“Tempos extraordinários exigem medidas extraordinárias”

Numa decisão histórica, o governo dos EUA, excepcionalmente, apoia a renúncia às patentes das vacinas contra a covid-19

 07/05/2021 - Publicado há 4 anos     Atualizado: 09/05/2021 às 9:38
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Produção da vacina CoronaVac, que combate o sars-cov-2, causador da covid-19, do laboratório Sinovac em parceria com o Instituto Butantan – Foto: Senado Federal

O governo de Joe Biden abriu uma nova frente em sua estratégia de enfrentar dogmas econômicos, quase cláusulas pétreas, imperantes nos EUA há décadas. A primeira foi o pacote de quase US$ 6 trilhões em programas governamentais para combater os efeitos da pandemia e reanimar a economia estadunidense, reentronizando o Estado como forte indutor de desenvolvimento. Agora pôs em prática uma promessa da campanha eleitoral que havia chamado pouca atenção. Em comunicado, a representante comercial dos Estados Unidos, Katherine Tai, uma espécie de ministra das relações comerciais internacionais, informou: “O governo acredita fortemente nas proteções à propriedade intelectual, mas com o objetivo de acabar com esta pandemia apoia a renúncia dessas proteções para as vacinas covid-19”. E acrescentou: “Tempos extraordinários exigem medidas extraordinárias”.

Com o gesto, os Estados Unidos manifestaram o seu apoio a uma ação liderada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para suspender temporariamente a proteção de patentes das vacinas contra a covid-19. “É um momento monumental”, reagiu Tedros Adhanom Ghebreyesus, presidente da OMS, alvo constante de injustificadas críticas do ex-presidente Donald Trump, que afastou seu país da organização acusando-a de fazer política a favor dos interesses chineses.

A ação nasceu de proposta feita pela Índia, a maior produtora de medicamentos genéricos do mundo, e pela África do Sul, país que foi vítima de uma das maiores crises de Aids no planeta, cujo objetivo seria aumentar a produção de vacinas no globo, facilitando o acesso a elas aos países em desenvolvimento e pobres. Os últimos levantamentos apontam que cem membros da OMC são favoráveis à proposta, enquanto 64 ainda não se manifestaram. O presidente Emmanuel Macron, da França, que era contrário à quebra das patentes, mudou de posição e aderiu. A Inglaterra mostrou disposição para discutir. Surpreendentemente, a chanceler Angela Merkel, da Alemanha, forte produtora de medicamentos, manifestou ressalvas.

O Wall Street Journal acusou Biden de roubo

A indústria norte-americana, como era de se esperar, reagiu com a contrariedade costumeira. O Wall Street Journal, porta-voz dos interesses empresariais dos EUA, produziu um editorial com o título “O roubo das patentes de vacinas por Biden”, acusando-o de ter se ajoelhado “aos progressistas” e que sua iniciativa não acabaria bem nem para os EUA ou para o mundo. Chamou de falsa a suposição que a quebra de patentes, mesmo temporária, expandiria o acesso global às vacinas. E defendeu acordos pontuais dos países pobres com os fabricantes, como já estaria ocorrendo, na sua visão. As entidades representativas das indústrias farmacêuticas dos EUA e as próprias empresas enfileiraram argumentos destacando obstáculos para novos players produzirem as vacinas, apontando falta de capacidade, de instalações adequadas, de fragilidade nas cadeias de fornecimento de insumos, e assim por diante.

Proteção de patentes e de outras formas de propriedade intelectual tem sido um obstáculo para aumentar a produção de imunizantes – Francis Kokoroko/Unicef via Onu News

No auge da crise da Aids na África do Sul houve um forte embate entre a indústria farmacêutica internacional instalada no país e o governo local em torno de uma lei, autorizada no governo Nelson Mandela, que facilitava a compra de medicamentos genéricos para o combate à doença. Depois de muita repercussão internacional, a contenda terminou em acordo que permitiu a continuidade da política de compras, mas preservou o respeito às patentes no país. 

Acompanhei de perto, por motivos profissionais, a introdução dos medicamentos genéricos no Brasil, uma disputa que começou no governo Itamar Franco, prolongou-se pelo de Fernando Henrique Cardoso, quando o então ministro da Saúde, José Serra, conseguiu que o Congresso aprovasse a lei dos genéricos. A indústria multinacional instalada no Brasil resistiu o quanto pôde, apesar dos genéricos já serem, na época, uma realidade nos EUA e na Europa. O fato é que a lei foi um pilar fundamental na política de combate à Aids no Brasil, consagrada como referência internacional. Além disso, a produção e comercialização de genéricos no Brasil possibilitaram a capitalização financeira de pouco mais de uma dezena de laboratórios farmacêuticos nacionais que atualmente já desenvolvem pesquisa de novos fármacos no País. 

Registre-se que o governo Bolsonaro, como em tudo mais, alinhou-se ao governo de Trump em relação à OMS. Até agora não se mostrou favorável à proposta apresentada pela Índia e pela África do Sul. Alguma surpresa?*

Ainda haverá longos debates antes da aprovação

A nova posição dos EUA não deverá ter efeitos imediatos na produção de vacinas em termos globais, pois ainda ocorrerão longos debates entre os associados da OMS antes que se chegue a uma decisão final. Além disso, concretizá-la exigirá investimentos em frentes variadas, inclusive legais, para gerar, por parte dos países, as necessárias capacidades operacionais e de conhecimento para tanto.

Diz o professor Calixto Salomão, da Faculdade de Direito (FD) da USP: “A decisão do governo americano é importante e histórica, porque o apoio dele é muito relevante. Mas precisamos colocá-la em contexto”. Segundo ele, essas decisões precisam do apoio de 2/3 dos países-membros da OMC, mas normalmente são tomadas por consenso, o que é um longo processo.

Nesse entretempo, recomenda Salomão, é preciso que os países tomem providências legislativas, judiciais e a sociedade civil se movimente solicitando quebra de patentes e providências correlatas.

Calixto Salomão, professor da Faculdade de Direito (FD) da USP

Já o professor Carlos Portugal Gouvêa, também da FD, analisa que o apoio do governo dos EUA, além de seu caráter de compreensão da gravidade da epidemia, contempla a necessidade de reativar a economia global. O Brasil, na sua opinião, tem capacidade para produzir as vacinas, por isso espera que o governo brasileiro apoie a proposta da Índia e da África do Sul, agora endossada pelos EUA.

Carlos Portugal Gouvêa, professor da Faculdade de Direito (FD) da USP

Na esfera política mundial, os efeitos do gesto de Biden são e serão significativos. A indústria, especialmente a norte-americana, que foi fortemente estimulada pela Operação War Speed, do ainda governo Trump, principalmente garantindo a compra das vacinas lá desenvolvidas, passa a conviver com um novo elemento de pressão sobre suas estratégias, não só de pesquisas mas também de comercialização global desses produtos. Os EUA reafirmam e reforçam seu retorno à convivência com a comunidade internacional, marcada inicialmente pelo reengajamento no Acordo sobre o Clima, de Paris, num terreno em que China e Rússia atuam proativamente ofertando suas vacinas especialmente nos mercados dos países em desenvolvimento.

Não custa lembrar que a gigantesca Índia, vizinha da China, tão gigantesca quanto, tradicional aliada do Ocidente, passa pelo pior momento da pandemia no teatro global. E que a África do Sul, onde se deu o combate em torno da Aids, é o país mais desenvolvido de um continente onde, há anos, a China investe com muita persistência. A Rússia… bom, a Rússia é o velho competidor desde o início do século passado, embora sem a mesma força de antigamente.

Atualizada em 8/5/2021, às 18h15

* Após o fechamento desta matéria, o chanceler brasileiro Carlos Alberto França reuniu-se com a representante comercial dos EUA, Katherine Tai. Após a reunião, França declarou que o caminho da quebra de patentes não levaria à imediata produção de vacinas nos países em desenvolvimento e que, na OMC, o Brasil vai apoiar a construção de uma “terceira via”, que prevê a assinatura de acordos pontuais entre os fabricantes e países que possibilitem acesso mais rápido aos imunizantes.


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