferreira.

Em contrapartida, o consumo diário de ultraprocessados está relacionado ao aumento de processos inflamatórios, tanto do ponto de vista sistêmico quanto de neuroinflamação, propiciando perfis desregulados de neurotransmissores cerebrais. “A dieta ocidental que a população mundial tem aderido, muito baseada em fast foods e comidas prontas, tem um alto teor de calorias vazias — ou seja, você ingere a caloria, mas o corpo continua carecendo de nutrientes fundamentais”, aponta.

“A constituição do alimento ultraprocessado pode causar desequilíbrios na microbiota intestinal”, continua a pesquisadora. O eixo intestino-cérebro, que liga o sistema nervoso entérico ao central, participa da relação: vitaminas e minerais são cruciais para o bom funcionamento do sistema nervoso, e sua ausência aumenta o risco de diversas doenças, como demência e Alzheimer. “A intensa deposição das proteínas em um ambiente com mais marcadores inflamatórios predispõe o indivíduo a apresentar sintomas neurodegenerativos”, diz.

“O que comemos não tem impacto apenas sobre o intestino, mas sobre o perfil de nutrientes que o sangue fornece para as células”

Métodos de investigação

Para quantificar a incidência da depressão nos pacientes, o principal método utilizado foi o Clinical Interview Schedule-Revised (CIS-R), uma entrevista validada para sintomas psiquiátricos. O CSI-R se baseia em cinco aspectos: fadiga, concentração ou esquecimento, distúrbios do sono, depressão e ideias depressivas.

Os dados coletados foram comparados com as respostas de um questionário de frequência alimentar, que avalia padrões alimentares no período de um ano com base em 114 itens. Por fim, foi realizada a análise de Cox, que informa o risco do indivíduo desenvolver a depressão ou não, de acordo com seus hábitos. “Aqueles que consumiam mais ultraprocessados no início do estudo apresentaram um risco 30% maior de desenvolver o primeiro episódio de depressão”, realça a Dra. Naomi.

O maior diferencial da pesquisa, entretanto, foi o enfoque dado à persistência da doença ao longo dos oito anos. A análise de Cluster, um software estatístico, classificou os participantes do estudo em três grupos: nenhum diagnóstico de depressão, diagnóstico em somente uma das avaliações, e diagnóstico em duas ou mais avaliações. Juntamente a essa estratégia, uma análise de regressão multinomial avaliou o consumo de ultraprocessados de 1 a 4 e associou ambos os resultados.

“O resultado da depressão persistente foi inesperado porque não se tinha muitos estudos sobre isso, sabíamos muito pouco a respeito”, afirma a cientista. Os indivíduos que registraram maior consumo de ultraprocessados no início do estudo tiveram mais diagnósticos nas avaliações subsequentes: em relação ao grupo 1, o risco de depressão persistente dos integrantes do grupo 2 foi 30% maior; o risco do grupo 3 foi 39% maior, e com relação ao grupo 4, o risco foi 58% maior.

Prato de hambúrguer com batatas fritas, e a mão de uma pessoa pegando uma batata
Naomi complementa que os alimentos ultraprocessados são consumidos em maior quantidade do que fisiologicamente necessário, devido à sua praticidade e palatabilidade - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Condição e estilo de vida

O estudo também levou em consideração variáveis associadas para o desenvolvimento da depressão, como aspectos sociodemográficos e dados clínicos.

“O excesso de trabalho, que causa estresse, sedentarismo e problemas de sono, mostra que o consumo de ultraprocessados costuma acontecer associado a outros fatores de um estilo de vida não saudável”

Portanto, a pesquisa também questionou os participantes sobre seus hábitos, como consumo excessivo de álcool, tabagismo e frequência de atividade física.

Os resultados revelaram associações a múltiplos fatores: jovens, mulheres, negros ou pardos, fumantes, pessoas de baixa renda, pessoas com maior ingestão total de energia diária e maior Índice de Massa Corporal (IMC) eram mais propensos a receber o diagnóstico na primeira avaliação. Por outro lado, participantes com um diploma universitário, casados e fisicamente ativos eram menos propensos a sofrer com a depressão.

A cientista também ressalta que o alto consumo de ultraprocessados leva ao sobrepeso e à obesidade, e essas condições aumentam o risco cognitivo em geral. Para ela, um grande desafio é conscientizar a população da importância de refletir sobre seus hábitos alimentares.

“Se só pensarmos na gratificação a curto prazo, podemos sacrificar o longo prazo com um transtorno mental e com diversas outras doenças a que os ultraprocessados estão associados.” 

Pelo lado positivo, a análise estatística da substituição de alimentos demonstra que uma pequena diferença já pode surtir efeitos relevantes: substituindo 5% do consumo de ultraprocessados pela mesma quantidade calórica em alimentos minimamente processados, o risco de um indivíduo desenvolver depressão ao longo dos anos diminui em 6%. Ao substituir 20% desses produtos, é possível reduzir a probabilidade em 22%.

Solucionar este problema em nível social, entretanto, é uma tarefa complexa, visto que a diversidade socioeconômica da população brasileira interfere diretamente no acesso à alimentação de qualidade. “Os ultraprocessados são produzidos de forma a aguentar por muito mais tempo na prateleira, então são financeiramente mais acessíveis do que o alimento in natura, e por isso pessoas de renda mais baixa tendem a consumi-los”, finaliza a pesquisadora.

O artigo Higher Ultraprocessed Food Consumption Is Associated With Depression Persistence and Higher Risk of Depression Incidence in the Brazilian Longitudinal Study of Adult Health está disponível on-line e pode ser lido aqui.

Mais informações: e-mail naomivferreira@gmail.com, com Naomi Ferreira.

*Estagiária sob orientação de Tabita Said


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