
O casamento infantil é uma realidade em diversos países do mundo. No Brasil, ele afeta 36% das meninas menores de idade e é legalizado a partir dos 16 anos, desde que com a autorização dos pais. No entanto, não é raro encontrar meninas ainda mais jovens em relacionamentos e uniões com homens maiores de idade, o que pode causar impactos importantes no desenvolvimento dessas meninas, como a perpetuação da desigualdade de gênero e da violência doméstica, impacto na escolaridade e isolamento social, além do descumprimento de direitos previstos na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Cláudio Amaral do Prado, juiz titular da Segunda Vara Criminal da Infância e da Juventude de São Carlos e professor da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP) da USP explica que “as menores de 14 anos que mantêm uma relação sexual consentida com o maior de 18 anos são vítimas de um crime previsto no artigo 217-A do Código Penal, que é o estupro de vulnerável”. O professor diz ainda que “nós encontramos, com uma frequência maior do que possamos imaginar, meninas com 11, 12 ou 13 anos vivendo uma união estável com companheiros maiores de 18 anos e com filhos, perpetuando um delito”.
O crime, de acordo com o professor, pode ser comprovado a partir de documentos, das certidões de nascimento da vítima e do autor do crime, e também das certidões de nascimento dos filhos frutos dessa união, comprovando que o estupro de vulnerável aconteceu quando a menina ainda era menor de 14 anos. “O estupro de vulnerável é um crime considerado hediondo, que gera uma grave alteração no desenvolvimento humano da menina.”

A pena para quem pratica o crime de estupro de vulnerável, prevista no artigo 217-A do Código Penal, é de oito a 15 anos de reclusão, independentemente se houve consentimento da vítima ou não. No entanto, uma vez que o criminoso seja preso, acontece o desmantelamento da família. Para evitar essa situação, Prado explica que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem tomado outras medidas. “O Superior Tribunal de Justiça tem se posicionado no sentido de que não se deve relativizar a vítima nessas situações, ou seja, o crime aconteceu. Entretanto, apesar desse discurso formal, nós encontramos situações excepcionalíssimas em que o STJ reconhece uma distinção muito particular a tudo desse universo temático e faz uma ponderação de interesses”, diz o professor, que continua, “de um lado, o crime foi praticado e há a necessidade de responsabilizar o infrator, e de outro, há a manutenção da família. Porém, hoje temos visto raras decisões em que o autor do crime é absolvido em nome da manutenção da família”.
Amaral também diz que a união com adultos gera prejuízos para o desenvolvimento dessas meninas, além do descumprimento de direitos garantidos por lei. “Quanto mais cedo uma menina se unir a alguém, maiores serão os prejuízos, porque ela terá seu desenvolvimento humano interrompido precocemente. O principal prejuízo é na formação escolar, seguido da interrupção de convivência com a comunidade.” Ele também menciona que direitos fundamentais como dignidade, respeito e liberdade, previstos na Constituição Federal e no ECA, também serão afetados.
Aspectos psicológicos e violência
Além dos prejuízos físicos, o casamento precoce pode causar danos psicológicos às meninas. A psicóloga Daniela Torres de Andrade Lemos diz que “o casamento infantil impacta a saúde mental das meninas à medida que ele afeta toda a rede de contatos que elas têm, porque a tendência é que ela fique restrita ao cuidado familiar e ao cuidado ao marido”.

Outro fator que afeta a saúde mental dessas jovens é a sensação de poder que esse casamento dá para elas, principalmente nas camadas mais pobres, segundo Daniela. “Essas meninas, com frequência, não têm muitos outros projetos de vida nem muitas aspirações com relação aos estudos e, muitas vezes, não há muitos exemplos disso dentro das próprias famílias, então elas acabam tendo a visão de que se tornarem mães e serem escolhidas como esposas, principalmente por um homem mais velho, as envaidece.”
Porém, essa situação pode gerar isolamento social que, segundo a psicóloga, “é sempre um grande problema porque nós somos seres sociais e essa menina, inclusive, pode criar dependência no marido”. A psicóloga ainda diz que muitas vezes “a menina não quer mais estar ali, mas não tem como sair”. Segundo ela, esse isolamento social empobrece as relações dessas meninas e faz com que elas fiquem mais vulneráveis à violência física e psicológica.
Daniela ainda afirma que “uma menina que se casa antes dos 18 anos tem 22% a mais de chance de sofrer violência intrafamiliar”. O professor Prado reforça a fala da psicóloga. “Qual seria a possibilidade de uma menina, uma criança ou uma adolescente em um casamento infantil recusar-se a manter relações sexuais com o seu companheiro? Ela certamente seria forçada a manter a relação sexual, independentemente do seu estado emocional.” Situações como essa, segundo o professor, causam deformidades na forma como as meninas pensam e encaram a afetividade, fazendo com que elas aprendam, erroneamente, que são obrigadas a manterem relações sexuais com seus companheiros, independentemente de suas vontades.
*Estagiária sob supervisão de Ferraz Jr e Gabriel Soares