
Embora 1,8 milhão de meninos e homens no Brasil tenham sofrido violência sexual ao longo da vida, apenas 9% desses casos foram denunciados, segundo dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2022, elaborada pelo Instituto Brasileiro e Geografia e Estatística (IBGE). Esse número contrasta com os 46% das meninas que denunciam os abusos, de acordo com o Ministério da Saúde. Essa subnotificação dos casos de violência sofridos por vítimas do sexo masculino se dá, principalmente, por conta dos estereótipos associados à masculinidade.

A violência sexual é definida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como “todo ato sexual, tentativa de consumar um ato sexual ou insinuações sexuais indesejadas, ou ações para comercializar ou usar de qualquer outro modo a sexualidade de uma pessoa por meio da coerção por outra pessoa, independentemente da relação desta com a vítima”. Qualquer pessoa pode ser vítima de violência sexual e, ainda, de acordo com a PNS, no Brasil, 9,4 milhões de pessoas já sofreram violência sexual alguma vez na vida.
O psicólogo e mestrando em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP Lucas Mascarim da Silva reafirma os estereótipos masculinos como fator de subnotificação. “Existe o ideal da masculinidade hegemônica, que é o ideal tradicional do homem forte, que não passa por situações de degradação ou que, quando passa por elas, não abaixa a cabeça e lida sozinho com elas. Esses ideais não dão espaço para que haja o compartilhamento de vivências de sofrimento, adoecimento e fragilidade.”
O psicólogo diz ainda que “os efeitos que passar por uma violência sexual causam em alguém afetam as formas de se relacionar dessas pessoas, levando-as à um processo de isolamento ou ocultamento dessa experiência, que está relacionado ao sentimento de culpa e de medo do que pode acontecer caso o abuso seja relatado”. Essa subnotificação, segundo Silva, tem impactos listados na literatura. “Quando verificamos estudos que buscam entender a experiência de vida das pessoas que vivenciaram uma situação de abuso sexual, nós temos quadros específicos de saúde mental, muitas vezes descritos a partir de psicopatologias. Entre eles estão o transtorno de estresse pós-traumático, depressão, autolesão e outros tipos de comportamentos suicidas, e o uso problemático de álcool e outras drogas.”
Porém, o especialista afirma que, quando uma pessoa for pensar sobre os impactos da violência sexual, ela “não pense apenas sobre as psicopatologias, porque os impactos de ter passado por uma violência sexual, para qualquer pessoa, não se resumem apenas a quadros psicopatológicos. É importante compreender os outros efeitos dessa violência, como a forma com que essas pessoas estabelecem relações ao longo da vida, sejam elas íntimas, familiares ou de amizade”. A explicação de Silva para isso é que “quando a pessoa passa por uma situação de tanta violência e de tanta insegurança, de ser invadido por outra pessoa, a possibilidade de conhecer e de se aproximar de novas pessoas vai se tornando cada vez mais difícil”.
Sinais da violência

Além dos efeitos do abuso sexual citados por Silva, a médica psiquiatra do Serviço de Atenção à Violência Doméstica e Agressão Sexual (Seavidas) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (HCFMRP) da USP Lorena de Souza Rodrigues do Carmo cita alguns sinais de alerta da violência sexual nos meninos e nos homens. Ela diz que “eles começam a mostrar algumas mudanças no humor e no comportamento. Podem parar de fazer atividades que gostavam, principalmente as que empregam contato físico”.
No caso de crianças, Lorena diz que “se é uma criança tranquila, ela pode começar a dar trabalho na escola. Outro sinal para se prestar atenção e que deve deixar os responsáveis em alerta é se a criança começar a ficar muito sexualizada para a idade dela”.
Para o médico psiquiatra Lean Pampana Basoli, também do Seavidas, os responsáveis por crianças devem ficar atentos a elas e ter uma boa comunicação. “Nós orientamos aos responsáveis a ter uma comunicação aberta desde a infância e criar um ambiente acolhedor, onde as crianças possam se sentir confortáveis para conversar sem se sentir julgadas e desconfortáveis.”
Basoli ainda diz que a educação sexual para crianças é um caminho para evitar os abusos e, caso eles ocorram, as crianças saibam identificar e entender o que aconteceu. “Os meninos precisam ser ensinados sobre as partes do corpo, quais são os nomes corretos dos órgãos genitais para poder identificar e entender quais são os limites corporais deles. Eles também devem ser ensinados que ninguém tem o direito de tocar as partes íntimas deles, nem mesmo amigos, familiares ou figuras de autoridade.”
“Outro ponto importante para os responsáveis é que eles supervisionem quem são os responsáveis nos ambientes que os filhos frequentam, sejam eles professores, treinadores ou até mesmo outros familiares em posição de cuidado quando os pais estão ausentes”, afirma o médico. Além disso, ele afirma que os pais devem ficar atentos “aos riscos da internet. É importante que as crianças sejam orientadas sobre esses riscos, que podem envolver conversas inapropriadas e o envio de fotos”.
Perfil do abusador
Outro ponto tocado tanto por Silva quanto por Lorena é o perfil do abusador sexual. O psicólogo diz que “a maior parte dos autores de violência sexual compõem o núcleo familiar das pessoas com as quais eles cometem essa violência ou abuso. Às vezes, não necessariamente da mesma família, mas do mesmo ambiente doméstico ou da vizinhança próxima”. Para ele, o fato dos abusadores serem pessoas conhecidas das vítimas contribui para a subnotificação. “Essa proximidade do abusador com a vítima gera uma série de impactos, porque o processo de denúncia vai gerar uma série de necessidade de mudanças no núcleo familiar, quebrando vínculos e gerando afastamento, o que dificulta o processo de relatar a experiência da violência sexual.”
Lorena reforça a fala de Silva afirmando que “a imagem daquele estuprador que é uma pessoa estranha e que ataca no meio da rua é uma situação isolada. Na maioria dos casos, são pessoas que fazem parte do círculo de confiança da vítima e de seus familiares”. A médica ainda toca no ponto do gênero dos abusadores, afirmando que “a grande maioria dos abusadores são do sexo masculino. Existem, sim, abusadoras mulheres, mas a maioria dos estudos mostra um número baixo, por volta de 5%”.
Ela ainda diz que “esse número é provavelmente subestimado, justamente porque, na nossa cultura, mesmo que a mulher seja mais velha ou que esteja em uma situação de poder, é vista como uma ‘relação consensual’”. A ideia da consensualidade das relações citadas pela médica se dá “pelo falso pensamento de que o homem sempre tem desejo sexual, desde pequeno, mas a verdade é que ele não está preparado e não tem maturidade neurológica para isso”.
Ribeirão Preto
A cidade de Ribeirão Preto conta com um serviço próprio de atendimento a vítimas de abuso sexual e violência doméstica. O Seavidas atendeu, em 2023, 766 casos de violência. Desses, 105 foram casos de violência sexual contra meninos e 77 dos atendidos tinham menos de 13 anos. O psiquiatra Basoli diz que “no Seavidas, nós temos um total de 13,7% de casos masculinos do total de casos atendidos, e o percentual de crianças é muito alto: 73% das vítimas estavam abaixo dos 13 anos. Entre 14 e 17 anos, foram 11%, e acima de 18 anos, 18,15%”.
Qualquer pessoa vítima de violência doméstica ou abuso sexual pode ser encaminhada ao Seavidas através da Unidade de Emergência do HCFMRP, em casos de violência sexual aguda, recém ocorridas ou que ocorreram em até cinco dias. Após cinco dias da violência sofrida, os pacientes podem ser encaminhados por unidades integrantes do Sistema Único de Saúde (SUS), como Unidades Básicas de Saúde (UBS) e Unidades de Saúde da Família.
O atendimento à violência sexual até cinco dias após ocorrida segue o Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas definidas pelo Ministério da Saúde, oferecendo medicações para a prevenção de infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), anticoncepção de emergência no caso de mulheres que tenham sido estupradas, e acolhimento psicossocial.
“No Seavidas nós temos uma equipe multidisciplinar composta por psicólogos, médicos e assistentes sociais”, diz a médica Lorena, garantindo que “com esses diferentes pontos de vista nós conseguimos ter um olhar integral para a violência, para podermos cuidar dessa ferida, e para a vítima, para que ela possa seguir a vida”.
Denuncie
Caso você ou alguém que você conheça tenha sofrido violência sexual, a denúncia pode ser feita de forma anônima e gratuita através do Disque 100. Em caso de violência que envolva crianças e adolescentes, procure o Conselho Tutelar. Já para flagrantes ou se a violência estiver acontecendo no momento, ligue para o 190. Para mais informações e orientações, o Seavidas disponibiliza o telefone (16) 3605-3736 e o e-mail seavidas@hcrp.usp.br.
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