Trabalho por plataformas digitais promove falsa sensação de autonomia

Especialistas afirmam que a questão previdenciária é uma das mais preocupantes acerca da precarização do trabalho plataformizado, que precisaria receber uma maior atenção do Estado

 03/01/2024 - Publicado há 10 meses
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Plataformas digitais conectam trabalhadores a empresas e clientes e têm assumido uma importância crescente no mundo do trabalho – Arte Jornal da USP sobre ícones de aplicativos

 

Cerca de 1,5 milhão de pessoas trabalharam por meio de plataformas de aplicativo, como Ifood e Uber, em 2022, de acordo com um levantamento realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A pesquisa faz parte de um módulo inédito: Teletrabalho e Trabalho por Meio de Plataformas Digitais da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua). 

Os dados revelam o cenário brasileiro frente ao trabalho plataformizado e suas implicações na economia e condições trabalhistas. Um dos exemplos é a proporção desses trabalhadores que contribuem com a Previdência Social, apenas 35,7%. Na visão de Flávio Roberto Batista, professor da Faculdade de Direito (FD) da USP, a questão previdenciária evidencia um quadro alarmante da precarização do trabalho. 

Do ponto de vista econômico, Arnaldo Mazzei Nogueira, pesquisador e professor da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) da USP, afirma que o setor movimenta renda, consumo e, consequentemente, a economia brasileira e revela uma tendência de trabalho por demanda. No entanto, ele também destaca que as ocupações informais vão na contramão das normas e regras acerca de um trabalho decente, determinadas pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). 

Condição trabalhista no Brasil  

O trabalho plataformizado por aplicativos promove um afastamento das obrigações trabalhistas, a partir da negação de um vínculo sob a justificativa de autonomia do empregado. No entanto, Batista explica que, historicamente, o Direito do Trabalho se baseia na chamada “primazia da realidade”, em que se privilegia o que acontece na prática independentemente do que foi acordado entre os lados. 

Arnaldo José Franca Mazzei Nogueira – Foto: Arquivo pessoal/LinkedIn

A partir desse princípio, o que se nota na relação dos trabalhadores mediada por aplicativos é uma falsa ideia de autonomia, uma vez que o vínculo trabalhista ainda apresenta uma subordinação, mesmo que fora dos padrões tradicionais. “O que se tem dito nas pesquisas mais recentes sobre isso é a chamada subordinação algorítmica, os elementos dessa prestação de serviço são definidos fora do controle do trabalhador, por meio de um programa de computador que é conhecido popularmente como algoritmo” pontua Batista. 

Os dados do IBGE também revelam que essa forma de trabalho atinge, em grande medida, a parcela da população sem ensino superior completo. “Esse contingente enorme de pessoas é o alvo ideal para essas empresas, porque elas precisam sobreviver e é assim que as empresas conseguem a adesão para que elas aceitem qualquer tipo de condição de trabalho”, ressalta. O professor de Direito ainda chama a atenção para a falta de investimento do Estado para a melhor qualificação da mão de obra. 

Máscaras da precarização 

A precarização do trabalho, com a redução ou a ausência de direitos, tem se mascarado por trás da onda de celebração da informalidade na forma do empreendedorismo, de acordo com Batista. Tendo em vista que a forma do trabalho não influenciará na demanda por esses trabalhos, ele destaca a necessidade da modificação na forma de distribuição entre a remuneração do trabalhador e lucros. 

“Por isso a propaganda é tão forte para que essa atividade reste na informalidade, quanto mais informal esse trabalho for, mais favorável ao lucro da empresa vai ser essa distribuição da renda gerada pelos trabalhos de aplicativo”, considera Batista. O tema, no entanto, apresenta muitos aspectos ainda em discussão no Legislativo e no Judiciário brasileiro.

Proteção do trabalhador

A Previdência é uma das principais atingidas por essa precarização do trabalho. Ao ser considerado autônomo e não subordinado perante a Previdência Social, o indivíduo se torna responsável pelo próprio recolhimento e, nas precárias condições financeiras em que essas pessoas vivem, isso gera uma evasão. 

Flávio Roberto Batista – Foto: FD-USP

O professor Nogueira pondera que o maior impacto da não contribuição dessa parcela com a Previdência atinge as condições sociais da população e não o planejamento público, visto que compõe um contingente relativo muito pequeno. “Não estou preocupado com planejamento público, estou preocupado com a tragédia social que isso significa para a sociedade brasileira, que não vai ter direito à Previdência Social”, ressalta.  

Mesmo que o trabalho plataformizado por aplicativos apresente pontos positivos – como a possibilidade de uma renda acima da média em alguns casos –, Nogueira chama a atenção para uma maior responsabilização do Estado de promover políticas públicas voltadas para o trabalho. A Previdência Social revela, por exemplo, a necessidade de se refletir acerca da necessidade de reduzir a concentração de renda. 

Nogueira comenta sobre políticas públicas voltadas para questões trabalhistas, como a redução da jornada de trabalho e, em decorrência disso, a ocupação de mais pessoas. “A tendência dos últimos anos é contrária, estamos reduzindo o número de pessoas e aumentando as jornadas de trabalho acima do que prevê a lei trabalhista de 40 horas semanais, por vezes, chegando a 48 a 50”, alerta. Além disso, com maior investimento em uma educação qualificada, tanto no nível básico quanto técnico, o pesquisador prevê uma inserção no mercado de trabalho com maior dignidade.

*Sob supervisão de Paulo Capuzzo


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